A Educação nos 100 dias de governo Bolsonaro: um primeiro balanço

Artemis Martins*

Chegamos aos primeiros cem dias do governo de Jair Bolsonaro. Em meio a tuítes, lives, mandos e desmandos quase diários, um debate se abriu acerca das competências do presidente eleito, de sua equipe, bem como da suposta ausência de projetos governamentais, especialmente no campo da educação. A audiência da Comissão de Educação da Câmara no final do mês de março aprofundou essa discussão quando foi evidenciada a falta de um plano de metas e ações do já ex-Ministro da Educação Ricardo Vélez, demitido no último dia 08 de abril. É preciso muita ingenuidade ou uma retórica desonesta para reivindicar um planejamento estratégico nos marcos do que é o governo Bolsonaro.

O caráter antidemocrático, obscurantista e fundamentalista não é novidade, afinal, desde sua campanha Bolsonaro se revelou como um candidato antipovo, entreguista e com características neofascistas. Mas será mesmo que esse “amadorismo” é a ausência de um projeto governamental ou se trata, justamente, do modus operandi de governar da tosca extrema-direita brasileira? O modelo de comunicação híbrida[1], as constantes polêmicas sobre “ideologia de gênero”, “marxismo cultural” e a dança das cadeiras no MEC não podem ser encaradas como mera incompetência. É preciso desmistificar essa análise e entender que há um projeto educacional sim, de linha política definida, com objetivos e expectativas de cumprimento determinados.

Um primeiro aspecto que comprova haver uma linha política consciente no atual governo é a tentativa de deslocar os problemas estruturais da educação para o campo ideológico. Bolsonaro repete que o fracasso da educação no Brasil, dos baixos índices, não tem a ver com a péssima infraestrutura das escolas (muitas já condenadas pela Defesa Civil) nem com a carência de técnicos, professores e gestores – que sofrem com baixos salários e carreiras achatadas. A merenda escolar inadequada e insuficiente, a falta de transporte escolar, de equipamentos e de materiais didáticos; a ausência de moradia e de saneamento básico, a desestruturação das famílias diante da fome, do desemprego, das doenças, a violência contra mulheres e crianças (potencializada pelas desigualdades sociais e pela política de extermínio do estado), o encarceramento da juventude negra e periférica que, sem perspectiva de emprego ou de futuro, é recrutada diariamente pelo tráfico: nada disso é problemático aos olhos do presidente eleito. Para ele, o grande vilão da educação brasileira é “a doutrinação marxista e a sexualização precoce”. Seu projeto político e educacional não enfrenta as desigualdades sociais, nem as opressões de gênero e de raça. Mas sim, ataca professores ditos “doutrinadores”, o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero” (que para Bolsonaro, Damares e companhia, corrompem crianças e jovens). Somam-se a isso o revisionismo histórico, a negação da ciência e o cerceamento da liberdade de cátedra, que corroboram não apenas com o adoecimento de docentes, mas também para a instalação de uma atmosfera policialesca nas escolas e nas universidades, para a legitimação de ações truculentas e o aprofundamento dos ataques à nossa tão arquejante democracia, que agora assume seu uniforme blindado[2].

Enquanto isso, sem pudor, a agenda política de ajustes e de privatizações na educação segue em curso. Até agora, a educação foi o maior alvo dos cortes implementados pelo governo a fim de cumprir a chamada “meta fiscal” que, no final das contas, significa aumentar o montante de recursos destinados ao pagamento dos juros e amortização da dívida pública, a remuneração da sobra de caixa dos bancos privados e a securitização de créditos públicos[3]. O orçamento inicial para 2019, aprovado em janeiro deste ano, previa a execução de quase R$ 123 bi para educação. No entanto, a equipe econômica de Bolsonaro e Guedes resolveu reduzir em as verbas disponíveis para o primeiro trimestre[4]. Em fevereiro foi publicado um Decreto[5] que reduziu aos mínimos constitucionais, entre outros serviços essenciais, muitos dos recursos destinados à educação. Conforme os dados do Ministério da Economia, as despesas gerais com educação foram reduzidas em cerca de R$ 5,8 bilhões. A série histórica do orçamento empenhado de 2016 a 2019 para o MEC[6] demonstra os efeitos financeiros já desse Decreto.

 

UNIDADE ORÇAMENTÁRIA
TOTAL EMPENHADO
2016
2017
2018
PLOA 2019
LOA 2019
Dotação 2019
2019
Ministério da Educação
100.263,8
105.669,3
109.600,8
121.199,9
122.951,2
122.951,2
76.841,4*
 Fonte: Ministério da Economia. Exclui Reserva de Contingência – Valores em R$ Milhões. Adaptado.
 (*) Orçamento empenhado com o Decreto nº 9.711, de 15 de fevereiro de 2019.

 

O ensino superior, que para o ex-Ministro Vélez “não deveria ser para todos”[7], tem sido escamoteado não apenas do ponto de vista de sua autonomia (os impasses com o ENEM e a designação de uma equipe para “monitorar” a elaboração de provas[8]ou da afronta ao lento processo de democratização que vem se consolidando com políticas afirmativas, como a de cotas. A Deputada Federal Dayane Pimentel (PSL) apresentou, no dia 13/03/2019, um projeto de lei que prevê o fim da reserva racial de vagas para o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico em nível médio[9]. O financiamento do ensino superior também sofreu drásticas reduções em investimentos e, a cada dia, a pesquisa, a ciência e a tecnologia estão mais ameaçadas com esses cortes. Vejamos os exemplos do CNPq e do FNDCT, que revelam quão duros são os cortes de recursos para os investimentos na pesquisa e na produção científica e tecnológica:

 

UNIDADE ORÇAMENTÁRIA
TOTAL EMPENHADO
2016
2017
2018
PLOA 2019
LOA 2019
Dotação 2019
2019
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
1.599,6
1.572,8
1.323,1
1.227,9
1.228,4
1.228,4
591,8
Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT)
1.042,7
916,8
951,3
851,2
851,2
851,2
195,9
Fonte: Ministério da Economia. Exclui Reserva de Contingência – Valores em R$ Milhões. Adaptado.

 

A situação piorou com mais um Decreto[10] publicado no dia 29 de março, onde o governo indicou que o ajuste será maior, de quase R$ 36 bilhões, porque a equipe econômica, mais uma vez, resolveu destinar cerca de R$ 5,37 bilhões a uma reserva de contingência. Esse corte retrocedeu aos mínimos institucionais diante do piso constitucional de aplicação no ensino, que é de R$ 52,7 bilhões. O fantasma dos cortes paira também sobre o já reduzido orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Como observamos acima, a ameaça aos pagamentos de bolsas de estudo, de extensão e da produção científica brasileira e, em últimas vias, milhares de cortes das bolsas de pós-graduação é uma realidade já. Além disso, lembremos da inclinação explícita do presidente às privatizações e a relação entre educação, bancos e grandes corporações. O novo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, representante do setor financeiro e do mercado especulativo, certamente tenderá à execução de uma agenda que favoreça lobbies, injeção e transferência de recursos públicos no setor privado, bem como o fortalecimento de empresas do ramo editorial, EAD, de ensino técnico e superior privados.

Mas afinal de contas, há ou não um delineamento político e gerencial do atual governo para a educação brasileira? É evidente que sim. A agenda de Bolsonaro para a educação não se diferencia muito das metas e objetivos para as outras áreas: concessões e benefícios às elites do setor privado, salvar os ricos de seus apuros enquanto piora (e muito) a vida dos trabalhadores e do povo pobre. O primeiro ponto do “planejamento estratégico” bolsonarista para a educação é formar e adequar as massas aos novos marcos da divisão internacional do trabalho. Tudo isso, sob intensa ofensiva ideológica e conservadora, na tentativa de que não haja reação popular frente às injustiças barbaridades impostas. Não é à toa que ele afirmou, há poucos dias, querer “uma garotada que comece a não se interessar por política”[11].

 

[1] Para uma compreensão inicial sobre o tema sugerimos a leitura dos artigos “Guerras híbridas” e “Contradições e bate-cabeça da campanha de Bolsonaro são intencionais”, disponíveis, respectivamente, em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/03/opinion/1512325245_721922.html e < https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/24/politica/1540408647_371089.html>.
[2] Ver “A democracia blindada” de Felipe Demier, disponível em: http://blogjunho.com.br/a-democracia-blindada/.
[3] Para maior aprofundamento sobre o tema ver: https://auditoriacidada.org.br/
[4] Decreto nº 9.711, de 15 de Fevereiro de 2019.
[5] Ibidem.
[6] Disponível para consulta no Ministério da Economia https://www1.siop.planejamento.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=IAS%2FExecucao_Orcamentaria.qvw&host=QVS%40pqlk04&anonymous=true
[7] Ver https://oglobo.globo.com/sociedade/ministro-da-educacao-afirma-que-universidade-para-somente-algumas-pessoas-23414713
[8] https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,dono-do-enem-e-o-nosso-presidente-bolsonaro-diz-indicado-para-a-presidencia-do-inep,70002685233
[9] https://www.bahianoticias.com.br/noticia/233784-dayane-pimentel-apresenta-projeto-que-preve-fim-de-cotas-raciais-em-instituicoes-de-ensino.html
[10] Decreto nº 9.741, de 29 de março de 2019.
[11] https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-queremos-uma-garotada-que-comece-a-nao-se-interessar-por-politica,70002785320 

 

*Artemis Martins é doutoranda em Educação (UFC), pedagoga e militante da Resistência/PSOL Ceará