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EDITORIAL

O massacre em Paraisópolis e a política racista da PM de Doria

Editorial de 03 de dezembro de 2019

O Baile da DZ7 (Dezessete), que ocorre há mais de dez anos no mesmo local, ainda reunia em torno de 5 mil jovens e adolescentes na madrugada do último Domingo (01), quando a PM iniciou a emboscada que tirou 9 vidas, entre 14 e 23 anos, sem nenhum direito à defesa.

Gustavo, o caçula, Dennys, Denys, Marcos, Luara, Gabriel, Eduardo, Bruno e Mateus não são apenas nomes no noticiário, mas jovens no início de suas vidas, que saíram de casa para se divertir e deram de cara com a política de extermínio patrocinada pelo governo Doria. Política que, naquela madrugada, assumia o infeliz nome de “Operação Pancadão”, que criminaliza os bailes funks para poder impor o terror policial nas quebradas.

Os vídeos que registram o desespero dos jovens encurralados em vielas estreitas, sendo espancados pela polícia enquanto eram comprimidos uns contra os outros são quase insuportáveis de se ver. Outro vídeo mostra os policiais, já depois da dispersão brutal do baile, torturando dois jovens completamente indefesos em um verdadeiro beco sem saída. Em outro, no início do cerco dos policiais, mostra centenas de jovens recuando diante do avanço da PM, enquanto recebiam pancadas de cassetete, tiros de bala de borracha e bombas de efeito moral. Por fim, vale assistir ao vídeo que antecede a ação policial, onde milhares de jovens, em sua ampla maioria negros e negras, quase todos de alguma periferia da Grande São Paulo, dançavam e se divertiam, como milhares de outros jovens, brancos, faziam nas baladas e ruas de classe média sem serem incomodados pela polícia racista.

Comando da PM alega perseguição que ninguém viu

Como no caso do assassinato da menina Ágatha pela PM do Rio de Janeiro, ou no caso dos mais de duzentos tiros contra o músico Evaldo e a sua família realizados pelo Exército também no Rio, a declaração do porta-voz da PM não fugiu ao padrão: alegou que, supostamente, os policiais estariam perseguindo dois suspeitos em uma moto quando esses suspeitos teriam entrado no meio do baile funk para utilizar os jovens como escudo humano. Nesse momento, ainda segundo a PM e o delegado do 89o DP, os policiais teriam sido recebidos pela multidão com pedradas e garrafadas, o que teria desencadeado uma ação de controle de distúrbio civil para proteger a integridade física dos policiais.

Ocorre que os disparos que esses suspeitos supostamente teriam realizado contra a polícia não foram ouvidos por ninguém, tampouco a perseguição foi vista pelos mais de cinco mil presentes, assim como os dois suspeitos não foram presos nem identificados, sem contar que essa moto que teria entrado no meio da multidão não atingiu ninguém e tampouco foi vista pelos moradores e frequentadores do baile ou encontrada e apreendida pela polícia. Também espanta que essa suposta perseguição inesperada e fortuita tenha recebido o apoio de 38 PM’s de patrulha, nenhum deles registrando ferimentos até o momento, e que não tenha resultado em nenhuma detenção de frequentadores suspeitos de terem atacado a PM. Ou seja, a narrativa dos representantes do Estado, além de inconsistentes e carentes de qualquer prova ou evidência, contradizem todas as imagens, relatos, entrevistas, vídeos, e mais parecem terem sido improvisadas como uma primeira resposta ao caso que está gerando comoção nacional.

Mas a pergunta que devemos fazer precisa ir um pouco além das (falta de) evidências: ainda que o relato do Comando da PM e do delegado fossem reais, o que justifica a utilização de um método de sufocamento da multidão sem qualquer previsão de rota de fuga, a perseguição aos frequentadores nas vielas, os espancamentos e as torturas registradas e relatadas, que não uma política de (in)segurança pública que autoriza e estimula a violência e a execução sumária feita por policiais?

Uma breve análise das declarações de João Doria, desde a sua campanha a governador do estado de São Paulo, ajuda a responder à pergunta. Em entrevista no ano passado (2018), ainda como candidato, Doria afirmou que, sob o seu comando, a PM Paulista iria “atirar para colocar no cemitério”, e que ele pagaria “uma boa defesa” aos policiais acusados de matar. Em evento recente, no último dia 25 de Novembro, após apresentar a sua “Política Estadual de Segurança Pública” e retirar dela qualquer orientação à redução dos assassinatos provocados por policiais (que contraditoriamente constava nas políticas oficiais dos últimos vinte anos no estado), afirmou que “a redução da letalidade policial no estado pode acontecer, mas não é uma obrigatoriedade”. Por fim, em entrevista realizada pouco mais de um dia após a chacina promovida pela polícia em Paraisópolis, reafirmou que a sua “política de segurança pública não vai mudar”. Ou seja, autorizou que o massacre de negros e negras nas periferias podem continuar acontecendo.

Outro fato que merece a nossa atenção é o relato feito por moradores e representantes da comunidade de que a repressão policial na Favela do Paraisópolis intensificou-se ainda mais a sua truculência habitual desde o dia 02 de Novembro, um dia após a morte de um policial em confronto nas proximidades da comunidade, e que diariamente moradores eram ameaçados por policiais de que a favela iria pagar pela morte de seu colega de farda, prática já conhecida em outros casos que envolvem a morte de policiais, que em muitos casos resultam em chacinas nas periferias, sempre envolvendo inocentes para deixar como lição do terror policial à comunidade.

A criminalização dos bailes funks, as batalhas de rap e o direito à cidade dos jovens das periferias

No último dia 23 de Novembro, o DJ Rennan da Penha, criador do Baile da Gaiola no Rio de janeiro, foi solto após permanecer preso desde Março deste ano, beneficiado pela decisão do STF que mudou o entendimento sobre a prisão automática após condenação em segunda instância. A acusação contra ele, baseada em nenhuma prova e recheada de preconceitos e ideologias, eram de associação ao tráfico de drogas, que suas músicas fariam apologia às organizações criminosas e ao uso de drogas, e que o baile que ele organiza, que chegava a atrair cerca de 20 mil pessoas em cada edição, na verdade seria uma isca para o comércio de drogas ilícitas, num argumento muito similar ao de Doria quando anunciou a sua “Operação Pancadão”. Somente neste ano, o Baile da DZ7 já tinha sido alvo de 45 ações policiais.

O que temos visto, no entanto, é o aumento da criminalização das iniciativas culturais periféricas, construídas pela juventude negra. Além dos “fluxos” de funk, também as batalhas de rap, saraus e festas organizadas nas quebradas tem sido alvo cada vez mais frequente da violência policial. Aliás, essa história vem de longe no Brasil. A capoeira já foi criminalizada, as rodas de samba já foram criminalizadas, os bailes black eram infiltrados por agentes da ditadura militar-empresarial, da mesma forma que o funk e o hip hop são caçados hoje. O Estado brasileiro aprendeu com a história que quando negros e negras se reúnem, se identificam e se aquilombam, conseguem vencer o discurso racista que desumaniza os corpos negros para justificar a sua superexploração, a maior exposição à pobreza e a falta de acesso aos serviços públicos, além do genocídio do povo negro.

Por outro lado, o funk, que é um dos patrimônios culturais do nosso país, é frequentemente rebaixado a uma “subcultura” associada à criminalidade e a hiperssexualização, conceitos que servem para justificar a repressão e a falta de estímulo à criação de equipamentos e políticas públicas que possam ser usados como ferramenta para a produção cultural e a auto-organização da juventude negra das periferias.

O AI-5 defendido por Paulo Guedes e família Bolsonaro chegou antes nas periferias

O assassinato de civis provocado por policiais aumentou 15% no primeiro semestre no estado de São Paulo, segundo informação do Instituto Sou da Paz. De cada três mortes violentas ocorridas no estado governado por Doria, uma foi realizada por um policial em serviço, sem contar aquelas efetuadas por policiais em horário de folga nos bicos, milícias e grupos de extermínio.

O Estado brasileiro historicamente tratou como indesejáveis os negros e negras no nosso país. Desde o fim da escravidão oficial, houve uma política de embranquecimento estimulada pelo incentivo estatal à imigração europeia para o trabalho assalariado e a agricultura familiar, que buscava “substituir” os negros e negras como mão-de-obra para que o país pudesse se desenvolver. Ao longo do século XX, a política mudou, até porque a população de negros e negros continuou aumentando, e a política do embranquecimento foi substituída pelo mito da democracia racial, que nega o racismo e o fato de que a desigualdade social do país está diretamente relacionada à cor da pele e à “falsa abolição”. Hoje, com a chegada ao poder do governo neofascista de Jair Bolsonaro, temos um presidente declaradamente racista, ligado a milicianos, que nega as conquistas do povo negro e da população quilombola, como as cotas e as demarcações de terra, além de ser o principal propagador da política de morte como meio de responder à crise social que assola o país.

Combinada a uma política econômica que aumenta a cada dia a quantidade de pessoas em situação de vulnerabilidade social, que não por coincidência são em sua ampla maioria negros e negras, está em curso um reforço da política de genocídio do povo negro, tendo como alvo prioritário o extermínio da juventude negra e o encarceramento em massa baseado na guerra às drogas, abraçada pela grande maioria dos governadores do país, tendo Doria e Witzel (RJ) como os seus principais expoentes, mas que também conta com o apoio até mesmo de governadores do PT, como Rui Costa, da Bahia.

É por isso que precisamos exigir a imediata responsabilização de toda a cadeia de comando da PM de São Paulo, que foi responsável pelo massacre em Paraisópolis, e não somente uma possível punição dos policiais que atuaram diretamente na chacina, pois eles estavam cumprindo ordens expressas do comando da PM e de seu comandante-em-chefe João Doria.

Também é urgente repudiar e exigir a revisão completa dos protocolos de atuação da PM, com participação efetiva da comunidade e entidades dos direitos humanos, como parte da luta pela desmilitarização das polícias militares, indo no sentido oposto ao excludente de ilicitude defendido por Bolsonaro e Moro, que dá segurança jurídica às execuções policiais.

Também é de fundamental importância fomentar a auto-organização das comunidades e da juventude negra para que possam lutar para garantir espaços e recursos para iniciativas culturais nas periferias, além da luta por conquistar o direito à cidade, ao emprego, aos serviços públicos de qualidade, incluindo o de ir-e-vir sem o cerceamento imposto pelos altos custos do transporte, mas também pelo racismo institucional.

Por fim, é preciso cercar de solidariedade os moradores do Paraisópolis e de todas as quebradas desse país, que têm sofrido diariamente com a violência racista que só neste ano nos tirou centenas de vidas, como a do músico Evaldo, a menina Ágatha, o menino Lucas, sem contar as vítimas que não aparecem nos jornais, que são as famílias destruídas e as comunidades desagregadas pela violência policial.

Como nunca é demais dizer: vidas negras importam!