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CULTURA

Uma odisseia cultural: da terra ao céu

Por: Paulo César de Carvalho, colunista do Esquerda Online

Desde o momento em que o homem se separou do reino animal – e isso ocorreu quando segurou pela primeira vez os instrumentos primitivos de pedra e de madeira – naquele momento começou a criação e a acumulação de cultura, isto é, de conhecimentos e habilidades de todo tipo para enfrentar e subjugar a natureza. (Leon Trotski, “Cultura e Socialismo”, In Escritos Filosóficos, Editora Iskra, São Paulo, 2015, p.220).

No artigo anterior, demos início à investigação da complexa categoria “cultura”, tentando delimitar o seu lugar na teoria marxista. Partimos, assim, da base material das relações humanas (as forças produtivas), como condição necessária para enxergar os seus reflexos ideológicos (sob a forma das leis, da moral, da religião, da filosofia, da ciência, da arte). Lembramos que a palavra “cultura”, com seus diferentes usos e sentidos, funciona como uma espécie de síntese do próprio método, uma vez que, na origem etimológica, ela se relaciona ao “cultivo da terra”, tendo o seu significado expandido para designar também o “cultivo do espírito”. O percurso de análise, portanto, é orientado “da terra ao céu” (e não “do céu à terra”): com essas metáforas, Marx e Engels opuseram o materialismo histórico e dialético ao idealismo dos herdeiros de Hegel, mostrando que “não é a consciência que determina a vida”, mas “a vida que determina a consciência” (Marx e Engels, A Ideologia Alemã, Expressão Popular, São Paulo, 2009, p.32).

Abrindo um parêntese, vale sublinhar que essas figuras são bem didáticas para expor o método ao leitor iniciante nos estudos marxistas: a “terra” (que está embaixo) representa a base econômica da “produção material” da existência; o “céu” (que fica em cima), o espaço da “produção espiritual”. Os dois elementos traduzem, pois, a implicação recíproca entre a “infraestrutura” e a “superestrutura”: ou seja, o “desenvolvimento desigual e combinado” (diria Trotski) entre as “forças produtivas” e as “forças ideológicas” (constitutivas da formação do Estado). Aliás, aproveitando o aniversário de 170 anos do Manifesto Comunista, recordemos também uma passagem do texto confirmando exemplarmente esse princípio metodológico, sob a forma irônica da seguinte pergunta retórica:

Será necessário um exame mais profundo para compreender que, ao mudarem as relações de vida dos homens, suas relações pessoais, sua existência social, mudam também suas representações, suas opiniões e suas ideias, em suma, sua consciência? O que demonstra a história das ideias senão que a produção espiritual se modifica com a transformação da produção material? As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante (Marx e Engels, Manifesto do Partido Comunista, L&PM, Porto Alegre, 2014, p.57).

Parafraseando a dupla, o que interessa destacar aqui, em síntese, é o princípio de que a vida material determina a vida espiritual: não são as ideias que produzem a matéria, mas a matéria que produz as ideias. Em outros termos, isso quer dizer que não é a cultura que fabrica os “homens em carne e osso”, mas os “homens em carne e osso” que fabricam a cultura. Como estamos falando em “homem”, “osso” e “cultura”, vale recordar também uma sequência emblemática do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (clássico de Stanley Kubrick lançado em 1968, há exatos 50 anos). Trata-se do instante em que o macaco tomou consciência de que poderia utilizar um osso como instrumento, constatando que ele servia tanto para matar uma presa e saciar a fome, quanto para matar o líder do grupo inimigo e conquistar um poço de água.

Eufórico com a descoberta do “objeto mágico” de poder (que lhe permitiu subjugar tanto a natureza quanto os outros macacos), o símio jogou o osso para o alto: rodando lentamente no ar, a “ferramenta-arma” se converteu em nave espacial. Nesse movimento “da terra ao céu”, chamamos a atenção para o fato de que essa é a passagem demarcatória “em que o homem se separou do reino animal”: que ocorreu exatamente quando ele “segurou pela primeira vez os instrumentos primitivos”. Façamos a ressalva de que importa menos se, na ficção cinematográfica de Kubrick, estes eram de osso, e o homem ainda era macaco; ou se, na leitura antropológica de Trotski, eram de pedra ou madeira, e o macaco já era homem. O que interessa agora, especificamente, é que tanto o filme do diretor americano quanto o texto do dirigente russo pressupõem a existência de uma linha de fronteira onde “começou a criação e a acumulação de cultura”.

Como a arte é capaz de sínteses que são impossíveis aos textos teóricos (reféns do “expansionismo” verbal, já que submetidos ao dever de explicar), a veloz transformação do osso em nave espacial traduz melhor essa “odisseia cultural”, conectando os pontos extremos desta nossa longa jornada “da terra ao céu”. Ou seja, dos “instrumentos primitivos” à mais desenvolvida tecnologia, o que chamamos de “cultura” é – em linhas gerais – o enorme acervo “de conhecimentos e habilidades de todo tipo” que a coletividade humana reuniu “para enfrentar e subjugar a natureza”. Assim, do macaco que empunhava o osso ao homem que pilota a nave, o que está em jogo não é apenas o desenvolvimento das forças produtivas, (conforme se depreende da lição extraída do Manifesto), mas que, “ao mudarem as relações de vida dos homens, suas relações pessoais, sua existência social, mudam também suas representações, suas opiniões e suas ideias, em suma, sua consciência”.

Em outros termos, do homem em “estado selvagem” ao homem “civilizado”, as figuras do “osso” e da “nave” representam, metonimicamente, a heterogeneidade de componentes constitutivos da cultura. Compreendida como fenômeno social, histórico, ela engloba as habilidades técnicas, os conhecimentos científicos, as crenças religiosas, os valores morais, os padrões de comportamento, as regras de convívio social, as formas de organização familiar, os modos de se vestir, os registros de linguagem, os hábitos alimentares, os ritos iniciáticos, as celebrações coletivas, as manifestações artísticas (como a literatura, o cinema, o teatro, a escultura, a música, a arquitetura e as artes plásticas), etc.

Para concluir este segundo artigo, o nosso grande desafio, enfim, é compreender como essa série de elementos desiguais se combinam, estruturando a totalidade a que chamamos de “cultura”. Para isso, o crítico precisa ter sempre em mente (parafraseando Shakespeare) que há mais mistérios entre a terra e o céu (ou entre o osso e a nave) do que supõe a vã filosofia pseudomarxista.

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