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BRASIL

Qual o partido da Lava Jato?

Eduardo Tomazine, do Rio de Janeiro, RJ
Dallagnol

Uma das grandes habilidades da operação Lava Jato sempre foi usar o tempo político a seu favor, embaralhando o lado dos alvos – ora à esquerda, ora à direita – para gerar confusão e vender uma imagem de neutralidade. Com essa estratégia, estabeleceram a narrativa de que todos da “velha política” são farinha do mesmo saco, direita e esquerda se lambuzando das benesses do poder, através de um “mecanismo” cujo funcionamento emperraria o progresso do país.

É bem verdade que, com a ascensão (ou rebaixamento?) de Sérgio Moro à condição de Superministro da Justiça do governo Bolsonaro, essa aura de neutralidade foi maculada. Não, certamente, para os 49% da população que declararam, à pesquisa IBOPE de março, confiar no presidente. Para esses, o ministro Moro, a Lava Jato, boa parte da Polícia Federal e uma minoria de ministros do STF são isentos, trabalham seguindo o império da Justiça e se empenham em passar o país a limpo. Moro está no governo porque o governo é honesto e, se precisar, irá cortar na própria carne.

Existe, entretanto, uma boa parcela da população que não confia no governo Bolsonaro, mas confia na Lava Jato – e talvez apenas nela. Para esses, a prisão preventiva de Michel Temer, notório conspirador do impeachment de Dilma, é mais uma demonstração de que a Lava Jato não teria partido. Nesta perspectiva, a banda limpa da Justiça, em briga contra a suposta maioria (podre) do STF – complacente com a corrupção dos políticos –, não teria partido, se mostrando disposta, inclusive, a cortar a cabeça de Bolsonaro caso este pule a cerca para colher as laranjas do vizinho. Team Moro 2022!

Mas, afinal, a Lava Jato tem partido?

Para tentar responder a esta pergunta, recusemos, de saída, as teorias conspiracionistas. Conspirações existem, e a história já o comprovou aos montes, mas o grande jogo político (e geopolítico) não se decide fundamentalmente por conluios, e sim no atrito da ação de personagens históricos que representam interesses bem maiores do que os objetivos individuais. Para saber se a Lava Jato tem ou não partido, é preciso investigar que papel social cumpre esse estamento de jovens juízes, procuradores, delegados da Polícia Federal, desembargadoras falastronas e, a reboque deles, alguns ministros do STF – em especial, os que “jogam pra galera”.

Não que eles cumpram uma função específica e pré-determinada na sociedade de classes. Quero dizer, eles não se reduzem a essa função, que de fato existe, mas que, nesse caso, abarca a Justiça no Estado burguês como um todo. É evidente que eles cumprem a sua função no processo de reprodução social, mas, a despeito disso, é forçoso reconhecer a existência de disputas no judiciário, tanto corporativas quanto ideológicas.

Esse ator social emergente na sociedade brasileira, formado majoritariamente por jovens profissionais do Direito, de perfil social relativamente coeso – brancos, advindos da classe média para alta –, acredita na meritocracia. Crença forjada, entre outras coisas, pela experiência da fina peneira a qual foram submetidos para ingressarem em seus cargos públicos. Creem-se, acima de tudo, ideologicamente neutros e alinhados com os bons valores do seu tempo: pagadores de impostos, economicamente liberais e moralmente conservadores. Pensam agir dentro da lei, e, portanto, como dizia Aristóteles, o que é legal é justo (auxílios incluídos).

Cumpridores rigorosos da sua missão pública, estes cidadãos de bem (e bens) entendem trabalhar pela mudança do país fazendo muito mais do que o mero cumprimento da lei. Tornam-se, com efeito, justiceiros, pois acreditam poder encarnar a própria lei, consubstanciá-la em todas as suas interpretações e atos. O raciocínio é como segue: a corrupção é um mal maior que deve ser combatido a todo custo; os fins justificam os meios e, convenhamos, o mercado de doutrinas jurídicas está aí para sofismar qualquer interpretação ortodoxa da lei; eu sou um alto funcionário da lei e, portanto, la lois c’est moi.

A partir dessa justificativa moral, tudo se legitima em nome do combate à corrupção: a obtenção de provas torturando a interpretação dos limites da legalidade; o timing perfeito de vazamentos, conduções coercitivas e prisões preventivas sem fundamentação sólida; a assinatura de cooperação com a Justiça de outros países para o financiamento de fundações privadas, subvertendo, assim, a soberania nacional; a adesão do seu ícone ao Ministério da Justiça de um governo de extrema-direita fedendo a denúncias de envolvimento com milícias e caixa 2 etc. etc. etc. Tudo isso se legitima, afinal, como movimentações táticas e subsidiárias da estratégia central, a saber, o cerco permanente aos políticos, até que emerja e frutifique a “nova política”.

Fato indiscutível é que o herdeiro maior do espancamento da política realizado sem cessar pelos profissionais da lei chama-se Jair Messias Bolsonaro & Sons, com os militares à cavaleiro. Isso permite depreender que a Lava Jato “trabalhou” para Bolsonaro, os militares e a extrema-direita? Apenas em parte, posto que indiretamente. A Lava Jato usa, então, o governo Bolsonaro como instrumento para a conquista de posições institucionais e legitimidade junto ao público? Certamente. Mas isso importa menos. O fundamental é que, ao pretenderem naturalizar suas crenças político-ideológicas e subjugar a lei àquilo que pensam ser o legal e o ilegal – ao arrepio, muitas vezes, da letra fria da própria lei –, esta parcela emergente do estamento jurídico se transformou na ponta-de-lança de um Lawfare que, indiscutivelmente, desestabilizou o país, atiçou a violência como expressão da política, levou à lona a economia nacional e conduz hoje o Brasil para um cavalo-de-pau geopolítico sem precedentes.

Uma das consequências inevitáveis do Lawfare – essa guerra suja que usa a manipulação da lei como instrumento de poder – é esvaziar de legitimidade a esfera da política propriamente dita, institucional ou não. Nesse vórtice de achincalhamento da política em nome de uma suposta justiça moral (e não da justiça legal, muito menos social), vão todos parar na mesma vala: os partidos da extrema-esquerda à centro-direita, movimentos sociais, ONGs, a imprensa, o STF. Fica de pé quem fala mais alto, quem faz justiça com as próprias mãos, quem manda atirar na cabecinha, quem, finalmente, se enquadra no “neutro” espírito do tempo de ultraliberalismo econômico e reacionarismo dos costumes. Em nome de Deus, da família, do Brasil e, a julgar pela visita de Bolsonaro a Donald Trump, dos EUA também.