Seria impossível escrever uma coluna essa semana sem que o tema estivesse ligado ao aniversário do golpe militar de 1964 no dia 1 de abril – seja porque o Presidente da República incitou que quartéis por todo o país comemorassem o momento da instauração do regime de terror criado na época, seja porque na mesma semana passamos pelo aniversário de assassinato de Martin Luther King em 1968.
O momento atual do país nos obriga a retomar discussões históricas e atuais. Por isso, a ideia aqui é contribuir com o debate sobre o desenvolvimento do movimento negro durante a Ditadura.
Os Panteras Negras e os rebeldes nas colônias
Em uma pesquisa simples e rápida, é possível identificar facilmente como o movimento negro brasileiro, na década de 1970, foi muito influenciado por dois movimentos que quebravam paradigmas à seu tempo: o movimento pelos direitos civis nos EUA, com as figuras de Martin Luther King, Malcolm X e os Panteras Negras; e as revoltas de libertação nacional que ocorriam na África, em países como Moçambique e Angola.
“As lutas africanas abriram, para os negros do Brasil, outra perspectiva crítica da sua existência no mundo branco. O surgimento de elites negras nos EUA completou o quadro. Se o nacionalismo negro ianque embutido e importado dos EUA resgatava, aos brasileiros, sua dignidade de raça, o universalismo da libertação africana exportava dignidade política, permitindo aos ativistas negros redescobrir as massas populares e a universalidade da luta anti-racista.”
É digno de nota que a esquerda brasileira se dividiu quanto ao tema. A maior parte dela, hegemonizada pelo campo stalinista, infelizmente, entendia a identificação da vanguarda negra brasileira com os movimentos pelos direitos civis norte-americanos como uma capitulação ao imperialismo. Isso não foi um mero erro político ou uma desatenção. Era parte do programa da esquerda majoritária a compreensão de que o movimento negro era elemento de divisão objetiva da classe trabalhadora e que, portanto, deveria se diluir no movimento tradicional de trabalhadores. Ao mesmo tempo, é justo também dizer que uma fração minoritária da esquerda brasileira, como a Convergência Socialista e O Trabalho, se contrapondo a tendência hegemônica, apoiou e fez parte desse importante momento da história do movimento negro no país.
Neste contexto, a formação do MNU, Movimento Negro Unificado, que depois se tornou a mais importante organização do movimento negro do país, foi constituída a partir da visão de que o capitalismo como sistema social se alimentava e aprofundava o racismo, chegando à conclusão de que a luta anti-racista era inseparável da luta anticapitalista. Foi assim que, no seio do movimento, se consolidou uma política que conjugava raça e da classe.
Em 1978 o MNU surge a partir de um ato público durante o governo de Ernesto Geisel. Essa organização surge como um movimento nacional e organizado, produto da efervescência do tema racial no Brasil e no mundo. Apesar do golpe de 1964 ter desarticulado o movimento em todo o país, o período foi permeado por ações e tentativas de articulação, como relata Petrônio Domingues:
“Em São Paulo, por exemplo, em 1972, um grupo de estudantes e artistas formou o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN); a imprensa negra, por sua vez, timidamente deu sinais de vida, com os jornais Árvore das Palavras (1974), O Quadro (1974), em São Paulo; Biluga (1974), em São Caetano/SP, e Nagô (1975), em São Carlos/SP. Em Porto Alegre, nasceu o Grupo Palmares (1971), o primeiro no país a defender a substituição das comemorações do 13 de Maio para o 20 de Novembro. No Rio de Janeiro, explodiu, no interior da juventude negra, o movimento Soul, depois batizado de Black Rio. Nesse mesmo estado, foi fundado o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), em 1976”.
Importante registrar que este texto não se propõe a fazer um balanço sobre o período tratado, menos ainda tem a pretensão de afirmar qual foi o papel que o MNU cumpriu, cumpre ou pode cumprir. Limita-se aqui a afirmar que o movimento teve fundamental importância durante o período de ascenso de lutas que culminou no fim da ditadura militar. O MNU foi um marco na história do movimento negro do país por ter se proposto a unificar as lutas dos grupos anti-racistas em escala nacional. Esse movimento conseguiu conjugar a luta anti-racista com as demandas econômicas e a luta dos trabalhadores negros e brancos por conquistas sociais e econômicas.
O mito da democracia racial como discurso oficial de estado
A tese de que o Brasil seria um país livre de preconceitos, no qual desde o fim da escravidão existe uma democracia racial plena, sempre foi uma estratégia da classe dominante. O objetivo da difusão desse mito é esconder que as desigualdades sociais e a violência policial atingem pessoas que tem raça e classe.
Durante o período da Ditadura Militar, no entanto, o mito da democracia racial dá um salto de qualidade. A visão de que não há racismo no Brasil passa a fazer parte do discurso oficial do Estado. É parte da garantia da lei e da ordem. Aquele que afirmava a existência de opressão racial no país, portanto, passa a ser um inimigo público do Brasil. Para ilustrar um pouco dessa perspectiva, podemos recorrer à alguns documentos dos órgãos de repressão da época, sistematizados por Carlos Madeiro em artigo escrito para o UOL:
“Esta foi mais uma manifestação do Movimento Negro de Salvador (MNS), que vem elaborando uma campanha artificial contra a discriminação racial no Brasil e, em particular, na Bahia”.
O Agente Militar continua:
“Ficou delineado que, em Salvador, os “centros de luta” tem por função “mobilizar, organizar e conscientizar a população negra das favelas, nas invasões (de terras urbanas), nos alagados, nos conjuntos habitacionais, nas escolas, nos bairros e nos locais de trabalho, visando a formar uma consciência dos valores de raça”.
Ou mais explicitamente, segue trecho de documento da Polícia Federal no Rio Grande do Sul:
“Esses movimentos revelam o incremento das tentativas subversivas de exploração de antagonismos raciais em nosso país, merecendo uma observação acurada das infiltrações no movimento “black”, tendo em vista que se, porventura, houver incitação de ódio ou racismo entre o povo, caberá a Lei de Segurança Nacional”.
Além do caráter explicitamente racista que se encontra nos documentos, é possível notar uma preocupação real dos militares com a possibilidade de articulação dos movimentos negros no país.
A cultura negra como uma afronta aos Militares
Se era proibido discordar da falácia de que não existia racismo no Brasil, não é nem preciso dizer que
os governos militares não aceitaram bem o fato dos negros e negras se organizarem em defesa da sua cultura. Inspirados no Soul estadounidense, os Bailes Blacks tomaram conta da cena musical brasileira.
A estética do Black Power passava a se proliferar nos subúrbios do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Os bailes, que aglomeravam milhares de jovens, tinham conteúdo político, contestavam o racismo e o regime. A repressão não demorou em identificar tal movimento como subversivo, tendo tratado esses bailes sempre como um perigo à ordem, interrompendo seu funcionamento e prendendo participantes.
Ainda que fazer correlações históricas seja sempre arriscado, aqui é irresistível não traçar um paralelo dessa situação com o tratamento desempenhado pela Polícia Militar com os Bailes Funk que se espalham exponencialmente em todo o Brasil. A absurda condenação do DJ Renan, organizador do baile da gaiola, por associação ao tráfico, parece remontar aos anos de chumbo.
Na Bahia, em 1974, jovens negros moradores do bairro do Curuzu, inspirados nas lutas anti-racistas de todo o mundo, formaram Bloco Ilê Ayê. O Bloco, por ser protagonizado somente por negros, era uma contestação em si e gerou revolta em grande parte da elite baiana, dos jornais da época e das autoridades. O Bloco que quase se chamou “Poder Negro”, hoje continua a ser um dos blocos mais importantes do estado e do país como uma referência de organização cultural negra.
É impossível falar de movimento negro, de cultura e de contestação no século XX no Brasil sem falar do nome de Abdias do Nascimento. Intelectual, artista, ex-militar, ativista, poeta e tantas outras características. Abdias é um ícone do país, ainda que sua história e sua importância no período da Ditadura sejam muitas vezes invisibilizadas. Abdias foi inspiração para diversos jovens negros, tendo sido obrigado a sair do país no início da Ditadura militar. Ele só pôde retornar 13 anos depois. Do exterior, sempre denunciou as arbitrariedades do regime militar e o racismo no Brasil. Quando voltou, buscou ser interlocutor do Movimento Negro na política e no Congresso Federal após a Ditadura Militar.
Não podemos encerrar essa parte do texto sem chamar a atenção para um ponto. É claro que o caráter de contestação ao regime nos movimentos culturais negros existiam dentro de um contexto amplo de insatisfação generalizada com a ditadura. O papel que esses movimentos culturais cumpriram, no entanto, foi frequentemente apagado pela história oficial do país. Suas músicas e expressões culturais raramente são retratadas nos livros e filmes sobre o período. Nada contra a MPB, ao contrário, o movimento cultural deu importantes contribuições artísticas e políticas para o Brasil. Mas é muito injusto que esse movimento seja retratado como único protagonista cultural de contestação ao regime militar.
Para que não reste dúvida do papel que essas movimentações tiveram, deixamos com a palavra a SNI (Serviço Nacional de Informação), que em julho de 1978, dizia:
“os órgãos de informações tiveram suas atenções despertadas para a proliferação, nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, de associações culturais destinadas à propagação da cultura negra no Brasil.”
O fim da Ditadura
Como se sabe, o regime ditatorial no Brasil começa a ser cada vez mais enfraquecido a partir da segunda metade da década de 1970. A rearticulação do movimento negro não era um raio em céu azul. O movimento de luta no campo começa a ganhar força, os jornais e folhetos de contestação começam a se proliferar pelo país todo. Jovens liberais e republicanos passam à oposição aberta ao regime.
O movimento operário, no entanto, tem papel de destaque. As greves e rebeliões operárias no ABC, maior complexo industrial do país, abalam as estruturas da sociedade brasileira. O movimento arrasta atrás de si camadas gigantes de trabalhadores em todo o país. A Ditadura estava ameaçada. Poucos anos depois o movimento pelas “Diretas Já” hegemoniza à sociedade brasileira e, realizando passeatas monumentais, derrota a ditadura.
O movimento negro, o povo negro, os trabalhadores negros aos milhões, atuam e participam de todo esse processo. Afinal, o “milagre econômico” se deu às custas do aprofundamento da desigualdade social, prejudicando ainda mais os setores mais empobrecidos da população, que também tem raça e classe.
Como se sabe, a transição do regime foi altamente controlada e pactuada pela classe dominante. Isso não nos impede de reconhecer avanços sociais importantes, consagrados na constituição de 1988. Houveram avanços fundamentais na garantia de direitos básicos ao conjunto da população, que hoje, diga-se de passagem, são alvo da rapina e ganância da classe dominante e dos governos de plantão.
O dia 13 de maio de 1988, data do centenário da abolição da escravatura, foi um momento determinante para história de nosso país. O movimento negro tomou as ruas do Brasil, questionando abertamente a historiografia oficial, na qual o fim da escravidão foi produto de uma benesse da elite do país. No ano da constituinte, os militantes do movimento negro apresentaram propostas e obtiveram importantes conquistas: a criminalização do racismo e os direitos raciais foram pautados no texto constitucional, contrariando a política de Estado de democracia racial do regime militar. A partir disso, foi possível ampliar a luta por cotas raciais no ensino superior e em alguns concursos públicos. Além disso, a disciplina História da África foi incluída no currículo escolar.
Uma continuidade dolorosa
Sem intenção de fazer um balanço profundo sobre os avanços e limites do processo da redemocratização, limito-me aqui a tratar sobre um tema específico, que uma vez não resolvido à época, ampliou-se e, hoje, é tema candente e explosivo na sociedade brasileira: a violência policial nas periferias do país e o aumento do encarceramento em massa.
Os grupos policiais de extermínio formados durante a ditadura existem até hoje, tomando contornos dramáticos em locais como o Rio de Janeiro, que atualmente tem parte relevante de seu território dominado pelo crime organizado, no caso, as conhecidas Milícias.
É importante nos atentarmos para o fio de continuidade da violência contra a população negra e nosso país. Hamilton Cardoso chama atenção para “a tradição de torturas e violência policial iniciadas durante a escravidão contra os rebeldes das senzalas e que continuaram, inclusive nos brasis democráticos de depois da escravidão, contra os desregrados das favelas, cidadãos comuns e quase sempre não brancos – negros, mestiços, índios e outros”. Uma análise completa da violência policial do Regime Militar, precisa compreender não só a repressão contra a liberdade de associação, de expressão e do direito de ir e vir, como também a repressão contra as camadas mais discriminadas da sociedade na periferia.
Reconhecendo a importância fundamental de dar visibilidade aos ativistas políticos negros que lutaram contra Regime Militar, como o Osvaldão, que nunca teve seu corpo encontrado, é preciso chamar atenção para um outro ponto: grande parcela da sociedade sofria e sofre tal violência por “crimes comuns”, que nunca deixaram de ser políticos no Brasil. O racismo institucional e nossa brutal desigualdade social, levou e leva para as cadeias milhares de negros sem julgamento. O judiciário brasileiro reproduz a lógica racista de que as pessoas negras são potencialmente criminosas. Não é por acaso que a maior parte do texto constitucional sobre o tema de segurança pública foi escrito pelos próprios militares.
Somente com uma análise completa podemos nos atentar para a gravidade de um fato que novamente Hamilton Cardoso nos chama atenção: “[…] os movimentos negros perderam uma batalha, nas plenárias do Comitê Brasileiro de Anistia. A palavra de ordem “Anistia Total, Ampla e Irrestrita e revisão das penas dos presos comuns” foi cortada pela metade”. Retiraram do texto a parte da revisão das penas dos presos comuns. “À sociedade restou apenas refletir sobre as confissões sob torturas realizadas pelo DOPS. As delegacias de bairros e seus torturadores continuaram impunes.”, como concluiu Hamilton sobre esse tema.
Assim, a expectativa de que a volta da democracia poderia inaugurar o início do fim do racismo no país, caminhando rumo a uma democracia racial de fato, não foi confirmada. A violência, a tortura, o genocídio contra a população negra seguem a todo vapor 31 anos após a Constituição de 1988 e 121 anos após a formal abolição da escravatura.
O que fazer no próximo 13 de maio?
É inquestionável que emerge uma nova geração do movimento negro no Brasil e no mundo. Há poucos dias marchamos por todo o país denunciando o assassinato, celebrando a vida, defendendo o legado e exigindo saber quem é o mandante do assassinato de Marielle Franco. A vereadora do PSOL tinha como uma de suas principais áreas de atuação a luta contra a violência de Estado, em defesa da vida da juventude negra e periférica. A palavra de ordem “Marielle virou semente” não é simplesmente uma frase bonita. Hoje, em todas as periferias do país, nos mais precários locais de trabalho, nos cursinhos populares, nos Slams, nas escolas de samba, nos colégios públicos… Brotam jovens, mulheres e homens, dispostos a levar adiante o seu legado.
Vive-se uma conjuntura muito difícil no Brasil de hoje. O Governo Bolsonaro é entusiasta da violência policial, é defensor aberto dos grupos de extermínio e do genocídio que ocorre nas periferias do Brasil. Seu Ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou um pacote anti-crime ao Congresso Nacional, que não se trata do combate à corrupção ou ao crime organizado. Na verdade, significa legalizar as práticas de violência policial, assassinatos na periferia e mortes de policiais, inclusive.
Vivemos um momento parecido com o que a geração anterior viveu em 1978. O movimento Black Lives Matter, por exemplo, é motivo de inspiração para os ativistas brasileiros, assim como a luta contra o racismo e autoritarismo no Brasil é acompanhada diariamente por milhares de jovens norte americanos. A geração anterior sob a ditadura militar, a nossa sob o governo Bolsonaro, luta contra o racismo e contra a brutal desigualdade social brasileira. De uma forma ou de outra, a luta de hoje é a continuidade da de ontem.
Em 2019, nos deparamos com perguntas parecidas com a que se depararam aqueles jovens na época. Como organizar todo o potencial da resistência negra que (r)existe em todo o país? Como conectar a luta anti-racista com as demais lutas e demandas em curso na sociedade brasileira? Qual bandeira e método de luta devemos levantar?
Essas perguntas não podem ser respondidas rápida ou individualmente. Os desafios são muitos, os inimigos são poderosos. Para concluir essa reflexão inicial, limito-me a terminar o texto com a mesma pergunta que foi tão fundamental para a rearticulação do movimento negro em 1978: o que fazer no próximo dia 13 de maio?
Arrisco-me aqui a propor duas iniciativas, entendendo a data como um dia de protesto, não de comemoração: Em um momento em que há revisionismo histórico reacionário em todas os âmbitos, devemos buscar a aglutinação de todos os setores da resistência negra, para negar a mentira de que a abolição da escravidão é produto de uma concessão da elite, personificada em uma princesa. Ao mesmo tempo, em relação a atualidade, devemos centrar forças na luta pelo legado de Marielle e todos que tombaram e tombam no sistema racista e genocida que vivemos. É urgente contestarmos o Pacote Anti-Crime do Ministro Sérgio Moro e levantarmos alto a bandeira anti-racista e anti-genocida!
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