— Vamos até aquela casa — ela disse, apontando com o dedo. — Agora — completou, com a voz mais forte, tocando-me o braço, porque, com apenas uma hora de caminhada, ela já pôde perceber que sou distraído.
A mulher que eu acompanhava é uma militante do MST. Sou das antigas, ela disse para mim quando fomos apresentados — e riu. Seguíamos juntos com um grupo de camaradas fazendo o trabalho de formiguinha em um bairro periférico da Capital da Reaçolândia.
Postado na frente da casinha apontada pela militante do MST, bati palmas. A casinha era bem simples, assim como as dezenas de outras que havia ali. Atendendo ao chamado, a moradora surgiu de dentro da casinha, com o passo firme. Trazia consigo um sorriso de interrogação, enquanto enxugava as mãos em um pano de prato. Postada na soleira da porta da frente de sua casa, presenteou-nos com um bom dia.
A camarada do MST começou o repertório. A fala é o seu território, de onde, percebi, só sai – e só quer sair, às vezes a contragosto – para tarefas específicas bem marcadas pelo movimento. A dona da casa, chamada Zefa, demonstrou interesse pela conversa, e o diálogo começou. Zefinha, como é mais conhecida, compartilhou conosco que é trabalhadora, é mãe, é avó e trabalha como empregada doméstica. Apesar de já ter passado dos sessenta anos, ainda não conseguiu se aposentar. “Tá um rolo aquilo”, ela justificou. Tem as mãos marcadas por anos de trabalho duro.
Escorada na soleira da porta, ela repensa e repisa os anos passados, tentando entender o que aconteceu com o país, enquanto o seu olhar migra das mãos para os nossos olhos, e vice-versa. Procuramos ouvir mais, falar menos. As palavras dela, duras como a vida difícil que possui, materializam uma consciência de classe constituída por alguém que fermentou sonho com pranto, constituída por alguém que sabe como é não ser da zona sul.
Para ela, tudo é incerto, provisório, o dia é pago com algumas notas e moedas miúdas e ninguém assina nada em lugar algum, mas cada dia de graça é pior, é uma desgraça, a cozinha deixa de fornecer alimentação. Emocionada, ela lembra do postinho de saúde do seu bairro, que nem remédio para todo mundo não tem. “Agora eles até repartem as cartelas [de remédio]”, ela lamenta. “Como vou cuidar do meu neto que acabou de nascer desse jeito? Do meu velho que é hipertenso?”, questiona.
Ficamos emocionados. Até uma pedra de gelo ficaria, ora. A camarada do MST, como sempre, toma a iniciativa e abraça Zefinha. No conforto do abraço, Zefinha ainda dá um suspiro de esperança, falando no ouvido da camarada: “Mas as coisas vão melhorar. Bolsonaro vai botar ordem na casa”. Queria abraçá-la também, mas diante da cena não conseguia fazer nada além de pequenos movimentos hesitantes. Sentia o meu corpo relutar como uma locomotiva saindo da estação, puxando atrás de si as toneladas de vagões.
A imagem dos militantes de esquerda sendo recebidos pela trabalhadora parecia a de um cartum, penso agora nesse processo de rememoração. Sim, há algo de belo nesta imagem. De um lado, os militantes, apreensivos numa conjuntura em que a morte está à espreita nas ruas de bytes e de asfalto. Diante dos militantes, a senhora trabalhadora, mergulhada em um bairro banhado em vida desassistida, materializando em si mesma o arquétipo do negro de “Casa-grande & Senzala”; de Macabéa de “A hora da estrela”; do sertanejo de “Os sertões”; de Manuel e Rosa de “Deus e o diabo na terra do sol”; de Fabiano de “Vidas Secas”; enfim, do povo marcado no corpo e na alma pela exploração cotidiana que se arrasta por séculos neste país que mais parece um moinho.
Foi um encontro importante para mim. E os efeitos da experiência que vivenciei transcenderam a própria experiência. É o que alguns chamam de Kairós. Na estrutura linguística, simbólica e temporal da civilização moderna, emprega-se uma só palavra para significar a noção de “tempo”. Diferentemente de nós, os gregos antigos tinham duas palavras para o tempo: chronos e kairós. Enquanto a primeira refere-se ao tempo cronológico que pode ser medido por possuir natureza quantitativa, kairós possui natureza qualitativa e significa tempo pleno, sendo indicador do fenômeno temporal em que algo especial acontece.
Numa época em que nos afundamos numa areia movediça de retrocessos e, não raro, somente se vislumbra um horizonte decadente, é revigorante recordar esse encontro com uma trabalhadora anticapitalista em instinto, embora talvez ainda não em consciência. É a tal da boa esperança, como captou muito bem o Emicida em sua música.
Vejo frequentemente parte de o campo progressista ridicularizar as pessoas que votaram no Bolsonaro. De fato, existe um núcleo duro de eleitores, a pequena burguesia proto-fascista, que deve ser combatida com as armas da crítica. Contudo, o grosso das pessoas que elegeram o atual governo é gente trabalhadora que merece respeito.
Será construindo a luta com a classe trabalhadora que encontraremos sopro de novos tempos. Não será dizendo coisas como “eu avisei” que conseguiremos isso. Neste sentido, quem ridiculariza o povo trabalhador só demonstra desconhecimento do país em que vive, evidenciando também despreparo para a militância e a profunda necessidade de justificar a própria inércia com o que supostamente “falta” na classe trabalhadora.
Precisamos parar um pouco de olhar para cima e perceber que as exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção, além de um descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, percorrem de alto à baixo a população brasileira. Nas minhas poucas luzes, é esse anseio de mudança que devemos ouvir, ao invés de nos conformarmos com as opções apresentadas pelos “donos dos portões institucionais”.
Essa energia destituinte pode ser revolucionária se cuidarmos para organizá-la, tirar do estado bruto e lhe dar plasticidade. Esse processo de concatenação de forças é mais importante (e difícil) do que simplesmente manifestarmos apoio a um ou outro lado. A polarização beneficia o grande capital. Não é à toa grupos de direita atuarem constantemente para reforçá-la. Não podemos, nesse sentido, cair no discurso das formas tradicionais de organização defendidas pelas cúpulas da esquerda hegemônica que simplesmente afirmam que não há alternativa à institucionalidade e que todo o impulso vital da base da sociedade deve ser canalizado para as eleições. Ao contrário do que dizem, é no trabalho decisivo de organização das massas “de baixo para cima” que teremos a força motriz necessária para construir um admirável mundo novo que opere em outra lógica, mais justo, mais democrático, mais humano.
Precisamos reaprender a mobilizar para organizar, a construir de baixo para cima um futuro onde se possa viver e onde se queira viver. A pergunta que paira no ar é: isso ainda é uma possibilidade?
*João Miranda é professor de história.
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