Sob a égide do bolsonarismo, é inegável a expansão de ameaças e constrangimentos às liberdades democráticas. Os militantes sociais são alvo de Intimidação judicial, de assassinatos políticos cujos autores recebem a mais impunidade, de ameaças de todo tipo, de agressões verbais e físicas e de cerceamento e perseguições em seu espaço de trabalho; e compartilham um justificado temor com as nuvens carregadas que anunciam o acirramento da tempestade. É inegável que nos sentimos ameaçados e amedrontados, ainda que isto nem sempre paralise nossa resistência – o que seria o pior dos cenários, permitindo a consolidação do fechamento político em curso.
Qual é a natureza deste processo que vivemos? Trata-se de um processo de fascistização? Da retomada dos mecanismos característicos do terrorismo de Estado? Ou de uma nova forma de fechamento político, nos moldes do que Felipe Demier propõe interpretar como instituição de uma “democracia blindada”? (1) Nossa hipótese aqui, de forma bastante introdutória e com a finalidade de instigar o debate, é que se trata de uma combinação de elementos característicos de cada um destes processos.
Fascismo
Não há espaço para uma definição minuciosa sobre o fascismo neste texto.(2) Basta nos aqui registrar três elementos centrais: 1) um núcleo ideológico reacionário (anticomunismo, ultranacionalismo, antipolítica, militarismo, armamentismo, culto da violência, mitificação do Líder, misoginia, criação sistemática de inimigos, disseminação do ódio aos direitos humanos); 2) uma base social recrutada sobretudo na pequena burguesia (urbana e rural) e nos diversos setores constituintes das classes médias;(3) 3) a mobilização destes adeptos no sentido da constituição de uma tropa de choque. Este último elemento é decisivo, pois distingue o fascismo de outros movimentos reacionários que preconizam a manutenção da ordem essencialmente pela desmobilização de seus adversários sem a necessidade de constituição de tropas de choque.
É importante ainda distinguir três diferentes dimensões: a ideologia, o movimento e o regime. Exemplificando, no caso brasileiro atual podemos entender que em termos de concepção ideológica Jair Bolsonaro pode facilmente ser qualificado como fascista, ainda que o bolsonarismo não se constitua integralmente como uma tropa de choque consolidada e que claramente não estejamos sob um regime fascista. Ainda assim, isto não permite descartar, quanto ao regime hoje vigente, a existência de uma ameaça fascistizante, sobretudo quando lembramos que a imposição de um regime fascista é processual e que se inicia com a proliferação das agressões à esquerda e aos militantes sociais antes mesmo da tomada do governo e que prossegue por certo período depois disto. No caso italiano, já no início de 1921, proliferavam atentados, agressões e crimes cometidos pelas milícias fascistas contra comunistas, sindicalistas, operários e camponeses. Mussolini é chamado ao governo no final de 1922, mas isto não implicou de imediato a consolidação de um regime fascista. Apesar da ascensão de agressões e da articulação entre ataques promovidos pelas milícias com a repressão instituída desde o Estado, mantinham-se certas margens de liberdade de forma que em 1924 ocorreram eleições parlamentares com a participação do Partido Comunista Italiano (na qual Gramsci foi eleito deputado). Foi entre o assassinato do deputado socialista Giacomo Matteoti (maio de 1924) e instrumentalização política do atentado sofrido por Mussolini em abril de 1926, que o regime fascista se consolidou, com a proibição completa de todas as organizações de oposição, dos comunistas aos liberais.
Em que medida este processo se assemelha ao que vivemos hoje no Brasil? Em termos ideológicos, Jair Bolsonaro enquadra-se, com muita folga, em praticamente todas as características ideológicas que definem o fascismo, acima indicadas. A única exceção é justamente o ultranacionalismo, haja visto liderar um governo explicitamente entreguista e submisso aos Estados Unidos nas diversas dimensões (econômica, cultural, geopolítica, etc.). Entendemos, no entanto, que isto não é suficiente para sustentar que Bolsonaro não seja fascista, haja visto que o fascismo na periferia do capitalismo desde o pós-guerra não mantém nenhum elemento efetivamente nacionalista (com exceção da instrumentalização primária do ufanismo mais tacanho). (4) Em particular o armamentismo e o culto da violência, características centrais da ideologia bolsonarista, reproduzem de forma caricata a experiência do fascismo italiano, caracterizado por Gramsci em 1921 como “a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadoras e de tiros de pistola”. (5) Mais difícil é caracterizar a massa de seguidores como tropa de choque. A escalada de agressões e ameaças, bem como a disposição em vigiar e denunciar todas atividades tidas como “esquerdistas” são indicadores de uma disposição mobilizadora. Tais agressões desenvolveram-se especialmente no contexto da campanha eleitoral. Na atual conjuntura, podemos admitir provisoriamente que arrefeceram, em grande medida pela desilusão de parte dos seguidores com a exacerbada incompetência e incapacidade política demonstrada pelo governo Bolsonaro. (6) A violência política é elemento incontornável do cenário atual, mas é promovida sobretudo por milícias e grupos paramilitares diretamente vinculados ao aparato repressivo, e sua explicação portanto tem mais relação com as permanências do terrorismo de Estado, como indicaremos na sequência, do que propriamente com uma organização paramilitar fascista. Por fim, não pode restar dúvidas de que neste momento não vivemos sob um regime fascista, ainda que seja temerário descartar por completo o fascismo como possibilidade histórica.
Terrorismo de Estado
A melhor caracterização das ditaduras que assolaram parte da América Latina – muito especialmente os países do Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia) nas décadas de 1960 e 1970 é a que as define como ditaduras de Terror de Estado. Foram instituídas a partir de um núcleo ideológico reacionário semelhante ao do fascismo, atualizado através da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), nos marcos da Guerra Fria.(7) A DSN é marcada pela teoria da bipolaridade, impõe uma polarização absoluta entre o “mundo ocidental, cristão e capitalista” e o “mundo oriental, ateu e comunista”, não abrindo a possibilidade de qualquer posição que não a adesão absoluta e incondicional ao primeiro campo, e com base nesta divisão propõe uma guerra total, tornando legítimos todos os meios e forma de violência contra os que não se enquadram, como registrou Comblin: “A Segurança é uma coisa que pode ser obtida indiferentemente por meios violentos ou não. Isso não tem importância. Quem busca a Segurança não questiona os meios. Os ‘objetivos nacionais’ são defendidos por todos os meios, indistintamente.” (8)
No processo histórico latino-americano, a dupla função das ditaduras de terror de Estado foi: destruir as resistências sociais empreendidas por movimentos populares fortemente organizados, e promover a passagem a outra etapa de desenvolvimento capitalista, liquidando qualquer resquício de um projeto nacional de desenvolvimento e impondo um modelo associado dependente ao capital internacional. Como indica o historiador Enrique Padrós: “Em síntese, as ditaduras militares e a DSN foram o instrumento de promoção e adequação (reenquadramento) de uma sociedade fortemente mobilizada pelos importantes e diversos projetos colocados na ordem do dia dos anos 60 – e que se expressavam no leque reformismo – revolução, às novas diretrizes da acumulação e reprodução do capital transnacional e seus associados locais” (9)
A diferença fundamental em relação ao fascismo é que as ditaduras de terror de Estado sustentam-se fundamentalmente na imposição da passividade (obtida através do terror), renunciando a qualquer perspectiva de mobilização permanente. A repressão é exercida por um aparato repressivo hipertrofiado e que se segmenta em uma estrutura legal e outra clandestina, que age à margem de qualquer limitação legal. Os esquadrões da morte – posteriormente modernizados na forma de milícias – são um produto típico deste esquema, articulando a repressão política com a disseminação do terror de forma mais ampla contra as camadas populares. Ainda que ideologicamente tenha enorme proximidade ao fascismo, sua gênese histórica remonta ao terrorismo de Estado e sua origem ao aparato repressivo agigantado durante as ditaduras.
A Doutrina de Segurança Nacional permanece como base ideológica compartilhada pela imensa maioria dos integrantes do aparato repressivo, atualizada pela Doutrina de Garantia de Lei e Ordem, oficializada através de Decreto assinado por Dilma Rousseff em 2014, no contexto da repressão aos movimentos populares contrários aos gastos exorbitantes na Copa do Mundo. A liderança brasileira na agressão militar imperialista ao Haiti proporcionou aos militares extraordinária experiência de aprendizado relativo ao controle repressivo de populações (sobretudo nas favelas, como demonstrou o massacre de Cite Soleil, em 2004). Não é casual o fato de que a maior parte dos militares integrantes do primeiro escalão do governo Bolsonaro tenham integrado as tropas de ocupação, a começar pelo General Augusto Heleno, primeiro comandante das tropas de ocupação. Igualmente, a imposição da Lei Antiterrorismo – cuja sanção foi o último ato do governo Rousseff, poucos dias antes de seu afastamento – situa-se neste contexto.
A transição pelo alto, a garantia de absoluta impunidade aos agentes do terror de Estado e a permanência, em seus elementos fundamentais, do hipertrofiado aparato repressivo que agiu sob o terror de Estado, garantiram condições para que, em um contexto de ascensão conservadora e disseminação da ideologia do ódio que marca o bolsonarismo, tais setores mostrem sua força e se constituam hoje em um dos seus principais pilares.
3) Democracia autoritária
Outra alternativa – que parece ser a preferida das classes dominantes por comportar menos riscos e garantir maior controle sobre o processo – é o gradativo fechamento do regime sem uma ruptura aberta. Nesta perspectiva, é central o impedimento do acesso dos setores populares aos mecanismos de participação política efetiva, mesmo aqueles tradicionalmente garantidos nas democracias burguesas. O simulacro de normalização do Haiti sob ocupação militar desde 2004 e principalmente os golpes institucionais, perpetrados conjuntamente pelos poderes legislativo e judiciário e pelos grandes meios de comunicação em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016) são expressão desta perspectiva. Há aqui a preocupação significativa em manter a aparência de legalidade, o que diferencia claramente estes processos das ditaduras fascistas e do terrorismo de Estado. Interessa à classe dominante a manutenção do sufrágio universal e do funcionamento do Parlamento e do Judiciário, que as permitem administrar suas diferenças sem grandes sobressaltos, mantendo-as livres de qualquer participação popular expressiva.
Este processo, marcado pela progressiva restrição das liberdades sem uma ruptura política aberta, não constitui uma novidade histórica na América Latina. Se nos países do Cone Sul foi necessário impor o terrorismo de Estado para estabelecer uma nova dinâmica de desenvolvimento capitalista, em outros países do continente, isto foi feito dentro dos marcos institucionais vigentes. Foi assim na Venezuela entre 1958 e 1998, no México de meados dos anos 1960 ao menos até 2000 (mas não é absurdo considerar que até hoje), e é assim na Colômbia desde 1958. Na Venezuela, o pacto de Punto Fixo, celebrado em 1958 entre a Acción Democrática (AD) e o Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI) permitiu que por três décadas ambos se alternassem no poder, impondo políticas de subordinação aos interesses estadunidenses e alijando os setores populares. No México, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) abandonou as políticas nacionalistas de épocas passadas e igualmente impõs políticas desnacionalizantes, sustentadas em uma escalada repressiva, cujo ápice foi certamente o massacre na Plaza de Tlatelolco, que deixou ao menos 300 estudantes mortos. Na Colômbia, o ponto de partida foi o pacto entre liberais e conservadores e, no contexto do enfrentamento às resistências empreendidas pelas FARCs e pelo ELN, o aparato repressivo cresceu enormemente, dando origem a grupos paramilitares, como as Autodefesas Unidas de Colombia (AUC). Desde então, a Colômbia é um dos países em que mais são mortos militantes de esquerda e líderes sindicais, populares, comunitários e defensores dos direitos humanos, sem que para isto tenha havido qualquer quebra institucional.
Em todo este processo, os três poderes permanecem funcionando sem interrupção, mas impermeáveis às demandas e reivindicações dos setores populares. Parece-nos que este seria o enredo desenhado pelas classes dominantes para o Brasil. No nosso caso, no entanto, o script funcionaria de forma mais “normal” se ao Golpe de 2016 se seguisse a eleição de um representante típico da classe dominante, como Geraldo Alckmin, e não com a de um ex-militar fascista que deixa seus aliados em pânico toda vez que faz um pronunciamento de improviso. Em todo caso, é inegável que elementos deste processo seguem marcando a conjuntura brasileira e hoje se expressam sobretudo na dinâmica dos poderes judiciário e legislativo.
O que enfrentamos hoje?
Em nosso entendimento, o processo brasileiro atual articulando em diferentes doses elementos das três experiências históricas citadas, cuja combinação produz algo que pode ser compreendido nos marcos da definição de democracia blindada proposta por Demier:
As democracias blindadas têm seus núcleos políticos decisórios (ministérios, secretarias, parlamentos, tribunais etc.) praticamente impermeáveis às demandas populares. Ademais, guardando uma autonomia quase absoluta em relação aos processos eleitorais e, portanto, livres de qualquer tipo (ainda que mínimo) de controle popular, certos organismos do Estado responsáveis pelas questões consideradas estratégicas (como os bancos centrais e agências reguladoras etc.) tornaram-se monopólios inquestionáveis dos representantes políticos e prepostos comerciais da classe dominante. (10)
Embora combinando elementos das três experiências, na conjuntura atual, a dominância é da terceira. Temos assim como processo geral uma reconfiguração restritiva da democracia, que mantem em funcionamento o Parlamento, as instituições judiciárias e os processos eleitorais, mas radicaliza mecanismos de controle e exclusão. Elementos embrionários de uma tropa de choque fascista (que não se desenvolveram plenamente até o momento) e o forte peso da hipertrofia do aparato repressivo, inclusive organizada na forma de organização criminosa (milícia e grupos de extermínio), complementam o quadro e alertam para a necessidade de considerar diferentes cenários no desenvolvimento deste processo. Seja como for, a construção de uma oposição classista ao governo Bolsonaro apresenta-se como caminho necessário para o enfrentamento de tão terrível desafio.
NOTAS
1 – DEMIER, Felipe. Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
2 – Algumas indicações encontram-se em http://blogjunho.com.br/como-combater-o-fascismo/
3 – É justamente por conta desta base social que o fascismo, durante o processo de sua ascensão política, precisa forjar uma aparência de rebeldia, colocando-se discursivamente contra a ordem social. Como registrou Wilhelm Reich, “ “O fascismo é um amálgama de sentimentos de revolta com ideias sociais reacionárias”. REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. XVIII.
4 – Em relação a estes aspectos, argumentamos neste artigo do Esquerda Online.
5 – GRAMSCI, Antonio. “Itália e Espanha”. In: Escritos Políticos. Volume 2, 1921-1926. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 46-47.
6 – Não estamos indicando aqui que Bolsonaro perdeu sua base de apoio, o que seria um grave erro de avaliação. Apenas que seu ímpeto está momentaneamente arrefecido.
7 – Ver a respeito COMBLIN, Joseph. A ideologia da Segurança Nacional: O poder militar na América Latina.. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980; e MARTINS, Roberto. Segurança Nacional. São Paulo, Brasiliense, 1986. 82p. Coleção “Tudo é História”.
8 – COMBLIN, op. cit.
9 – PADRÓS, Enrique. Ditaduras militares e neoliberalismo: Relações explícitas nos descaminhos da América Latina. Ciências e Letras, Porto Alegre, FAPA, mar. 1996, p. 90.
10 – DEMIER, op. cit., p. 40.
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