Em fevereiro de 1971, o jornalista Sebastião Nery, na época militante do Partido Comunista Brasileiro – então na clandestinidade –, publicou no Jornal Tribuna da Imprensa uma nota na sua coluna afirmando que seus colegas e seu filho cantavam a música “Apesar de Você”, do Chico Buarque, com tanta emoção que era como se estivessem cantando o Hino Nacional.
Por conta desse artigo, o jornalista foi chamado a depor na polícia. Semanas depois a música foi censurada pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici e só liberada para ser executada oito anos mais tarde, durante o final do governo do general Ernesto Geisel.
Lembrei dessa música cheia de metáforas e meias-palavras quando vi no jornal que Bolsonaro determinou ao Ministério da Defesa comemoração do Golpe de 1964 no próximo 31 de março, dia em que completará 55 anos do Golpe que deu início ao regime militar no país.
A notícia é, no mínimo, profundamente lamentável e condenável. No entanto, presumo que só pode ter causado surpresa aos incautos. Digo isso porque o atual Presidente nunca escondeu que, para ele, não houve ruptura antidemocrática por parte dos militares em 1964, apesar de no dia 31 de março desse ano o então Presidente João Goulart ter sido deposto pelos militares e, após o ato, não ter ocorrido eleições diretas para Presidente, o Congresso Nacional ter sido fechado, mandatos e militantes terem sido cassados, a imprensa e os artistas terem sido censurados, iniciando uma longa e sombria noite que durou 21 anos.
Bolsonaro acumula na sua história uma série de declarações de apologia à ditadura e seus torturadores. Em 2016, em plena votação no Congresso – em uma das fases do Golpe que derrubou a então Presidenta Dilma – as câmeras da suposta “casa do povo” mostraram o capitão votar sim por Brilhante Ustra. Ustra de brilhantismo não possuí nada. Este sujeito é um dos mais conhecidos assassinos e torturadores da ditadura. Foi um coronel e chefe do maior órgão de repressão política durante o período, o DOI-CODI.
Uma das atrocidades cometidas por Ustra é relatada pela vítima, Amélia Teles, presa nos porões do regime. Amelinha, como é mais conhecida, conta que o torturador levou os filhos dela para que vissem a mãe torturada. Seus filhos tinham quatro e cinco anos e viram a mãe nua, vomitada e urinada, sentada na “cadeira do dragão” (instrumento de tortura utilizado na ditadura parecido com uma cadeira em que a pessoa era colocada sentada e tinha os pulsos amarrados e sofria choques em diversas partes do corpo com fios elétricos). A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Estava assim por conta dos choques que Brilhante Ustra infringiu em várias partes do corpo dela, dentre elas nos seios e na vagina. É esse o homem homenageado por Bolsonaro, enaltecido também pelo seu vice, o general Mourão, que definiu Ustra como um “herói”.
Ustra morreu em 2015, aos 83 anos de idade, sem nunca responder por seus crimes. Apesar disso, muitos brasileiros, que parecem desconhecer o tamanho das feridas da ditadura, não deixaram de dar apoio ao torturador e ao seu fã, Bolsonaro, durante as eleições presidenciais.
Em maio de 1999, Bolsonaro defendeu o fechamento do Congresso realizado na ditadura: “deviam ter fuzilado corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique”, afirmou escancarando a sua veia autoritária. Já disse também que “o erro da ditadura foi torturar e não matar”.
Não são só Bolsonaro e Mourão que não perdem uma oportunidade de propagandear as suas monstruosidades semânticas. Em outubro de 2018, na Faculdade de Direito da USP, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Sr. José Antônio Dias Toffolli, bradou que não teria ocorrido um Golpe militar no País, mas sim o que definiu como “movimento de 1964”. No mesmo dia esse senhor, que demonstra desconhecer a bibliografia historiográfica sobre o regime e a Convenção Americana de Direitos Humanos, proibiu que a Folha de São Paulo entrevistasse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, afrontando ao direito à liberdade de expressão do protagonista da entrevista, assim como do meio de comunicação.
Como se não bastasse, nesta quarta-feira (27), o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, no clima de estupidez dos seus companheiros, afirmou que não considera ter ocorrido um “Golpe” no país em 1964.
Para amplificar a mensagem de Bolsonaro, a líder do governo na Câmara, Joice Hasselman, tuitou: “A esquerda raivosa e os bonecos de ventríloquos estão em polvorosa por causa da decisão do governo de autorizar as comemorações devidas ao Março de 1964. Podem berrar. O choro é livre e graças aos militares, o Brasil também!”.
Em 2011, a então Presidenta Dilma, que foi torturada durante o regime, havia suspendido qualquer celebração da data, mas agora, numa época em que há o maior número de militares nos altos escalões do governo desde a ditadura, Bolsonaro escancara o cadáver insepulto com a celebração ao Golpe.
Ainda que seja algo esperável desses atos falhos ambulantes defensores caninos do capital e lambedores de botas de milico, comemorar o Golpe de 1964 e a ditadura, que tanto sacrificou a população brasileira, é um ato grotesco e condenável a prisão. Segundo a Comissão da Verdade, 434 pessoas foram mortas pelo regime militar ou desapareceram durante o período, dos quais somente 33 corpos foram localizados.
A ditadura que o nosso país sofreu é um cadáver que não foi sepultado por conta de um processo de redemocratização pautado pela conciliação pelo alto que anistiou os torturadores, ditadores e apoiadores do regime, como o empresariado, grandes meios de comunicação, banqueiros, etc.
É fundamental, por isso, fazermos justiça e constituirmos uma memória nacional que evidencie o quão drástico foi o regime militar, de forma que a população constitua anticorpos contra qualquer um que ouse fazer uma homenagear ao período e aos seus protagonistas; e para que a nossa sociedade nunca cogite a intervenção militar.
Sabendo disso, uma série de estudantes e trabalhadoras e trabalhadores da educação, em universidades e escolas por todo o país, farão nos próximos dias encontros e atividades para descomemorar o Golpe de 1964. Isso já foi feito no passado, porém, nos dias atuais, assume suma importância por vivermos num momento em que temos na presidência e em outros altos escalões do governo sujeitos fascistas e por a cada dia que passa tomar forma no horizonte a terrível ameaça fascitizante. Obviamente, isso o que está sendo feito principalmente pelas educadoras, educadores e estudantes é fundamental, mas deve ser interpretado como um paço curto na caminhada.
Como muita gente da área de história sabe muito bem, devemos ir além. A Argentina é um exemplo positivo neste sentido. Esse país marcou a história ao processar e julgar os integrantes do aparato repressivo da ditadura que assolou o povo argentino entre 1966 e 1973, deixando marcas até hoje. Além disso, fizeram uma série de centros de memória, dentre outras políticas públicas de reflexão e escancaramento do regime.
Acima de tudo, acho que nós, militantes de esquerda, temos o dever de nos mantermos firmes. Digo isso porque, diante de atrocidades como essa comemoração oficial do golpe de 1964, diante da reforma da previdência, diante de tudo o que significa a eleição de um boçal como o Bolsonaro, vejo muitas pessoas caírem em um estado de melancolia.
Uma sociedade despida da crença do seu próprio poder de transformação é uma sociedade melancólica. Se entendi bem, Freud apontou que a melancolia seria um distúrbio na autoestima relacionado a perda de um objeto, sendo que tanto “perda” quanto “objeto” devem ser compreendidos em um sentido amplo. Diferentemente de um estado de luto, quando ocorre o processo normal de retirada da libido do objeto perdido e a seguir seu deslocamento para outro objeto, os melancólicos identificam-se com o objeto que tinha sido perdido e desloca para si próprio críticas que deveriam ser dirigidas ao objeto. Ao mesmo tempo que ocorre essa depreciação do eu, há um processo de supervalorização e idealização do objeto perdido.
Esse estado de melancolia que aparentemente percorre a sociedade é preocupante, porque os indivíduos, mergulhados nesse distúrbio, não se veem na capacidade de transformar a realidade. Depreciam o eu não se percebendo como sujeitos históricos capazes de transformar e, concomitantemente, agigantam o objeto a ser transformado. A incapacidade de ser afetado de outras maneiras, consequentemente, impede as pessoas de vislumbrarem um futuro que não seja Black Mirror (Netflix).
As séries, produção cultural com maior poder disseminação na atualidade, representam bem essa distopia: são cada vez mais sombrias, quando não apocalípticas, como se vê em “The Walking Dead (AMC)”.
Arrisco dizer que essa distopia tem origem na sensação de se estar de mãos atadas – que, aparentemente, permeia em demasia a sociedade atual. Há muitos outros fatores que levam ao fatalismo. A crescente ideia de que o nosso poder de ação no mundo é ínfimo pode ser um deles. Ou seja, frequentemente o sujeito teme o que virá e no fundo acha que pouco, ou até mesmo nada, pode ser feito para que seja diferente. “O inverno está chegando”, frase da série de “Game of Trones (HBO)”, expressa bem isso.
Tendo em consideração isso, é preciso entender com clareza que, apesar do governo Bolsonaro, amanhã há de ser outro dia, desde que construamos uma organizada e sólida luta contra essa barbárie. Não podemos facilitar as coisas para os bárbaros.
Tudo indica que as cruzadas anticomunistas e contra os direitos históricos e arduamente conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora se tornarão cada vez mais frequentes – em novas e ferozes versões. Com os “aparatos legais”, com a polícia, retiram direitos e intimam jovens e velhos de mãos desarmadas, por medo das palavras de uma gente que não faz o jogo sujo dos poderosos e que não lambe as botas de duran. Por tudo isso, a liberdade ideológica e de expressão determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia.
Ainda que esse retrocesso avance, a Casa Grande se ilude ao crer que estamos acuados. Todos nós estamos com a cabeça já pelas tabelas por causa da exaberção do preconceito classista e da amargura provocada pela consciência emergente de injustiça social. Ao trabalhador que corre atrás do pão, é humilhação de mais que não cabe neste refrão, captou muito bem Criolo em sua música. Engana-se quem acha que, diante de tudo isso, ficaremos quietos. De fato, existe uma parte da esquerda (melancólica) que está acuada, mas também há uma frente se formando que não deixará pedra sobre pedra até que ocorra a decomposição do instituído.
Estamos gradativamente entendendo com mais clareza que o mundo de hoje é apenas um momento do longo processo histórico e a convivência pode sim ser mudada. Estamos gradativamente compreendendo que podemos e devemos botar de pé uma outra sociedade, uma sociedade que opere em outra lógica, porque a atual que temos, profundamente mergulhada em injustiça social, está nos matando. Se enganam, assim, as múmias que acham que os últimos acontecimentos marcaram o fim da história e que agora podem tomar para si os recursos públicos e fazerem com eles o que bem entenderem. A história não está dada e a luta mal começou. Não adianta vir com um cale-se, pois, como na lenda da “Hidra de Lerna”, onde abatem uma cabeça, nascem milhares de outras. Estamos, enfim, gradativamente mais entrincheirados com as armas da crítica e prontos para o combate.
Assumimos essa postura porque não existe mais espaço para conciliação de classes. Não existe mais espaço para o discurso do nós, sem nós. Um desejo de reconfiguração da cena política, portanto, cresce a cada dia. Não aceitamos mais a velha ordem das coisas e do progresso para os mesmos de sempre. Se não for para todas e todos, não será para ninguém. E não existirá anticomunismo que resista a força das exigências de reconstrução política, de eliminação da corrupção e do descontentamento muito difundido com relação aos mecanismos políticos, que percorrem de alto à baixo a população brasileira. Esse desejo de mudança corroerá as estruturas.
Nesse processo, podem até tentar nos enterrar, mas saibam desde já que somos sementes.
Comentários