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BRASIL

Matéria do “Fantástico” sobre DJ Rennan impulsiona criminalização do funk

Juliana Lessa, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

No último dia 31 de março, o programa semanal “Fantástico”, da Rede Globo, exibiu uma reportagem de 7 minutos sobre a condenação do DJ Rennan da Penha – atualmente, um dos maiores produtores de funk do país e organizador do Baile da Gaiola (situado na favela Vila Cruzeiro). Ele foi acusado de associação para o tráfico de drogas, em um processo marcado por fragilidades e provas inconsistentes.

No vídeo, a apresentadora Poliana Arbitta fez uma introdução ao tema, afirmando que o caso era consequência de uma “nova investigação sobre o baile que deu fama a esse DJ”, deixando evidente que o maior baile funk do Rio (que já chegou a reunir cerca de 30 mil pessoas) era o verdadeiro alvo da investigação policial. A reportagem exibiu algumas imagens gravadas pelo setor de inteligência da Polícia Militar no final de 2018 e que foram obtidas com exclusividade pela emissora.

Em algumas imagens, é possível ver homens fortemente armados que circulam pelas ruas da favela e entre os frequentadores do baile. Em outro momento, Rennan aparece cumprimentando esses homens. Após a exibição dessas imagens, o repórter Murilo Salviano disse que o DJ “teve uma condenação confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio no último dia 15 deste mês [Março] dentro de um outro inquérito” e que “os investigadores afirmam que cinco anos atrás, ele atuava como olheiro dos criminosos”.

Percebe-se, portanto, que as imagens exibidas pela reportagem não se relacionam ao processo em que Rennan foi condenado, o que revela o nítido objetivo da emissora de reforçar a criminalização do DJ. Ao vincular a acusação de cinco anos antes a imagens gravadas recentemente, a reportagem cria uma narrativa que levanta suspeitas sobre a vida de Rennan, na intenção de convencer o espectador de que ele manteve uma conduta criminosa.

A mídia empresarial e a criminalização do funk

Vale ressaltar que a TV Globo, assim como outros veículos da mídia empresarial, sempre manteve uma abordagem pejorativa e criminalizadora em relação ao funk e aos funkeiros, desde o início dos anos 1990, quando acusaram os frequentadores de bailes funk de praticarem roubos em massa nas praias da Zona Sul do Rio (nos episódios conhecidos como “arrastões”), além de retratarem os bailes funk como espaços de violência, pinçando episódios e eventos esparsos para torná-los representativos de todo um movimento cultural.

Tal cobertura também se revelou criminalizadora na ocasião do assassinato do jornalista Tim Lopes, que investigava o tráfico de drogas e de armas na mesma Vila Cruzeiro onde hoje se realiza o Baile da Gaiola. Os veículos da imprensa burguesa conseguiram consolidar a versão de que Tim Lopes investigava denúncias de exploração sexual de menores de idade no baile local, contrariando as conclusões do perito da Polícia Civil, que descartou a hipótese de que tais eventos fossem o alvo do jornalista.

Dois pesos e duas medidas

Na reportagem do último domingo, o fato de Rennan cumprimentar criminosos é colocado como indício de sua culpa. No entanto, suspeitas semelhantes nunca foram levantadas pela emissora quando pessoas brancas e/ou poderosas aparecem junto de criminosos igualmente brancos e/ou poderosos. Luciano Huck, por exemplo, nunca foi criminalizado por confraternizar com Aécio Neves. A foto de Jair Bolsonaro ao lado de um dos acusados de assassinar Marielle Franco também não foi divulgada em rede nacional como evidência de que o presidente possua uma conduta criminosa (embora existam muitos outros elementos que justificariam suspeitas nesse sentido).

Propositalmente ou não, os responsáveis pela matéria do Fantástico ocultaram o fato de que qualquer pessoa que viva ou frequente uma favela acaba, inevitavelmente, se relacionando com os criminosos locais, querendo ou não. Muitos deles cresceram ali, são parentes de moradores etc. Além disso, são eles que ditam as regras locais, sendo, portanto, impossível não se relacionar com quem detém esse poder. Professores e agentes de saúde pública que circulam por esses espaços eventualmente também falam com os criminosos locais. Isso os torna olheiros?

Subjetivismo da condenação e apagamento das críticas

O repórter Murilo Salviano destacou que a condenação do DJ “foi alvo de críticas por parte de movimentos sociais e por instituições como a OAB do Rio, que enxergaram nesse caso, uma tentativa de criminalização do funk”. Contudo, ao invés da reportagem inserir, em seguida, a fala de algum representante dos críticos da condenação de Rennan, abriu-se espaço para que seus acusadores reforçassem a versão de que o DJ é bandido, enquanto era exibida uma imagem de Rennan tocando no baile, em frente a sua mesa de som. Ou seja, a partir da combinação da linguagem visual à verbal, sugere-se que o simples fato de Rennan tocar naquele espaço é mais um elemento que confirma sua culpa.

O repórter Murilo seguiu a reportagem explicando que a investigação que levou à condenação do DJ começou em 2014 (antes de Rennan se tornar famoso) a qual, segundo o delegado Fabrício de Oliveira, tinha o objetivo de investigar o tráfico de drogas e a associação para o tráfico no local. O delegado disse que “diversos elementos foram reunidos que demonstraram que um grupo de criminosos (entre eles, o DJ Rennan) estavam associados para o tráfico”. Em seguida, o promotor Sauvei Lai sustentou que quatro presos foram unânimes em dizer que Rennan atuava como olheiro, embora não vendesse drogas ou portasse armas.

Enquanto as imagens de Rennan tocando no baile são novamente exibidas, a voz do repórter explica que Rennan alertava os criminosos locais por meio de aplicativos de mensagens e redes sociais, conforme consta no texto da sentença de sua condenação. A emissora chegou a abrir um breve espaço para que o empresário de Rennan explicasse que as mensagens enviadas por ele se destinavam a alertar os moradores, como uma estratégia de sobrevivência de quem vive em áreas conflagradas, mas, para o promotor Sauvei Lai, o fato das mensagens serem “secas” indica que o intuito de Rennan era orientar os criminosos para que os policiais em operação fossem emboscados. Ou seja, para o Ministério Público, o que determina o intuito de Rennan não é o conteúdo das mensagens enviadas por ele, mas sim a interpretação feita pelo promotor.

A narrativa apresentada pela rede Globo, pelo delegado e pelo promotor apresentam uma série de fragilidades, assim como todo o processo. Em primeiro lugar, se Rennan é, atualmente, o maior produtor de funk do país (ele já lançou música de artistas como Ludmila, Livinho e Nego do Borel), como ele poderia ter chegado a esse posto atuando como olheiro? A função que querem imputar ao DJ exige disponibilidade de tempo de quem a ocupa, para que possa circular pelas vias da favela, monitorando o que acontece. Como alguém que exerce tal atividade poderia, menos de 5 anos depois, produzir músicas de artistas de sucesso nacional? O sucesso do seu trabalho seria um mero golpe de sorte ou fruto de um árduo trabalho (o que inviabilizaria sua atuação como olheiro)? Se Rennan atuava como olheiro, por que ele exerceria tal função usando aplicativos de mensagens e redes sociais, ao invés de um rádio transmissor, como é o usual?

A tese de que aplicativos de mensagens e redes sociais foram usados para esse fim não se sustenta, se analisarmos minimamente as condições em que bandidos trocam tiros com a polícia, pois alguém que se coloca nessa situação precisa de um instrumento que permita uma comunicação rápida e que não exija muito esforço para ser manuseado, assim como um rádio transmissor. Manusear um aparelho celular para verificar mensagens em aplicativos e redes sociais não parece muito prático em tal situação. Além disso, por que usar recursos que podem ser facilmente rastreados pelas autoridades? Ainda que esses recursos tenham sido utilizados dessa forma, por que o aplicativo Onde Tem Tiroteio não é investigado pelas autoridades? Por que os links ao vivo que mostram operações policiais nos noticiários locais, como o Bom Dia Rio, não são encarados da mesma forma?

O Fantástico também divulgou outras provas usadas pelo Ministério Público no processo: uma postagem de Rennan no Facebook com os 10 mandamentos do Comando Vermelho e duas fotos em que ele aparecia portando fuzis. No vídeo, é possível ver que Rennan, ao publicar uma imagem com os 10 mandamentos daquela facção, usou a seguinte legenda: “Só leia a segunda Lei não preciso falar mais nada”. A passagem à qual Rennan faz referência diz: “Não cobiçar a mulher do próximo”. Ou seja, pelo contexto da postagem, não é possível afirmar com precisão uma possível intenção criminosa de Rennan. Assim, mais uma vez, o que determinou o suposto caráter ilícito de sua conduta foi a interpretação feita pelo agente da lei.

Sobre as fotos em que o DJ aparece portando armas, a matéria reproduziu a explicação dada pela defesa de Rennan, segundo a qual as fotos foram tiradas durante o carnaval de 2013 e que armas eram feitas de madeira e fita isolante. Em seguida, a reportagem afirma que ele foi absolvido em primeira instância, limitando-se a dizer que a juíza responsável pelo caso considerou que havia falta de provas, sem mencionar outras fragilidades do processo (que é possível ler no vídeo), como fato de que os depoimentos das testemunhas ouvidas na delegacia não terem sido ratificados em juízo e que as informações prestadas pelo policial militar se baseiam apenas em “ouvir dizer”, sem que ele sequer identificasse minimamente suas fontes.

Em seguida, o repórter enfatizou que Rennan foi condenado por unanimidade em segunda instância, destacando que o relator do processo afirmou que o DJ manteve um “envolvimento estável” com o tráfico e que ele se utilizava de sua função nos bailes para propiciar tal atividade. Só então, a matéria abriu espaço para que Luiz Guilherme Vieira, representante da OAB do Rio, falasse sobre o processo. No entanto, o repórter Murilo Salviano introduziu a fala do entrevistado ressaltando que, para a OAB, “não há provas suficientes para comprovar a ligação de Rennan com o tráfico”. Ora, depois de apresentar uma narrativa repleta de suspeitas confirmadas por autoridades públicas sobre a vida do DJ, tal comentário tem o nítido intuito de deslegitimar a crítica de Luiz Vieira. Aliás, sua fala teve meros 16 segundos de espaço na matéria, sendo que os jornalistas responsáveis pela edição da entrevista selecionaram um trecho em que ele afirma que houve a criminalização da cultura popular, sem que tal argumento fosse minimamente desenvolvido.

Ataque ao lazer da classe trabalhadora

Diante de tudo isso não restam dúvidas de que a perseguição a Rennan da Penha e ao Baile da Gaiola possui um sentido de disciplinarização sobre o lazer e os modos de vida da classe trabalhadora que, mais uma vez, é corroborado pela mídia burguesa. A insistência de Rennan (e de outros como ele) em proporcionar um espaço de lazer auto organizado e de valorização das manifestações culturais produzidas localmente a despeito da ausência de políticas públicas nesse sentido pode ser apontada como o verdadeiro motivo de sua prisão. Num contexto social marcado pelo avanço do reacionarismo e da barbárie praticada pelo Estado contra as populações faveladas, a prisão de Rennan possui um peso simbólico muito grande, pois, assim como o assassinato de Marielle Franco, a tentativa de sufocar tudo o que ele representa tem como objetivo inviabilizar o surgimento de outros espaços autogeridos pelas populações faveladas.

É preciso reagir com mais força

A matéria foi ao ar três dias após a realização de um ato cultural em apoio ao DJ no Circo Voador, onde diversos artistas e representantes de movimentos sociais saíram em defesa de Rennan, denunciando o caráter racista de mais esse ataque ao funk carioca. Esse foi um primeiro passo para reunir aqueles que compreendem a gravidade do que aconteceu e que querem se mobilizar pela liberdade de Rennan, de todos os funkeiros e de toda a juventude negra.

O fato de Rennan ter sido abraçado pelo Circo Voador e por movimentos sociais ressaltou a sua posição de artista, e incomodou aqueles que desejam calar a sua voz (como a reportagem do “Fantástico” evidencia). Mas é preciso ir além, pois nem a absolvição de Rennan em primeira instância, nem seu reconhecimento social como artista foram suficientes para que a ministra Rosa Weber, do STF, concedesse habeas corpus ao DJ, deixando nítido o caráter político de sua prisão. Por isso, se o ataque a Rennan e ao funk são políticos, é de uma resposta política que precisamos dar.

Marcado como:
DJ Rennan / funk