A ditadura e eu: para meu pai Gerson e minha mãe Creusa

Ge Souza, do Rio de Janeiro, RJ

Imagem ilustrativa. Paulo Roberto Jabour, anistiado, deixa o presídio Milton Dias Moreira, no Rio de Janeiro, ao lado do filho

Fim de tarde de 1 de abril de 1964. Meu pai entra em casa e fala pra minha mãe: acabou a liberdade. De agora em diante não podemos mais falar de política ou eu posso ser preso. A solidariedade de minha mãe veio nas lágrimas. Ela, uma simples dona de casa sabia que seu marido, ativista do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio e defensor do comunismo, estava ameaçado.

O meu medo começou neste dia e durou 20 anos. Eu tinha nove anos e fui jogada num mundo que não conhecia. Meu pai podia ser preso? Por que ninguém mais podia falar? O que era essa democracia que eu e todos estavam perdendo?

Lembro de ter querido saber mais. Meu pai gostava de me ensinar cousas da política, pra desespero da minha mãe. Da melhor maneira possível ele me explicou que o governo tinha mudado e que agora quem mandava eram os militares. Meu pai odiava os militares desde sempre. Tinha sido da Marinha. Serviu na 2ª guerra. Neste dia, proferiu a frase que eu ouviria muitas vezes: minha filha, nunca confie em quem usa farda ou batina. Nem nos bombeiros.

Confesso que achei um exagero de meu pai temer os bombeiros. Que mal poderiam me fazer? Descobri anos mais tarde que meu pai não exagerava. Quando vi a ação do corpo de bombeiros nas passeatas pela anistia, em 1979, jogando os poderosos jatos de água pra apagar incêndios em nós, os manifestantes. Jatos potentes que nos atiravam a metros de distância ou que nos marcavam com uma tinta colorida pra facilitar a ação da PM em nos identificar e prender.

Depois das primeiras lições de política e defesa dadas por meu pai, fui brincar. Aquele mundo ainda não era o meu. Mas, sei hoje que minha vida mudaria para sempre.

Meu pai, mesmo com os cuidados anunciados naquela tarde de 1º de abril, continuou militando. Se já não podia falar de política abertamente na rua, falava em casa. Passei, então, a ter uma espécie de crônica do cotidiano, diária, a partir dos comentários tirados do jornal carioca ‘Última Hora’, na maioria das vezes furiosos de meu pai contra a ditadura.

Assim começou minha vida militante. Pelas mãos de meu pai fui desenvolvendo o sentido da independência de classe, do valor da democracia e da necessidade do socialismo.  Até a morte de meu pai dez anos depois foram muitos jornais, livros e comentários que me fizeram querer fazer a escolha de ser uma militante pelo socialismo.

Entrei na universidade e me tornei militante de verdade, em uma organização política do movimento estudantil. Meu primeiro pensamento foi para meu pai. Estava seguindo seus ensinamentos, para p desespero de minha mãe. Agora teria que se preocupar e temer pela filha.

De novo senti medo. Nos primeiros dias de aula, fui à Universidade Federal Fluminense (UFF) participar de uma reunião chamada pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), para organizar uma semana de calouros unificada de todas as universidades. A reunião foi interrompida pela Polícia do Exército, que fez um corredor polonês para nos retirar da Universidade. Neste dia, pudemos ir embora sem maiores sustos. “Não confie em ninguém de farda, minha filha”, lembrei.

Pela TV assistíamos diariamente aos desmandos da ditadura na economia, na política e em cada aspecto da nossa vida. Não podíamos falar de política, mas também não podíamos andar em grupo, usar nossas roupas extravagantes, namorar na rua, enfim, viver. As Damares, Velez e companhia vêm de longe.

Os anos seguiam cada vez mais difíceis. As perseguições aumentavam. Fui presa duas vezes. Na primeira, por namorar na rua, porque segundo o PM eu “só poderia ser prostituta por estar beijando um negro”. Na segunda, tentando viajar para o encontro de estudantes em Belo Horizonte, que tentava reconstruir a UNE. Daí em diante passei a ser seguida e ameaçada de prisão até 1993! Isto mesmo, depois de dez anos da queda da ditadura militar. Está tudo lá no dossiê da Comissão da Verdade.

A ditadura seguia seu curso. Pra frente Brasil. Ame-o ou deixe-o. Às escondidas, ou na clandestinidade, tramávamos o fim da ditadura. Tivemos mortos, torturados, exilados e desertores. A maioria de nós seguiu em frente. Lutamos de todas as formas e com todas as nossas forças. E cada dia valeu a pena. Cada dor, medo, vida e lágrimas derramadas valeram a pena.

Chegamos a 1984 e nossa luta derrubou a ditadura. Nós vencemos, Sr. Bolsonaro. Você e sua corja de torturadores assassinos foram derrotados. E, por isso, nós, os vencedores e vencedoras, não vamos permitir que você comemore, amanhã, os 20 anos em que nos oprimiram e tentaram nos calar.

Neste dia 31 de março de 2019, eu vou pra rua de novo, para gritar “ditadura nunca mais”. Vou pra a rua para honrar os ensinamentos de meu pai e as lágrimas de preocupação da minha mãe. Vou pra rua porque nossa luta não acabou e o seu governo, Sr. Bolsonaro, quer nos fazer voltar aos tempos sombrios da ditadura. Vou pra rua porque ainda não acredito em ninguém de farda, nem nos bombeiros.