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BRASIL

Lia Rocha: ‘Um ano sem Marielle Franco’

Por: Lia Rocha*

Escrevo esse texto a dois dias de completar um ano da execução da vereadora carioca do PSOL Marielle Franco, e no dia em que duas pessoas foram presas, um policial militar reformado e um ex-policial militar, acusadas de serem os executores do crime.

Há um ano Marielle e Anderson Gomes, seu motorista, foram assassinados. Há um ano estamos vivendo esse luto, e aprendendo cotidianamente a fazer o que tantas mães de vítimas de violência no estado do Rio de Janeiro e no Brasil têm feito e nos ensinado: transformar luto em luta, transformar a dor individual em movimento coletivo, transformar a revolta pessoal em indignação mundial.

Um ano é muito tempo. É muito tempo sem respostas para um crime político contra uma parlamentar eleita democraticamente, morta exercendo seu mandato, numa das maiores cidades do Brasil. Ainda que as investigações pareçam avançar, é muito pouco. É preciso que a Polícia Civil, a Polícia Federal e o Ministério Público apresentem quem foram os mandantes do crime.

Os indícios sobre quem mandou matar e por que são os mais terríveis. Marielle Franco não tinha recebido ameaças a sua vida, como outros parlamentares do PSOL. Não estava envolvida diretamente em nenhuma ação que interferisse nos interesses de grupos criminosos. Não conduzia nenhuma investigação parlamentar. Tinha sido escolhida relatora da comissão parlamentar da Câmara que acompanharia a Intervenção Federal na Segurança do Estado do Rio de Janeiro junto com outros três vereadores, mas a comissão ainda estava começando suas atividades. Não tinha atuação em nenhuma localidade onde pudesse concorrer com outros políticos – os votos que recebeu em 2016 foram pulverizados, tendo votos inclusive em diversas favelas, mas a maioria dos votos veio de áreas ricas da cidade.

Por que então mataram Marielle? Essa não é uma pergunta simples de responder, e nem tenho a pretensão de chegar a uma conclusão. Tenho certeza que o fato de Marielle ser uma mulher negra, de origem popular e lésbica contribuiu para que ela fosse avaliada como um alvo com menos custos. Tenho certeza também que muitos poderosos que circulam nos palácios do país hoje deviam ter ódio daquela mulher que “peitava” a todos, e que exigia respeito. Muita audácia para uma favelada.

Mas tenho certeza também que não se trata de um crime de ódio. As numerosas evidências até hoje recolhidas apontam para a relação entre a execução de Marielle e as milícias que atuam no Rio de Janeiro há muitos anos. Os detalhes técnicos do crime indicam se tratar de profissionais da morte, ligados a um “escritório do crime” contratado para executar pessoas. As conexões entre milícias e parlamentares são também conhecidas, e se estendem tanto para governos anteriores quanto para os governos estadual e federal. Mas o Rio de Janeiro é um caso exemplar para entendermos que as organizações criminosas que atuam de forma tão imbricada com o poder estatal não se limitam a uma área de atuação. Um dos presos desta manhã sofreu um atentado à bomba há dez anos, e o acusado de ter ordenado o crime também foi acusado pela tentativa de assassinato de Rogério de Andrade, contraventor ligado ao Jogo do Bicho.

Temos à frente de nós um enorme emaranhado de ligações entre policiais militares, ex-policiais militares, milicianos, políticos, bandidos – em que os personagens ocupam mais de uma posição no jogo: policiais-bandidos, milicianos-policiais, políticos-bandidos. E infelizmente esses personagens hoje ocupam muitas das posições de poder no Estado do Rio de Janeiro e no Governo Federal. Nossos inimigos, nossos assassinos, estão no poder. Essa terrível constatação faz muitas vezes a tarefa de continuar lutando ser muito árdua.

E, ainda assim, persistimos. A repercussão do assassinato de Marielle e Anderson foi muito maior do que esperávamos – e, tenho certeza, muito maior do que seus algozes calcularam também. No dia seguinte à sua execução, durante seu velório, cerca de 50 mil pessoas ocuparam a Cinelândia – praça que fica em frente à Câmara dos Vereadores onde Marielle exercia seu primeiro mandato, e palco de tantas manifestações politicas e culturais dessa cidade. Em diversas cidades brasileiras, e mesmo fora do país, ocorreram manifestações. Já era o começo da onda que nos mostrou como Marielle é gigante.

Marielle se tornou muito mais conhecida depois de sua morte do que foi em vida. Seu legado só cresce: pedindo justiça por ela já foram realizadas diversas homenagens no mundo todo, estão em curso iniciativas para a criação de um Instituto com seu nome, e para a criação de fundos que financiem projetos relacionados às pautas que ela defendia e também personificava: a defesa do direito e da vida das mulheres, de negros e negras, da população LGBT, dos moradores de favelas. Em 2019 a Escola de Samba Campeã dos Desfiles do Grupo Especial do Rio de Janeiro desfilou com um samba-enredo que cantava seu nome, e que nos permitiu uma enorme catarse coletiva ao homenagear Marielle e outras figuras cuja história é apagada, invisibilizada, roubada e vilipendiada.

Na canção os autores do samba Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Manuela Oiticica, Mama, Márcio Bola e Danilo Firmino conseguiram expressar belamente que Marielle foi ao mesmo tempo uma heroína do povo brasileiro e também mais uma das tantas mulheres e homens que vivem, lutam e morrem nesse país desigual, autoritário e violento. Por isso Marielle se tornou esse símbolo tão importante, que mobiliza e encanta tantas pessoas: porque ela levava em seus braços e carregava em seu corpo a diversidade de lutas do povo brasileiro.

Neste dia 14 de Março de 2019, um ano depois da terrível noite em que ela foi arrancada de nós, em que não conseguimos dormir com o grito desesperado ecoando no ouvido, quando uma ventania muito forte perturbou nossos sentidos, quando só o abraço e o acolhimento das/os companheiras/os nos deu algum conforto, estaremos novamente na Cinelândia com a Marielle e pela Marielle. Estaremos lá para exigir que o Estado Brasileiro responda quem mandou matar Marielle Franco. Mas estaremos lá sobretudo para celebrar sua vida, suas lutas, seu legado. Porque quem cala sobre a sua morte morre contigo, mas quem grita vive contigo.

*Lia de Mattos Rocha é professora Adjunta do Departamento de Sociologia, do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ( http://www.ppcis.com.br/ )

Foto: Reprodução Anistia Internacional

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