Nesta quinta-feira, 09 de agosto, está prevista a votação no Superior Tribunal Federal (STF) do Recurso Extraordinário 494601, que visa penalizar o abate alimentício de animais em cultos religiosos. Na prática, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, com todas as boas intenções conhecidas do racismo estrutural e eugênico do Brasil, solicita ao Supremo Tribunal Federal, última instância de nosso Judiciário, que decida se é lícito ou não a prática das religiões de matriz africana.
Ao querer suspender a lei gaúcha 12.131/2004 que constitucionaliza a sacralização de animais em cultos afro-brasileiros, assegurando a liberdade religiosa e proibindo a perseguição ao Candomblé, à Umbanda e às demais religiões afro-brasileiras, o MP-RS quer, na prática, inviabilizar tais cultos, num momento de ascensão do conservadorismo, da intolerância religiosa (que reverbera inclusive em ataques a templos e terreiros). Qualquer pessoa poderia chamar a polícia, proibir qualquer gira, ebó ou festa com a argumentação frágil de maus tratos de animais.
Há racismo religioso em vários pontos dessa postura vinda do MP-RS, e que revela o racismo estrutural da sociedade brasileira, mostrando o quanto ele é complexo e atinge diversos aspectos de nossas vidas.
Existe no senso comum o ideário de marginalidade, banditismo, de “algo perigoso”, herege, não-católico (e portanto bruxaria, algo que merece condenação inquisitória) em torno da nossa cultura e religião ancestrais. O que vem da África é sujo, é demonizado. Isso foi fruto da colonização do Brasil por Portugal e do funcionamento da Inquisição Católica em nossa sociedade, que tratou de demonizar a cultura negra e indígena para formar a ideologia dominante na moral e nos costumes, para dar mais legitimidade para a Europa dominar, explorar e escravizar. Afinal, a escravidão também era legitimada pelo mito da inferioridade das raças não-brancas, e isso inclui a inferiorização da produção cultural e religiosa milenar dos povos ameríndios e africanos.
Com isso, o intento da demonização era cravar, por parte dos dominadores, a vitória intelectual e moral da Europa branca, civilizada e católica, sobre o negro e o indígena “selvagens”, incultos e feiticeiros. E durante o século XX, não podemos esquecer, a capoeira e as religiões afro-brasileiras eram crimes, sujeitas a perseguições, prisões, e até linchamentos e mortes por civis, na mesma época em que tentava se convencer internacionalmente que no Brasil existia “democracia racial” ao mesmo tempo que existia a esperança de “resolver o problema negro” através do embranquecimento da população, e do incentivo a técnicas da Eugenia, conforme prescrito na Constituição de 1934…
Nos tempos modernos, vemos a apropriação deste “modus operandi” outrora hegemônico da Igreja Católica, por alguns segmentos ultraconservadores da mesma, e também agora de alguns segmentos de igrejas evangélicas neopentecostais.
Em seguida, destacamos que não há de fato uma preocupação, no argumento dos maus tratos a animais, com as condições reais dos animais no Brasil. Primeiro porque qualquer iniciado no Candomblé ou abian (pessoa que está na religião mas não se iniciou ainda) sabe que nossos cultos são para alimentação espiritual e material das nossas comunidades, não envolve produção industrial e muito menos maus-tratos (coisa que inclusive enfurece o nosso Sagrado, os nossos orixás). Proibir-nos de criar nossas galinhas soltas no quintal dos terreiros para depois sacralizá-las em culto e alimentar nossa comunidade é o mesmo que proibir a criação da galinha caipira que alimenta uma família camponesa.
E é nesse ponto que desejamos chegar: aos de baixo, à população negra, ao povo de axé, todo tipo de perseguição e importunamento, mas aos de cima, às elites que lucram de forma exorbitante com o modelo atual de alimentação, nenhum constrangimento ou ação no STF.
Não há preocupação do MP-RS e dos setores hegemônicos da sociedade com a esmagadora maioria de nossa fauna, que vem sendo dizimada tanto com a destruição da flora e de seus habitats como pela caça predatória, para dar lugar a pasto ou soja do poderoso agronegócio, destruindo a Natureza e levando-nos a um possível ecocídio em gerações futuras. Não é vista uma preocupação desses setores com a segurança alimentar de nossa população, que continua com uma parcela dela enfrentando a fome, enquanto há imenso desperdício de alimentos, pelo simples fato que no nosso sistema o acesso à alimentação está atrelado ao acesso ao dinheiro. Não falamos amplamente, na sociedade, de incentivo à agricultura familiar e sustentável, sem o uso desenfreado e insano dos agrotóxicos e nem com as condições de trabalho (das pessoas) e de vida (dos animais de outras espécies) nos matadouros, granjas e fábricas da Sadia, da Friboi, da BRF e outras gigantes empresas de alimentação. Antes de palpitar sobre o culto de Candomblé e Umbanda, você já se perguntou como o peru de natal chega na sua mesa ?
A sacralização ritualística precisa ser respeitada enquanto ritual sagrado. Não é papel do Estado decidir ou definir quais são os rituais religiosos possíveis ou não de serem realizados. Até porque as religiões de matriz africana não são as únicas a utilizarem o sacrifício animal para acessar o sagrado. A ação do MP-RS não busca impedir, por exemplo, o abate sacralizado no judaísmo e no islamismo, que também se valem de sacrifícios animais, entendidas como abate comercial (e se buscasse impedir, nós também nos colocaríamos contra).
Por isso é importante a unificação de entidades, movimentos sociais (em especial ao movimento negro), sociedade civil e lideranças de terreiros para pressionar o STF e dizer não à demonização de nossos ritos, dizer não ao racismo religioso histórico disfarçado de demonização e não à criminalização de nossa ancestralidade e de nossas religiões. É preciso se somar às marchas que estão sendo articuladas em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Salvador.
Pelo direito de alimentar, de sacralizar e de existir!
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