Quem na verdade tem medo do socialismo?

Por: Rogério Freitas, direto dos EUA
Corey Torpie / Courtesy of the Ocasio-Cortez Campaign

No dia 05 de fevereiro, enquanto o professor David Harvey iniciava mais um dos seus cursos sobre O Capital, de Marx, em New York [1], com surpreendentes mais de 100 estudantes, pesquisadores e ativistas em um auditório, o presidente Donald Trump discursava na Casa Branca sobre duas crises que ameaçavam a nação. Alguns podem pensar algo como bombas, questões climáticas ou desastres parecidos com filmes Independency Day (1996), Impacto Profundo (1998) ou para ser mais desastroso e hilário ao mesmo tempo, o Sharknado (2013), sim, aquele dos tubarões. Não, o medo e à ameaça pronunciada por Trump naquela noite foi: “Aqui nos Estados Unidos, estamos alarmados com novos apelos para adotar o socialismo em nosso país”. E acrescentou: “A América nunca será um país socialista”.

Com incremento no discurso, Trump tentava mais uma vez, sem sucesso, convencer os democratas a apoiarem o seu Plano de Emergência Nacional para construção do muro de 5 bilhões de dólares para conter a “invasão” de imigrantes. Logicamente, as 100 pessoas que escutavam Harvey não representavam uma ameaça iminente ao capitalismo norte-americano, pois a duas quadras daquele auditório, um sem número de pessoas caminhavam hipnotizadas pelo maior simbolo da cultura capitalista americana: a Times Square.

Detalhe da capa de uma publicação de 1947 nos Estados Unidos. Reprodução

Entretanto, as declarações de Trump não surgiram do nada. A valer, recentemente um espectro tem rondado os Estados Unidos. Seria arriscado, porém, dizer que se trata do mesmo que rondou a Europa nos tempos de Marx, mas nos últimos meses, jornais, revistas, programas de radio, TV e até alguns famosos talk shows como o The Late Show comandado por Stephen Colbert tem se interessado pelo tema do socialismo. Participou do programa algumas vezes, a ativista mais popular atualmente dos EUA: Alexandria Ocasio-Cortez, democrata, ativista do Bronx, que junto com Rashida Tlaib, do Democratic Socialist of America-DSA são as mais novas integrantes do Congresso Americano. Para completar um trio de mulheres que desafiam Trump, insere-se Ilhan Omar, a primeira refugiada da Somália a tornar-se deputada. Juntas, elas representam hoje uma pedra no meio do caminho aos republicanos e de Donald Trump.

A plataforma de campanha e agora de governo das recém chegadas a Casa Branca, somam-se ao caminho crítico construído contra o trumpismo pelo senador Bernie Sanders. Sinteticamente, o programa defendido por elas compreende, dentre outros pontos, a saúde e a educação para todos. Em 2017 a cobertura de seguro privado norte-americana apresentou taxa de crescimento de 67,2% enquanto a cobertura pública 37,7%, segundo o United States Bureau [2]. Destaca-se que mesmo para uma cobertura pública, para quem precisa de um atendimento de emergência, os custos chegam a dezenas de dólares. O serviço de ambulância, por exemplo, é totalmente privado. No imaginário dos americanos mais pobres, a ambulância significa medo, pois o atendimento de primeiros socorros, realizado por este serviço, pode salvar uma vida, mas acaba-se morrendo do mesmo jeito quando se recebe a conta altíssima dos serviços prestados.

Outra proposta da plataforma refere-se à educação gratuita para todos. Mesmo que parte da educação básica seja oferecida pelo governo, quando trata de Educação Superior, o cenário muda completamente. Atualmente para ingressar ao Ensino Superior americano é preciso ter muito dinheiro: é um lugar onde os pobres não têm vez. Realmente um lugar para elite. Para quem consegue entrar, os empréstimos e as mensalidades tornaram-se um verdadeiro pesadelo. Os custos do Ensino Superior foram os que mais aumentaram nos EUA nas últimas décadas. Segundo a America’s Debt Help Organization: “Desde 1980, os custos de matrícula nas universidades públicas aumentaram de US$ 2.119 para US$ 9.410, um salto de 344%. A mensalidade da faculdade privada subiu de US$ 9.500 em 1980 para US$ 32.410 em 2017, um salto de 241%. Em comparação, os custos com alimentos e eletricidade subiram cerca de 150% e os preços da gasolina subiram mais de 200% no mesmo período de tempo”.  [3] O total de dívidas dos estudantes norte-americanos chega ao montante de 1.4 trilhão de dólares. Analistas preveem que a próxima crise econômica dos EUA poderá ser a crise do débito estudantil.  [4]

Democratizar a saúde e a educação fez com que germinasse um embrião de pensamento crítico no país. As recentes greves dos professores da educação básica tem transformado as lutas por educação de qualidade e melhores salários em verdadeiras resistências. Os professores de Los Angeles, por exemplo, não faziam greve desde 1989 e agora segundo Alex Caputo-Pearl, presidente da United Teachers Los Angeles: “Estamos mais convencidos que nunca de que não será feito nada sem uma greve” [5]. Em Denver, com suas lutas, os educadores já conseguiram até agora um aumento de 11,7%.  [6] Além disso, o aumento englobou o pessoal de apoio escolar, como por exemplo, os motoristas dos ônibus amarelos escolares. Cativante tem sido a forte solidariedade entre estes trabalhadores da educação. Muitas das recentes greves deste setor só começam ou terminam com a total unidade dos trabalhadores e associações: uma maneira conjunta e eficaz de fazer pressão e obter sucesso.

Longe de ser um movimento rumo ao socialismo aos moldes soviético, esse espectro que ronda os EUA têm alterado os ânimos da classe dominante americana. Meghan McCain, filha do ex-Senador John McCain (falecido recentemente), apresentadora do Good Morning America e This Week, este ultimo, um programa dominical da ABC criado para defender os republicanos incondicionalmente, comentou que: “É petrificante que o [socialismo] está sendo normalizado! Não queremos o socialismo normalizado neste país” [7]. Arwa Mahdawi, colunista do The Gardian que apresenta a declaração de McCain, rebate dizendo que “McCain está certa. Muitas pessoas, pessoas estão ricas e esquecem quantas casas possuem (como John McCain deu a entender uma vez) e não querem que a ideia de que a riqueza seja distribuída a muitos, mas sim para poucos, e desejam que seja normal o hiper-individualismo, cada vez mais desigual dos EUA”.  [8]

O debate sobre a desigualdade e o interesse pelas pessoas sobre o tema tem encontrado eco nos EUA. Apesar do aumento da renda familiar de 1,8% em 2017, última pesquisa da U.S. Census Bureau [9], o índice Gini de rendimento monetário foi de 0,482 em 2017 não estatisticamente foi diferente de 2016. Os EUA em 2017 tinham 39,7 milhões de pessoas na pobrezae, segundo o censo. Assim sendo, quando se fala em salário, o Inequality.org, através do Project of the Institute for Policy, afirma que “os salários nos Estados Unidos, depois de levar em conta a inflação, estão estagnados há mais de três décadas. Os trabalhadores americanos típicos e os trabalhadores com salários mais baixos tiveram pouco ou nenhum crescimento em seus salários semanais reais”.

Por outro lado, desde a década de 1990 a renda anual dos ultra-ricos explodiu em tamanho. Entre 1992 e 2002, as 400 maiores rendas informadas à Receita Federal americana mais do que dobraram. No início dos anos 2000, o boom econômico impulsionado pela bolha imobiliária triplicou as 400 maiores rendas do país antes do colapso econômico de 2008 [10]. O valor de mercado em dólares, por exemplo, das principais empresas de e-commerce no ano de 2018 foi de 924 bilhões para Apple; 783 bilhões para Amazon e 793 bilhões para Google [11]. Essa disruptura na economia mundial criou seletos milionários que controlam o mundo, construindo pensamentos e criando tendências. Essas companhias que começaram como start-ups no Vale do Silício e agora conseguem facilmente mudar o designer do mundo do trabalho. Elas fornecem produtos e serviços para multidões. Prescrevem e legitimam, por outro lado, novas formas de privatização, de precarização do trabalho, garantindo portanto, o funcionamento do sistema.

A retórica de Trump e seus afiliados nos EUA e mundo contra o socialismo refere-se basicamente a crítica de como o socialismo regulava e controlava as pessoas. No final da década de 1940 e toda a década de 1950, os EUA foi marcado pela prática do McCarthyism (macartismo), o nome refere-se ao senador Republicano Joseph McCarthy, que construiu a cultura do medo em relação aos comunistas. As propagandas estavam por toda a parte e pregavam que as pessoas deveriam ter medo da influência comunista em suas vidas, além de disseminar que os comunistas poderiam estar em qualquer lugar esperando um momento certo para “teleguiar” as mentes mais fracas e que em geral, os comunistas eram professores, universitários, artistas ou jornalistas.

Hoje, parece que as pessoas começaram a entender que quem tem regulado, controlado e moldado as pessoas tem sido os bancos, as grandes multinacionais e transnacionais que direta ou indiretamente, pelos seus porta-vozes, fazem a velha crítica macartista contra o socialismo. O Estado continua controlando a vida das pessoas porque este agora fundiu-se com os interesses dos banqueiros internacionais, empresários como Trump e os super ricos do Vale do Silício e de Wall Street.

Capa da revista The Economist, sobre o impacto do socialismo junto a geração millennial

O que parece muito interessante em tudo isso é que a juventude Americana, mas não só, começou a não ter mais medo de “conversa fiada”. Protagonizam esse cenário, os Millenials, ou geração Y que são responsáveis por uma cultura de resistência, ainda que na maioria das vezes inclinadas ao consumismo tecnológico, representam um estágio embrionário de crítica ao sistema, que rejeita a ideia de 5 bilhões de dólares na construção de um muro. De fato, pesquisa recente da Harvard Kennedy School [12] tem mostrado que jovens com menos de 30 anos acusam políticos como Donald Trump como principal responsável pelo racismo estrutural e falta de acesso ao ensino superior. Esses mesmo jovens estão inseridos nos 72% de desaprovação do governo Trump que cresce a cada dia. Esses jovens concordam que o caminho para a cidadania e um país melhor não pode ser construído com muros. Não se sabe ainda que continuidade, rumos e escolhas farão daqui para frente o Democratic Socialist of America (DSA), uma das principais organizações políticas de resistência hoje no Estados Unidos, mas a pergunta que parece ganhar sentido nos EUA e nos principais países do mundo governados pelos governos de ultra-direita que ameaçam a democracia parece ser quem de verdade tem medo do socialismo? Se não os super ricos, os desejosos por muros, bancos, multi e transnacionais…

 

FOTO: A deputada do DSA Alexandria Ocasio-Cortez. Divulgação

NOTAS
1 – O curso é de iniciativa da The People’s Forum e The City University of New York- CUNY.

2 – https://www.census.gov/library/publications/2018/demo/p60-264.html.

3 – https://www.debt.org/students/

4 – Essas análises constam em Patrick Healey: Why Student Loan Debt Might Be the Next Financial Crisis. Artigo publicado na Investopedia.com em 21 de Maio de 2018. Matt Phillips e Karl Russell: The Next Financial Calamity Is Coming. Here’s What to Watch. Artigo publicado no New York Times em 12 de Setembro de 2018. Christopher L Peterson: The Student Debt Crisis: Could It Slow the U.S Economy? Artigo e entrevista disponível em Wharton University of Pennsylvania: http://knowledge.wharton.upenn.edu/article/student-loan-debt-crisis/

5 – http://blogs.edweek.org/edweek/teacherbeat/2019/01/five_things_to_know_los_angeles_strike.html
6 – https://www.vox.com/2019/2/14/18224848/denver-teachers-strike-over-deal
7 – https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/29/socialism-no-longer-dirty-word-us-scary-for-some
8 – https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/jul/29/socialism-no-longer-dirty-word-us-scary-for-some
9 – https://www.census.gov/content/dam/Census/library/publications/2018/demo/p60-263.pdf
10 – https://inequality.org/facts/income-inequality/
11 – Statista, 2019.
12 – https://iop.harvard.edu/spring-2018-poll.