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Gramsci e o Fascismo: A posição da pequena burguesia

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

A experiência histórica não vale para os pequenos burgueses,
que não conhecem história.
A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva.
A história ensina, mas não tem alunos. (1)

Uma das características fundamentais do fascismo, em suas distintas experiências históricas, é o fato de que embora se constitua como expressão dos interesses do grande capital (como as políticas concretas dos regimes fascistas comprovam fartamente), sua ascensão é impulsionada fundamentalmente por setores intermediários, muito especialmente a pequena burguesia. Esta característica, que hoje se observa nitidamente nos dados das pesquisas eleitorais (ainda que diluídos nos critérios de “faixa de renda” usados pelos institutos de pesquisa) e também na conformação de milícias e grupos de ação violenta, foi observada também durante a ascensão do nazismo, por Wilhelm Reich, que observando os dados eleitorais comprovou o apoio majoritário da pequena burguesia urbana e rural ao nazismo,  (2) enquanto os trabalhadores mantiveram-se majoritariamente fiéis à social-democracia ou aos comunistas. Da mesma forma, esse fenômeno não passou desapercebida na análise de Gramsci, como indicaremos adiante.

O termo “pequena burguesia”, na tradição marxista, não designa uma burguesia de menor porte, como o nome pode erroneamente sugerir, mas um estrato com características particulares que implicam em uma contradição insanável: este vasto estrato social que reúne pequenos comerciantes, artesãos e pequenos proprietários rurais tem em comum com a burguesia o fato de que são proprietários, e com a classe trabalhadora o fato de que necessitam do próprio trabalho para viver. De um lado, eles se identificam com a condição de proprietários, pois detêm o controle dos recursos produtivos do qual depende seu negócio (seja ele uma loja, restaurante, serralheria, oficina ou uma pequena propriedade rural). De outro, ao contrário da grande burguesia e assim como os trabalhadores, tiram a sobrevivência do seu próprio trabalho (e na maior parte dos casos, também do trabalho de sua família). Seu negócio de pequeno porte , mesmo que eventualmente conte com alguns trabalhadores assalariados, não tem escala suficiente para que possam viver apenas da extração de mais valia alheia. Esta condição contraditória determina a impossibilidade de sustentarem um projeto de sociedade próprio e autônomo (uma sociedade de pequenos proprietários é de tal forma anacrônica que mesmo em termos ideológicos sua eficácia é limitadíssima), e portanto sua ação política se dá necessariamente atrelada a uma das classes fundamentais – burguesia e trabalhadores. O fascismo é relevante precisamente porque permite historicamente colocar a pequena burguesia a serviço da grande burguesia, e mais ainda, por conformar tropas de choque em defesa de seus interesses.

É impressionante a atualidade da definição gramsciana sobre o significado do fascismo em um contexto de crise econômica e do papel da pequena burguesia nisto:

O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção e da troca através de rajadas de metralhadoras e de tiros de pistola. (…) Criou-se uma unidade e simultaneidade de crises nacionais, que fazem com que a crise geral seja extremamente aguda e incontornável. Mas existe em todos os países um estrato da população – a pequena e média burguesia –  que considera ser possível resolver estes gigantescos problemas com metralhadoras e pistolas. É este estrato que alimenta o fascismo, que fornece seus efetivos. (3)

Em janeiro de 1921, Gramsci observava o fenômeno então novo da realização de grandes manifestações de rua reacionárias, e o relacionava à “perda de importância da pequena burguesia”, “afastada de qualquer função vital no terreno da produção” e que tentando reagir a este processo “busca de todos os modos conservar uma posição de iniciativa história: ela macaqueia a classe operária, também faz manifestações de rua”. (4)

A referência ao “povo dos macacos”, na novela O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, (5) enseja uma ácida analogia de Gramsci sobre o sentimento de superioridade de classe e brutal incoerência dos discursos moralizantes da pequena burguesia: “o povo dos macacos, que acredita ser superior a todos os outros povos da selva, que acredita possuir toda a inteligência, toda a intuição, todo o espírito revolucionário, toda a sabedoria de governo, etc., etc. Ocorreu o seguinte: a pequena burguesia, que se pusera a serviço do poder governamental por meio da corrupção parlamentar, modifica a forma de prestação de serviços, torna-se antiparlamentarista e busca corromper as ruas”. (6) Curiosamente, toda agressividade, violência e militarismo de sua ação, que buscam expressar força e potência, na realidade expressaria justamente sua incapacidade orgânica:

Depois de ter corrompido e arruinado a instituição parlamentar, a pequena burguesia corrompe e arruína também as demais instituições, os sustentáculos fundamentais do Estado: o exército, a polícia, a magistratura. Corrupção e ruína realizadas a fundo perdido, sem nenhuma finalidade precisa (a única finalidade precisa deveria ser a criação de um novo Estado: mas o “povo dos macacos” se caracteriza precisamente pela incapacidade orgânica de criar para si uma lei, de fundar um Estado. (7)

Marcha sobre Roma, em 1922

Mussolini, na Marcha sobre Roma, em 1922

Ao mesmo tempo, a grande burguesia abdica de qualquer veleidade democrática e adere alegremente à barbárie proposta pelas tropas de choque que o fascismo coloca à sua disposição: “A classe proprietária repete, em face do poder executivo, o mesmo erro que cometer em face do Parlamento: acredita que pode se defender melhor dos assaltos da classe revolucionária abandonando as instituições de seu Estado aos caprichos histéricos do “povo dos macacos”, da pequena burguesia”. (8) O artigo é escrito quase dois anos antes da Marcha sobre Roma, marco da ascensão do fascismo ao poder, e por isto é particularmente interessante observar a clareza que Gramsci tinha sobre a verdadeira impotência que movia a pequena burguesia, crescentemente subordinada subjetiva e objetivamente ao grande capital, por mais que disfarçasse esta subordinação com tiros de pistola ou proclamações pretensamente “contra a ordem”. Seu balanço é arrasador:

A pequena burguesia, mesmo nesta sua última encarnação política que é o “fascismo”, revelou definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capitalismo e da propriedade agrária, de agente da contra-revolução. Mas revelou também que é fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa histórica: o povo dos macacos enche as crônicas, não faz história; deixa traços nos jornais, não oferece material para livros. A pequena burguesia, depois de ter arruinado o Parlamento, está arruinando o Estado burguês: ela substitui, em escala cada vez maior, a “autoridade” da lei pela violência privada; exerce (e não pode agir de outro modo) essa violência de modo caótico, brutal, e faz com que se ergam contra o Estado, contra o capitalismo, segmentos cada vez mais amplos da população. (9)

Se a última frase expressava o “otimismo da vontade” de Gramsci com a possibilidade de derrotar o fascismo através da concretização da revolução socialista, o restante assemelha-se assustadoramente com o processo que estamos vivendo no Brasil. Até recentemente podíamos ressalvar que ainda não se evidenciava a constituição de uma base militante organizada nos moldes de tropa de choque e a escalada da violência que a caracteriza. Não é possível mais ter a mesma segurança, e portanto é urgente reconhecer o fenômeno do fascismo, os elementos que o particularizam e a exigência imediata de seu enfrentamento.

 *Gilberto Calil é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. É autor, entre outros livros, de “Integralismo e Hegemonia Burguesa” (Edunioeste, 2011) e pesquisa sobre Estado, Poder, Direita, Hegemonia, Ditadura e Fascismo. [email protected]

Foto: Mussolini discursa em Roma, em 1925.

NOTAS

1 – GRAMSCI, Antonio. “Itália e Espanha”. In: Escritos Políticos. Volume 2, 1921-1926. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 48.
2 – REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
3 – GRAMSCI, “Itália e Espanha”. In: Escritos Políticos, op. cit.. p. 46-7. Grifo meu.
4 – GRAMSCI, “O Povo dos Macacos”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 31.
5 – RUDYARD, Kipling. O livro da selva: as histórias de Mogli. São Paulo: Scipione, 2009. A edição original é de 1894.
6 – GRAMSCI, “O Povo dos Macacos”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 31-32.
7  – Idem, p. 32. Grifo meu.
8 – Idem, p. 33.
9 – Idem, p. 34.

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