“Parentes, estamos juntos para resistir a tudo que vier atacar nossa existência!”. Foi com esse espírito que o cacique Tafukumã Kalapalo, da Associação das Terras Indígenas do Xingu (ATIX) respondeu ao vídeo viral em que Bolsonaro, pouco antes de eleito presidente, aparece com uma apoiadora indígena, supostamente ligada às comunidades da região.
Os povos indígenas do Brasil, ao contrário da liderança forjada e improvisada na campanha, identificam Bolsonaro corretamente como seu inimigo. Seus avisos são cristalinos: “No meu governo, índio não vai ganhar 1 centímetro de terra”, “Índio em reserva é como animal em zoológico”, disse em entrevistas.
Seu discurso não é autoral. Ele recupera a ideologia integracionista, produzida nos anos de ditadura civil-militar no Brasil. Esse mesmo falatório respondeu pelo extermínio de quase 10 mil pessoas indígenas entre as décadas de 1960 e 1980, segundo demonstrou o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade.
Bolsonaro, assim como os militares do passado, agita o “risco” de que os povos indígenas criem outras nações, que não a brasileira, “roubando” o território do país. Portanto, sua mensagem é, em essência, a de acabar com qualquer senso de respeito e de autodeterminação das comunidades originárias.
A Constituição Federal de 1988 reconhece o direito dos povos às suas terras. As demarcações envolvem que as áreas sejam de propriedade do Estado e seu usufruto seja exclusivo dos que nela vivem. Mas esse reconhecimento formal nunca impediu a carnificina que acomete as comunidades tradicionais: desde o fim ditadura, são inúmeros os casos conhecidos de assassinatos, operados por milícias fortemente armadas e pagas por empresários e fazendeiros.
Só no ano de 2017, foram contabilizados oficialmente 110 homicídios de indígenas e, no ano anterior, 118. Segundo os dados do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), foram ao menos 20 grandes e violentos conflitos de terra registrados no ano passado. De modo semelhante, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) aponta que houve um aumento de 350% de assassinatos de quilombolas em 2017, em comparação ao ano anterior.
O anúncio de criação de um Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, órgão que a partir do novo governo teria mando sobre a FUNAI, é mais um trágico capítulo do que vem se avizinhando. Hoje, o fato de a FUNAI estar sob a batuta do Ministério da Justiça significa a possibilidade de intervenção da Polícia Federal nos casos escabrosos de massacre indígena no campo, uma intermediação – mesmo que malfeita e politicamente orientada – que por vezes pôde evitar resultados mais sanguinários nos conflitos de terra. Agora, as demarcações de terra não serão mais, nas palavras da nova ministra, a fundamentalista religiosa Damares Alves, o “único assunto” associado aos indígenas.
Ocorre que para as comunidades tradicionais a terra não é apenas a superfície onde se vive, mas o modo de existir socialmente. As relações, o trabalho, as tradições, a totalidade da vida é mediada pela terra. É comum ouvir de lideranças indígenas que não querem possuir a terra, mas que a ela pertencem. Esse é o sentido de sua brava luta.
Esse modo de vida, que convive harmoniosamente com a natureza, é proibitivo no projeto bolsonarista de poder ao latifúndio e à indústria agrária. Há, é certo, uma programação de diferentes extinções de direitos à população urbanizada nos próximos anos – garantias sociais, trabalhistas, previdenciárias etc. –, mas é importante evidenciar que o plano é, também, de extração de renda a todo custo, a começar com a terra do campo e da floresta.
Esse plano de concentrar terras envolve dois tipos de violência que se entrelaçam: em primeiro lugar, é preciso exterminar as garantias legais das comunidades tradicionais sobre as áreas demarcadas ou em processo de demarcação.
Estima-se que há 140 processos de demarcação de terra indígena no país, e quase 500 já solicitados que ainda não estão em andamento. Desde o governo Dilma, há uma desaceleração considerável na proteção fundiária. Em relação à população quilombola, ribeirinha, caiçara e sem-terra, o cenário é parecido. Por isso, a FUNAI será esvaziada de sentido e seu corte de verbas que vem se arrastando gerará resultados inéditos de barbárie, o Ministério da Justiça sairá de cena, sendo que é peça chave para as demarcações, e o governo estudará formas de revogar a concessão de áreas já declaradas, como a Raposa Serra do Sol, na região de Roraima, para a extração econômica de minérios por empresas privadas.
Em segundo lugar, será preciso passar por cima de todo tipo de proteção ambiental formalmente constituída. Nesse sentido, a submissão do Ministério do Meio Ambiente à pasta da Agricultura é funcional a setores do agronegócio. Ontem, o futuro presidente do Ibama deu uma declaração avisando que o licenciamento ambiental para o agronegócio será automático, ou seja, não passará por fiscalização e revisão do Instituto, responsável pela preservação das matas, florestas e outros biomas.
Há retratos recentes muito dolorosos do campo e da floresta brasileiros. Massacres como o de sem terras de Pau D’Arco no Pará e o de guarani-kaiowas em Caarapó no Mato Grosso do Sul. A cena de pranto do pai do pequeno indígena da etnia Manchineri num caixão no Acre. As ameaças de reintegração de posse de quilombos no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. A contaminação com chumbo dos rios em Barcarena por uma mineradora norueguesa. Um verdadeiro filme nacional, concentrando a violência da propriedade privada da terra de 500 anos em poucos meses.
As tragédias provocadas, no entanto, não podem ser as únicas lembranças ecoadas na nossa memória. Os povos tradicionais nos ensinam uma imensa lição: é possível resistir e re-existir; é possível que a luta não seja separada da vida e que a coragem seja um sentimento maior do que o medo.
Nos guiemos pela ocupação dos indígenas do Jaraguá das antenas de televisão em São Paulo; pensemos sempre nas radicais retomadas dos guarani-kayowas de suas terras ancestrais em Dourados; exaltemos o outro modo de produzir comida, de maneira soberana e ecológica, dos sem-terra; compreendamos que qualquer forma de organização radical anticapitalista se assemelha a um quilombo. A luta dos povos tradicionais também é, essencialmente, uma luta de todos nós. Compartilhamos a (im)possibilidade do futuro. Espoliados do Brasil: uni-vos!
Foto: Manifestação em Brasília, em abril de 2018. Mídia Índia
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