O ano de 2018 marcou uma virada brusca nos rumos da política haitiana. Eleito em processo amplamente questionado pela população, em 2016, Jovenal Moise (Partido Tèt Kale) perdeu completamente sua base social e o apoio parlamentar, em um contexto de intensificação da crise econômica e social na ilha.
Após as mobilizações de julho, que resultaram na renúncia do primeiro-ministro Jack Guy Lafontant e a revogação do aumento no preço dos combustíveis imposto pelo FMI, uma nova onda de protestos tomou conta do país nos últimos dois meses.
Em 17 de outubro, coincidindo com os 212 anos do assassinato de Jean Jacque Dessalines, líder da revolução que derrotou o colonialismo europeu, cerca de 2 milhões de manifestantes foram às ruas (atualmente a população haitiana é estimada em mais de 10 milhões de habitantes), exigindo a resolução dos escândalos de corrupção que envolvem o roubo de ao menos U$ 3,8 milhões dos fundos do Petrocaribe, denunciado a partir de investigações do Congresso, em 2017.
Desde então, as mobilizações não cessaram e passaram a exigir a renúncia do presidente. Em 18 de novembro, as ruas de Porto Príncipe e das principais cidades como Les Cayes, Cabo Haitiano, Jeremias e Grande Enseada foram tomadas novamente. Dessa vez, a resposta do governo veio com mais violência: pelo menos 11 pessoas foram mortas pelas forças policiais. A continuidade dos protestos tomou forma de greve geral, com a paralisação completa dos serviços e da produção por quatro dias na ilha.
As reportagens da imprensa local destacam o caráter juvenil dos participantes, bem como a maior radicalidade das barricadas ante as jornadas de julho. A Polícia Nacional, aparato militar estruturado pela Minustah (Missão das Nações Unidas para a estabilização do Haiti), novamente entrou em crise.
Se em julho houve aquartelamento na base, dessa vez, os conflitos foram no comando das tropas, devido a incapacidade de conter as ruas e a pressão contra a violência feita pela oposição.
Moise por um fio
A queda de Moise é uma possibilidade real. Poderia ser cômico afirmar que os únicos que mantém fidelidade ao presidente até o momento são os integrantes do Core Group, que reúne as Nações Unidas, a União Europeia, a Organização dos Estados Americanos, mais as embaixadas de Brasil, Canadá, Espanha, EUA e França.
Porém, na realidade, a situação é trágica, uma vez que os grupos estrangeiros conservam muito poder nas definições locais.
O Haiti é um país que vive sob a égide de distintas intervenções estrangeiras desde 1915, quando a Marinha estadunidense fincou bandeira na ilha. Apesar de o imperialismo ser historicamente a força decisiva na política haitiana, não nos parece que a solução externa resolveria o problema. O Core Group, que pede paz e o fim dos protestos, ao mesmo tempo exige a aplicação do pacote de ajustes amplamente rejeitado pelo povo haitiano.
Para além da corrupção, as mobilizações questionam o conjunto da estrutura econômica, social e política que se deteriora a cada dia. Nas grandes cidades, crescem os conflitos entre gangues nos bairros pelo controle de centros de comércio, o que gera aumento de assassinatos, incluindo mulheres e crianças.
Desde o governo Martelly (2011-16), a economia haitiana foi dolarizada. Hoje, 1 dólar equivale a cerca de 60 gourdes e a valorização da moeda estadunidense tem pressionado a elevação de preços dos produtos importados, impactando na inflação que variou entre 11% e 36% no último um ano e meio.
Moise e o Tèt Kale congelaram o salário mínimo em 350 gourdes por dia, ou menos de U$ 6, ao passo que estudos demonstram que as necessidades básicas dos trabalhadores podem ser atendidas com cerca de 1.248 gourdes diários. Desemprego, miséria, violência e completa ausência de direitos sociais representam o plano do imperialismo para o Haiti, enquanto as remessas diárias para fora do país seguem na casa dos U$ 8 milhões.
Se o apoio de trabalhadores e camponeses é quase nulo, devido ao contexto de crise brutal, a elite haitiana, mesmo dividida, começa a pressionar pela saída do presidente. Os chamados ao diálogo promovidos em rede nacional por Moise não tem surtido efeito.
Setores articulados a partir do Fórum Econômico do Setor Privado, o grupo mais poderoso do país, seguem descontentes com o aumento nas taxas aduaneiras. Ao mesmo tempo, já há articulação aberta entre os partidos oposição.
O Setor Democrático e Popular Nacional propõe a saída de Moise e do primeiro-ministro Jean Henry Ceant, a substituição por um governo transitório de 36 meses e conclama mobilizações para abrir um canal de diálogo entre “o povo desfavorecido e o setor privado”.
Já o partido Fanmi Lavalas, encabeçado pelo ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, que também esteve na organização dos protestos, afirma que é a hora de se escutar a voz das ruas.
Soma-se a esse impasse uma crescente desconfiança da população com o Congresso e o Judiciário, devido a ineficiência ante a investigação da corrupção do estatal. Ou seja, a crise se generaliza cada vez mais, criando uma situação incontornável ao presidente.
Acúmulo de forças e organização popular podem ser decisivos
As formas de organização e solidariedade do povo haitiano seguem em desenvolvimento, amadurecendo com as experiências de luta dos últimos meses. Segundo Camille Chalmers, professor de Economia na Universidade do Haiti e integrante da Rede Jubileu Sul, a consciência política cresce em todos setores da sociedade. No campo e na cidade amplia-se a unidade entre movimentos de esquerda e o campo democrático e popular haitiano.
A difícil tarefa dos movimentos e organizações políticas, segundo o professor, é fortalecer a luta popular para inverter as tendências reacionárias predominantes na luta de classes do país, construindo as bases para um projeto de desenvolvimento autônomo e anti-imperialista.
Nesse sentindo, enfrentar a corrupção deve ser feito a partir de um questionamento do conjunto dos mecanismos de gestão pública do país, bem como a dívida externa – estimada em U$ 890 milhões, sendo 41% relacionados com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, maior credor do país, e 21% com o Banco Mundial.
A exigência dos movimentos sociais passa pela construção de uma comissão independente para a auditoria dos escândalos do Petrocaribe, para que o povo possa esclarecer os processos e expor o funcionamento inadequado das instituições como um todo.
É dessa articulação popular que pode surgir uma nova alternativa de unidade nacional para o povo haitiano derrotar o processo de recolonização da ilha, promovido pelo imperialismo estadunidense, europeu e seus satélites, como o Brasil, que hoje tem os generais que comandaram a fracassada missão de paz alçados a líderes nacionais do próximo governo.
*Com informações de Le Nouvelliste; Telesur; Prensa Latina; El País; Jubileu Sul
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