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O cheiro do fascismo em oitenta tiros: estrutura e conjuntura de um assassinato em Guadalupe

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

…e os lançarão na fornalha de fogo; lá haverá choro e ranger de dentes”
(Mateus 13:50)

 

O fato de alguns aspectos e elementos, como o racismo e a violência policial, serem estruturais de determinada formação social e de seu padrão de dominação de classes não significa, absolutamente, que eles não estejam sujeitos a variações conjunturais, podendo ser reduzidos ou intensificados a depender da correlação de forças na sociedade. Desde o fim da escravidão, a Polícia do Rio de Janeiro tem como alvos preferenciais os setores mais pauperizados e periféricos da classe trabalhadora assalariada, os quais, em sua maioria, são negros e habitam as regiões mais precarizadas e favelizadas do estado. Eles sempre foram, e nunca deixaram de ser, as “classes perigosas”, para recorrer a uma terminologia da imprensa carioca da Primeira República.

Nas Forças Armadas, desde pelo menos o Golpe de 64 e a eliminação de quaisquer laivos de pensamento progressista e popular dentro da caserna, a situação não é muito diferente. O inimigo declarado sempre foi o comunista, o “subversivo” – o que remete, como é sabido, não só à ruptura pela esquerda de Prestes com o tenentismo no final dos anos 1920, como, principalmente, ao levante de 1935 da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e à ideologia bonapartista-semifascista do Estado Novo. Oficiosamente, no entanto, também foi alvo a população negra e pobre, cuja própria cor e pobreza, segundo a lógica dos agentes da repressão, favoreceriam seu ingresso na marginalidade ou ainda sua adesão a chamados revéis advindos dos “subversivos”, adeptos de “ideologias exóticas” ao nosso país – para retomarmos aqui outra expressão reacionária de antanho, utilizada por aqueles que, tomando nosso povo como ordeiro e cordato, não concebiam que ele pudesse se rebelar por si mesmo.

Há, entretanto, momentos, conjunturas políticas, em que, com a restrição, legal ou não, das liberdades democráticas, essa permanente repressão estatal de classe e de raça, estrutural, não só se intensifica sobre as periferias e favelas, como atinge, nos locais de trabalho e estudo, os setores mais organizados da classe trabalhadora, negros e brancos, favelados ou não, que passam a ser não só espionados, como também ameaçados ou mesmo perseguidos, presos, exilados, torturados e mortos. Usualmente, a intensificação da repressão sobre esses dois espaços (favelas/periferia e local de trabalho/estudo), assim como sobre esses dois setores da classe (organizados e desorganizados – dentro ou fora das favelas/periferias), costuma ser dar conjuntamente, justamente em função das determinações políticas dessas conjunturas “de exceção”. Foi o caso, por exemplo, da ditadura militar, quando se intensificaram sobremaneira a repressão tanto ao movimento sindical e de esquerda, quanto às organizações de moradores de favelas e às formas de manifestação cultural da juventude negra, como o soul music.

Durante a chamada Nova República, isto é, sob o processo de construção e aperfeiçoamento da nossa democracia blindada, as forças estatais de coerção jamais deixaram de reprimir, de forma cruenta, os setores mais pauperizados da classe trabalhadora, com destaque para juventude negra, masculina e moradora de periferias/favelas. As constantes chacinas praticadas por policiais militares e as incontáveis crianças mortas falam por si só. As execuções praticadas pelos grupos paramilitares de extermínio, protoformas das atuais milícias oriundos dos aparelhos de repressão da ditadura, completam o quadro de sangue da nossa democracia antipopular. Nesses poucos mais de trinta anos de regime democrático-blindado – chamado de forma laudatória de “Estado Democrático de Direito” por alguns juristas ladinos e certos “especialistas em Segurança Pública” – o movimento social organizado e a esquerda socialista, por sua vez, jamais deixaram de ser monitorados e, quando necessário, reprimidos. Muitas vezes, as bombas foram de gás e efeito moral, e os tiros, de bala de borracha, como nas manifestações de rua contra as privatizações nos anos 1990 e nas Jornadas de Junho em 2013 – às vésperas da Copa do Mundo, no ano seguinte, militantes foram presos “preventivamente” para que nada fizessem durante o mundial da FIFA, convém lembrar. Outras vezes, não poucas, os tiros foram pra matar, como ocorreu com os três operários da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), no ano de 1988 (o da nossa Constituição “Cidadã”), com os dezenove sem-terra em Eldorado dos Carajás, em 1996, e com outras incontáveis lideranças populares do campo onde, para citarmos Guimarães Rosa, o “sertão está em toda parte”, e onde “viver é um negócio muito perigoso”.

Do Golpe de 2016 para cá, em especial a partir da eleição de Jair Bolsonaro, parece que estamos adentrando justamente uma conjuntura em que alguns aspectos e elementos estruturais da nossa formação social, como a violência estatal racista e antipopular, estão se intensificando. Mais uma vez, as repressões destinadas aos setores organizados e desorganizados da classe trabalhadora parecem caminhar juntas. Assim, se em uma interpretação historiográfica e sociológica de longa duração, na qual os fatores estruturais adquirem preponderância analítica, os 80 tiros de fuzil disparados no último domingo pelo Exército brasileiro, que assassinaram o trabalhador negro Evaldo e feriram sua “perigosa” família (negra), não podem ser considerados como um ponto fora da curva, ou seja, como tiros fora do alvo no padrão da dominação de classes no Brasil moderno, do ponto de vista da análise conjuntural, cujo tempo é o das lutas de classe e da ação política, pensamos que tal ocorrido evidencia a viragem conservadora e mesmo reacionária que estamos vivenciando recentemente no país. Desse modo, o assassinato em Guadalupe, não obstante todas as suas particularidades atrozes, não pode ser, à escala conjuntural, dissociado de fatos como a cassação do sufrágio universal de 2014, a ofensiva policialesca do Judiciário contra adversários políticos, as conduções coercitivas praticadas pela Lava Jato, a perseguição às universidades públicas e seus professores, o movimento “Escola sem partido”, as brutais repressões aos atos de rua do “Fora Temer!”, a crescente censura em espaços de ensino e aprendizagem, o assassinato (político) de Marielle e Anderson, a prisão (política) de Lula, a proibição de sua candidatura, a omissão da Justiça Eleitoral em relação às fake news durante o último processo eleitoral, a invasão de seus agentes em universidades, os ataques contra militantes de esquerda e setores oprimidos às vésperas do segundo turno do pleito, o aumento do feminicídio, a vitória de Bolsonaro, suas declarações, suas propostas de contrarreformas, suas viagens aos Estados Unidos e a Israel, sua entourage arquirreacionária e psicótica, seu ministro Moro com seu pacote de licença para matar e, por fim, suas ligações com as milícias e todo o cheiro de fascismo que isso tudo junto produz no ar.

Talvez, assim, os 80 tiros que tiraram anteontem a vida de Evaldo e traumatizaram para sempre (mais) uma família trabalhadora e negra tenham sido apenas a mais recente e cruel prova de que a nossa democracia blindada, com a intensificação nos últimos anos de seus próprios expedientes coercitivos, esteja dando lugar a uma democracia dos blindados, um regime semibonapartista reacionário e ultraneoliberal que traz consigo, alimenta e tem como base de apoio indisfarçáveis setores fascistas (alguns deles já no governo, com ou sem farda). Não pode ser subestimado, pensamos, o fato de Evaldo ter sido fuzilado pelo Exército, na rua, à luz do dia, em uma carro com sua família, sob um governo federal que há poucos dias comemorou o Golpe de 1964 e a ditadura militar, e sob um governo estadual que diz que sua polícia vai “mirar na cabecinha”, “atirar primeiro e averiguar depois”, e que seus snipers de pobres “já estão operando” na surdina. É necessário estarmos atento ao que permanece, mas também ao que muda. Toda vida é importante e cada vida é única, mas as mortes, ou pelo menos as “mortes matadas”, por assim dizer, são frutos de determinado período histórico. Se limitar a afirmar que “a morte de Marielle é apenas mais uma morte de uma mulher negra” e que “a morte de Evaldo é apenas mais uma morte de um homem negro pelo Estado”, não obstante toda a veracidade estrutural das sentenças, contribui para obnubilar uma análise de conjuntura mais precisa, fundamental para a ação política dos explorados e oprimidos no tempo presente. Embora a nossa noite histórica seja fria, longa e violenta, não podemos tomá-la como a hegeliana noite na qual “todos os gatos são pardos”, sob risco de não percebemos que alguns desses gatos, justamente os mais brancos e ricos, estão mais fortes nos últimos anos, suas unhas estão mais afiadas e que, se não forem parados por nós o mais rápido possível, muitas outras Cláudias serão arrastadas nas periferias, muitos outros Amarildos serão mortos nas favelas, muitos outros Evaldos serão fuzilados em Guadalupe, muitas outras Marielles serão executadas na esquerda e aqueles que, na sua militância sindical ou universitária, hoje sofrem apenas alguns arranhões terão que ter sorte para evitarem perigosas gangrenas. Se isto acontecer, e não duvidemos de que quem está no governo assim o deseja, não estaremos mais apenas sentindo o cheiro do fascismo, e sim diante do próprio fascismo, em carne e osso, e com muitos ossos e carne negra para enterrar.

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80 tiros / exército