Parafraseando Brecht, vamos combinar com o mundo oficial: um cobertor de silêncio se espalha nas fábricas que demitem, nos canteiros de obra que não contratam e nos bairros em que os desempregados se cruzam nas esquinas e nos bares, e, fora de seus domínios, deles só se sabe nas estatísticas. Não têm nomes, rostos, famílias. São simples números e, ainda assim, incomodam. Ouve-se dizer que o presidente quer se livrar do IBGE e de seus dados incômodos. 100 dias depois da posse de Jair Bolsonaro, esse é um pedaço doloroso do Brasil e de sua (des)economia.
Economia e desemprego em tempos de bolsonarismo
A raquítica reação da economia brasileira na segunda metade do ano passado se transformou na gigantesca catástrofe dos primeiros meses de 2019. Confere a ela inteligibilidade o alargamento dos indicadores de desocupação, que, no trimestre de dez./jan./fev. 2019, alcançou o patamar de 13,1 milhões de desempregados (12,1%). Pelos labirintos do registro de 100 dias do governo de Jair Bolsonaro, essa é uma dimensão crucial de que a arquitetura de suas ideias não se põe de pé. Resta-lhe apenas agitar o mantra da reforma da previdência, que embala os sonhos do empresariado e abala as expectativas dos trabalhadores.
Mesmo a burguesia alarma-se com o curso dos acontecimentos. Ela percebe que a situação econômica modifica-se com rapidez e, paradoxalmente, o governo que ela se sente na conveniência de apoiar, não oferece sinais de mínima lucidez, mas, inversamente, apenas fornece indícios de delírios ideológicos. Está frustrado o objetivo a que visara?
Ainda é cedo, e apesar de não podermos chegar a conclusões definitivas, nunca o futuro foi tão incerto. Nesse panorama, cada classe faz as suas contas e sabe que é impossível que todas ganhem. Ao contrário, uma parte da sociedade precisa perder para que outra possa ganhar. A reforma da previdência é uma modalidade de transferir, sem testemunho ou vestígio, recursos – que estão nos sacos dos pobres e remediados – para os cofres dos ricos. O argumento suntuoso em torno do “défice da previdência” é mera vulgata ideológica e é útil somente para coesionar o “exército de crentes”.
Seguramente, o peso de uma ideologia não deixa de ter a sua importância, mas, malgrado todo o empenho dos meios de comunicação e da máquina governamental, a maioria absoluta dos trabalhadores está contra a reforma da previdência. O mantra do governo encontra obstáculo na força de milhões de mulheres e homens que, a título de ilustração, ganharam as ruas no dia 22 de março para dizer NÃO a essa verdadeira contrarreforma que, em última análise, praticamente liquida com a aspiração do pobre e do remediado no que se refere à decência de uma aposentadoria.
Mas, o bolsonarismo e o seu “exército de crentes”, de maneira inimitável, seguem nas redes sociais escrevendo e falando de um país que não existe, e só tornam a história mais patética. Enquanto isso, o desemprego e a pobreza produzem as rimas mais descabidas. Conforme o G1, o mês de abril começou com o alerta do insuspeito Banco Mundial: ”Segundo a instituição, o número de pessoas que vivem na pobreza subiu 7,3 milhões desde 2014, atingindo 21% da população, ou 43,5 milhões de brasileiros”. Ao vivo é muito pior, diria um inesquecível compositor cearense, “Sem dinheiro no banco sem parentes importantes /E vindo do interior”.
Para os que dizem que é muito cedo e é preciso “dar tempo ao tempo”, é necessário enfatizar que essa é uma obra de destruição em andamento e quanto mais ela anda, menor é a chance de que possa dar certo para os que sobrevivem no andar de baixo de uma sociedade fundada na exploração.
O ultraneoliberalismo dos Bolsonaros e a difícil quadra externa
Na última sexta feira (05/04), nas páginas eletrônicas de o Valor, a manchete “Dado industrial eleva temor de recessão na Alemanha”, de certa maneira, tão só confirma o que organismos internacionais já apontavam: em 2019, a economia mundial não atenderá aos planos que, até o ano passado, “o mercado” (a burguesia) acalentava.
Os mais otimistas manifestam que a tendência é de que a economia tenha um crescimento fraco no próximo período. Trata-se de uma conclusão poderosa, mas, obviamente, não é a única. Para outros, uma alternativa mais persuasiva é de que, talvez, nem se possa falar de crescimento fraco. A nosso ver, a inteligência dos fatos recomenda prudência e acompanhamento dos próximos lances de uma partida que ainda se encontra em sua fase preliminar. Há segmentos do campo econômico que segue acreditando no êxito dos algarismos e há toda uma série de perguntas muito complexas que acompanha toda essa discussão. Como se comportará a economia dos EUA? E a da China? Terá a Europa um quadro recessivo comum ou uma parte dela escapará desse hediondo destino? Se uma parte escapa, qual o seu peso na economia do continente?
Embora possamos especular a respeito das respostas para algumas dessas difíceis indagações, semelhante atitude tende a sugerir soluções muito parciais, e porventura esquemáticas, para questões que exigem tratamento mais objetivo e concreto, sempre ao corrente da situação. Tudo ainda parece se encontrar nos limites de um ângulo morto. É sempre muito difícil se apropriar da história em seu curso imediato. A essa altura, e nos limites deste artigo, mais interessante talvez seja, conforme o critério de examinar os possíveis reveses da quadra econômica e as suas contratendências, ter o fulcro na economia nacional.
Desse ponto de vista, considerando as possibilidades disponíveis e a necessidade de uma primeira síntese, a tendência mais provável é de que a economia brasileira, frente às dificuldades da economia mundial e das escolhas do governo de plantão, se depare com maiores embaraços do que se imaginou em fins de 2018, sem querer antecipar o tamanho dessas atribulações. Essa nos parece uma dimensão crucial do problema. As previsões de um crescimento menor para 2019, à luz de revisões já efetuadas no começo do ano, fato pouco comum, oferece um desenho que tem certa forma material. Ademais, os capitalistas seguem receosos de fazer investimentos no átimo de tempo no qual ao cinza da economia se misturam as incertezas da vida política, notadamente em Brasília.
Nessa mistura desordenada de situações, o que nos proporciona o novo condomínio governamental? Um ultraneoliberalismo que demonstra elo figural extremamente frágil com o velho extremismo de direita e o seu ultranacionalismo, permeado por ações de intervenção na economia e, em muitos casos, atitudes protecionistas. O patriotismo bolsonarista é para inglês ver. Limita-se a vestir a camisa da CBF.
Devemos tomar essa mudança como um sintoma do tempo, uma vez que a história não se repete senão como comédia refeita da tragédia. O patriotismo bolsonarista é o do personagem de Swift em seu formato apequenado. Recapturar a autenticidade da tradição ultranacionalista da velha extrema-direita nunca esteve nos planos do clã Bolsonaro que, no marco do seu exotismo político, não se acanha de submeter à economia nacional aos códigos e preceitos de Washington, em sua versão trumpiana, ainda que, em última hipótese, tal posicionamento ameace os laços econômicos nos quais o Brasil se equilibra (nomeadamente no tocante à China e ao mundo árabe).
Nas circunstâncias nas quais as tradições se remanejam, resta a Jair Bolsonaro oferecer a previdência numa bandeja para a honra e a glória dos banqueiros, depois de haver baixado uma medida provisória para aniquilar de vez os sindicatos e dificultar a resistência ao seu programa de terra arrasada, e posteriormente ao descaramento de reajustar o salário mínimo abaixo do valor aprovado ainda durante o famigerado governo Temer.
Não por acaso, as pesquisas revelam que o descontentamento cresce e cresce, sobremaneira, no andar de baixo, entre as pessoas mais simples e nas regiões em que a pobreza parece mais alargada, como no Nordeste. O patriotismo dos Bolsonaros com os bancos aumenta a sensação de desamparo entre os desvalidos. Por enquanto, é somente um sentimento de assombro e abalo. Não se transformou em luta e mobilização.
A pergunta é: até quando?
Realidade e prenúncio: uma síntese provisória
Na busca por uma alternativa a Lula, a burguesia aventou algumas cartas e acabou por encontrar no bolsonarismo e no seu programa econômico mal-ajambrado uma saída que estava longe de constituir uma solução, conforme se observa nesses 100 dias de governo, que só confirmam o que o pensamento crítico prognosticara a esse respeito. Consolidou-se o velho clichê da morte anunciada.
A economia já naufraga, pelo menos para amplos setores da classe trabalhadora, que amargam o arrocho salarial, os efeitos da reforma trabalhista e a expansão desenfreada do desemprego. A fila gigante no Vale do Anhangabaú, em busca de emprego, é uma expressão da situação de emergência e do sentimento de desespero que já toma conta das pessoas.
Não é acidental que Bolsonaro tem a pior avaliação para um governo que chega a 100 dias de gestão. Como sugerimos há pouco, sua avaliação piora, ainda mais, entre os mais pobres. Eles têm contas a pagar, bocas para alimentar e sonhos desfeitos. Não são tabelas ou gráficos. São criaturas humanas, à deriva, em um país no qual o governo e o empresariado puxam de um saco sem fundo número incalculável de maldades.
Mas não se pode esquecer que quando a relação social de forças se alterar, e essa gente que sofre o drama do megaempobrecimento se levantar como classe, os dias de festança dos promotores de maldades estarão por um fio. E aí que não ousem pedir clemência, pois, como cantou Vandré, será “… a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”.
Para que o cipó dê a volta, no entanto, será preciso abraçar as tarefas concretas que o cotidiano da vida vai pondo diante dos olhos da classe trabalhadora, dos empregados e desempregados, das velhas e novas gerações. No momento em que o governo e o congresso, mediados pelos interesses patronais, se preparam para retomar a agenda facciosa da reforma previdenciária, sem dúvida, a luta contra esse ataque parece ser a tarefa que, a depender de seu resultado, prepara ou destrói o futuro próximo daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho.
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