Trinta anos do desastre de Hillsborough e o enigma Brasil: notas sobre o aburguesamento do futebol e a dominação social nas grandes cidades

Luiz Antonio Simas

Apr 1989: Supporters are crushed against the barrier as disaster strikes before the FA Cup semi-final match between Liverpool and Nottingham Forest played at the Hillsborough Stadium in Sheffield, England. Mandatory Credit: David Cannon/Allsport

1- Há 30 anos, no dia 15 de abril de 1989, 96 torcedores morreram e 766 ficaram feridos durante o jogo entre Liverpool e Nothingan Forest, pelas semifinais da Copa da Inglaterra, na tragédia que ficou conhecida como o “desastre de Hillsborough”. Nós, que amamos e não vivemos sem futebol, nunca vamos esquecer.

2- A catástrofe – a maior do futebol inglês – estimulou o governo da Primeira-Ministra Margareth Thatcher a atacar o “hooliganismo”. Um primeiro relatório do governo sobre a tragédia atribuiu a culpa aos torcedores do Liverpool, que abusaram do álcool e da violência. Investigações posteriores desmentiram o primeiro relatório, que teria sido adulterado pelo governo, e comprovaram que a tragédia ocorreu em virtude da superlotação, das condições do estádio e de erros dos responsáveis pela segurança da partida, que abriram uma entrada durante o jogo com acesso a setores que já estavam superlotados, causando o esmagamento e o sufocamento de centenas de pessoas.

3 – Naquele contexto, o governo de Thatcher vinha tentando desmontar o estado de bem-estar social e estava em guerra aberta contra os sindicatos de trabalhadores. Vários desses sindicatos tinham ligações com torcidas de futebol, desde as origens do jogo na Grã-Bretanha. No discurso do governo, praticamente todos os torcedores de futebol foram genericamente definidos como hooligans.

4 – O discurso de combate à violência ensejou, então, diversas mudanças no futebol da Inglaterra e na própria cultura do torcedor. Exigências passaram a ser feitas para melhorar o funcionamento dos estádios, da obrigatoriedade de lugares marcados para torcedores sentados à melhoria do acesso. O preço dos ingressos aumentou de forma significativa, afastando o torcedor de baixa renda das novas arenas; em um processo de gentrificação evidente do futebol britânico. O professor Marcos Alvito descreve esse processo no ótimo livro “A Rainha de chuteiras”.

5 – Ao mesmo tempo em que o processo de assepsia ganhava terreno, os principais clubes do país romperam com a Football League e criaram a Premier League, buscando de imediato autonomia para negociar a transmissão de jogos para a televisão e os contratos de patrocínio. A cereja do bolo foi o acordo com o magnata das telecomunicações Rupert Murdoch e o contrato para que a Sky TV assumisse a transmissão dos jogos.

6 – Se o dinheiro do contrato trouxe recursos até então inimagináveis para os clubes ingleses, por outro lado veio acompanhado de estratégias cada vez mais ancoradas em um princípio: o futebol deve ser cada vez mais moldado à lógica da televisão, inclusive em relação às características do jogo.

7 – A cobertura da TV, com ângulos de câmera inusitados, técnicas de repetição constante de jogadas, exploração de imagens ressaltando o contato físico entre os jogadores, redução do tamanho do campo para reforçar esse contato, jogos praticamente todos os dias para atingir a demanda dos assinantes; escancara a estratégia que norteia a nova era do futebol inglês: a assepsia dos estádios, transformados em arenas multiuso, restringirá o público presente a uma parcela com poder aquisitivo maior. Ao mesmo tempo, popularizará as transmissões televisivas, retirando dos estádios boa parte dos torcedores com um perfil mais popular, que passarão a assistir aos jogos em bares, nas suas casas, etc. O torcedor da nova ordem do futebol deve estar na frente da televisão.

Dentro das arenas devem estar os consumidores do “produto futebol”, conforme o jargão empresarial.

6- Diversas ponderações podem ser feitas sobre o caso inglês. A Inglaterra vinha em um processo em que ir a um jogo de futebol era correr o risco de ser massacrado e não voltar para a casa. Não há como discordar disso.

7 – No dia 29 de maio de 1985, por exemplo,, aconteceu a “tragédia de Heysel”, pouco antes do início do jogo entre Liverpool e Juventus, partida final da Copa dos Campeões da Europa. Pouco antes da hora marcada para rolar a bola, hooligans do Liverpool romperam as grades divisórias e atacaram os italianos com barras de ferro. Um muro do estádio cedeu e o saldo final foi devastador: 39 torcedores mortos.

8 – Poucos dias antes da “tragédia de Heysel”, no dia 11 de maio de 1985, ocorreu um incêndio de grandes proporções na arquibancada do estádio do Bradford City, durante um jogo entre o time local e o Lincoln City. O saldo final foi de 56 mortos e 265 feridos.

9 – Por outro lado, o governo Thatcher, especialmente, atacou o futebol com objetivos mais profundos, ligados a disciplinarização e contenção das massas urbanas, confrontos com os sindicatos de trabalhadores, sufocamento de movimentos de resistência ao desmonte do estado de bem-estar social no Reino Unido, ataque e criminalização a qualquer tipo de organização capaz de ensejar laços de sociabilidade, se apropriar de espaços públicos e construir redes de proteção entre os mais pobres, etc.

10 – O processo de aburguesamento do futebol, visto cada vez mais como negócio pelos novos “donos do jogo”, não é um fenômeno isolado de dimensões mais amplas e está diretamente ligado a processos de disputas, tensionamentos e confrontos típicos de cidades capitalistas.

11 – Pensemos nisso e no que o futebol brasileiro está se transformando. Um jogo elitizado, em estádios/arenas gentrificados, priorizando o pay-per-view, as redes sociais, a infantilização da crônica esportiva, o culto às celebridades de ocasião, os almofadinhas do mercado.

12 – É um processo, enfim, mais amplo de “arenização” do cotidiano e afastamento das camadas populares dos elementos lúdicos que permitiram a apropriação da cidade pelos subalternizados que, nos campos, gerais e arquibancadas, construíram formas de reinventar, no precário, a vida.

13 – Nós estamos assistindo ao assassinato da cultura do futebol brasileiro, ao esfarelamento das ligações afetivas entre clube e torcedor, à entrega do jogo aos falcões do mercado, que mensuram o futebol apenas a partir de cifrões e engenharias financeiras.

14 – Essas aves de rapina ainda querem propor a falsa oposição entre “profissionalismo” e “jogo popular”. Uma gestão profissional não é incompatível com medidas que defendam o torcedor, a popularização do jogo e dos estádios.

A morte de clubes menores, o esfacelamento dos laços de sociabilidade, a precarização de todos os aspectos da vida, a escravização de jovens atletas por empresários, o confinamento de mão de obra barata em centros de treinamento que mais parecem currais. Está tudo ligado.

15 – Se engana quem pensa que se trata apenas de futebol. É muito mais que isso. E o jogo continua. Reações a este processo são hoje cada vez mais contundentes. As cidades são territórios em disputa. Os destinos do futebol, um dos elementos centrais para se refletir sobre o enigma Brasil, podem apostar, também são.