Parece haver diminuído o impacto da candidatura Ciro Gomes. Dar ares que a inflaram apenas com o intuito de, em seguida, reduzi-la a pó. Mas que o leitor não se engane: as cartas ainda estão sobre a mesa e o jogo ainda não acabou. De fato, ele está apenas começando. Independentemente dessas considerações, Ciro Gomes, volta e meia, produz ligeiro encantamento em setores que, tradicionalmente, são identificados com a esquerda, para quem o ex-governador do Ceará costuma acenar. Este texto trata sobre esse e outros acenos.
Quem é Ciro Gomes?
A família Ferreira Gomes constitui um grupo muito comum em regiões nas quais a política tende a encontrar uma equação no uso de métodos, em geral, pouco civilizados. Não por acaso, Ciro Gomes é conhecido pelo seu “temperamento explosivo”. Truculência à parte, a família começa a governar a cidade de Sobral – norte do Ceará – nos primeiros anos de implantação da República no Brasil (final do século XIX). E, com idas e vindas, esse domínio se estende até os dias atuais, quadro que sugere o uso de expressões como clã ou oligarquia para caracterizar o senhorio político da família.
Como parte inseparável dessa história, Ciro Gomes – que nasceu no estado de São Paulo e não em território cearense – surge para a vida política no último quartel do século XX, favorecido pelo grupo político do coronel César Cals, ex-governador do Ceará e ministro da ditadura militar. Assim, torna-se deputado estadual em 1982, conseguindo a reeleição em 1986, quando, finalmente, se torna braço direito do governador neoliberal Tasso Jereissati. Quando Jereissati aplica uma dura reforma no âmbito do Estado encontra apoio incondicional no presidente da Assembleia Legislativa: Ciro Gomes.
Daí em diante, o líder “sobralense” faz o que habitualmente se chama de sólida carreira política: prefeito de Fortaleza, governador do Ceará, ministro de Estado por mais de uma vez etc. Em todos esses momentos, os velhos e duros métodos oligárquicos o acompanharam – notadamente em suas relações com os movimentos sociais. Os professores e os profissionais de saúde do Ceará conhecem, como ninguém, esses métodos, que quase se traduzem em um lema: “Não negocio com grevistas”.
É com esse histórico que, uma vez mais, Ciro Gomes se apresenta como candidato à presidente da República, e, agora, ele se mostra na pele de outro partido, o PDT (da primeira vez, havia sido o PPS). Aliás, a trajetória do presidenciável compreende inúmeros partidos, começando pelo PDS (partido que apoiava a ditadura), passando pelo PSDB, PPS, PSB, PROS e, agora, PDT. Esse histórico de acenar em distintas direções talvez explique por que Bolsonaro declarou seu apoio a Ciro em 2002.
Que país é esse de Ciro Gomes?
O candidato dos Ferreira Gomes apresentou recentemente seu programa, intitulado “12 passos para mudar o país”. Trata-se de um amontoado genérico que ajuda pouco o eleitor na sua dura missão de captar o que, efetivamente, pensa o postulante à Presidência da República. É preciso ir mais fundo na investigação do que se contentar com uma dúzia de generalidades. É mais do que sabido que as ideias defendidas por Ciro dialogam com a de estratos de especialistas e estudiosos que, de algum modo, se conectam com a figura do ex-ministro. Pessoas como Mauro Filho, “o mago” das finanças dos últimos governos cearenses, e Mangabeira Unger, intelectual cosmopolita, estão entre os que, oriundos do mundo acadêmico, costumam assessorar o presidenciável. No caso de Unger, há trabalhos comuns, inclusive no campo do impresso. Ao examinar essas afinidades intelectuais e políticas, fica mais fácil entender que país é esse de Ciro Gomes.
É prática habitual da tríade – Ciro-Mauro-Unger – mencionar a necessidade de um aumento da taxa de poupança nacional. No livro “Um desafio chamado Brasil”, de Ciro Gomes, essa questão está posta com algum grau de centralidade. Nesse livro, por exemplo, um dos caminhos propostos é exatamente levar a cabo uma profunda reforma da Previdência. Os trabalhadores, que evitaram a aprovação da reforma da Previdência de Temer, devem estar se perguntando: que país é esse? Que reforma é essa? Nós saímos de uma e podemos entrar em outra?
Para que não aparente uma análise arbitrária, não custa conferenciar com Mangabeira Unger. O filósofo cirista nos remete à ideia de um “ajuste fiscal enriquecedor do Estado” e, nos limites dessa lógica, sustenta que a “reforma do sistema previdenciário oferece oportunidade privilegiada para organizar e elevar a poupança privada” (FSP, 04-05-1997). Percebe-se que mais do que uma ideia, é uma obsessão, afinal cerca de duas décadas nos separam dessa imagem de um país sempre à espera de um eternamente “oportuno” ajuste fiscal, do qual a reforma da Previdência é um imperativo. Aqui, nunca se deve perder de vista que Ciro Gomes é um crítico de FHC por esse não haver levado até o fim as reformas. Imagine se houvesse levado!
Para que não se diga que essa história de ajuste fiscal é coisa de Unger – um filósofo -, lembremos de que Mauro Filho, responsável pelo programa econômico de Ciro Gomes, tem enfatizado que “o primeiro passo é fazer ajuste fiscal” (O Povo, 07-05-2008). Para Mauro Filho, “Sem ajuste o Brasil vai à bancarrota” (idem). Depois de criticar o chamado “teto dos gastos”, o principal assessor econômico de Ciro declara que o “teto dos gastos” deve ser mantido para “pessoal, custeio e Previdência”. Em poucas palavras, arrocho fiscal, arrocho salarial, arrocho social. Eis o país de Ciro, que, ironicamente, é tomado por alguns como portador de um projeto neodesenvolvimentista.
Os acenos de Ciro
Nos últimos meses, os jornais não cansaram de escrever a respeito dos acenos de Ciro. Ora ele acenava para o empresariado, ora acenava para os trabalhadores; ora acenava para a direita, ora acenava para esquerda. Acenos para todos os gostos, classes e clivagens políticas. Tentemos interpretar esses sinais, meneios, acenos, enfim, como o leitor queira chamar esses gestos.
De um lado, embora com ligeiras variações, Ciro buscou capitalizar a prisão de Lula, não defendendo imediatamente “Lula livre”, mas propondo que os defensores do ex-presidente se reunissem em todo dele e de seu programa de 12 pontos; de outro, acenou para o mal denominado “Centrão”, uma feira de partidos da direita, retrógrados, artífices da reforma trabalhista.
Esses acenos se tornaram de tal modo constrangedores que Mangabeira Unger – auxiliar direto de Ciro – filosofou: “Não vejo o DEM como um partido de direita” (ESTADÃO, 01-07-2018). Ora, se o DEM não é de direita, não existe partido de direita no Brasil. O DEM veio do PFL, que nasceu de uma costela do PDS, herdeiro da ARENA, que, ao se formar nos anos da ditadura, recolheu as figuras mais reacionárias provenientes da UDN, o partido golpista de 1964. Pior: nessa entrevista para o Estadão, o professor de Harvard afirma que o DEM – partido das oligarquias regionais – é simplesmente “o partido dos empreendedores regionais”. Mais nítido do que isso, impossível.
Com efeito, Ciro acena para um país que exige mudança, fala de mudança e, em última análise, apregoa o velho evangelho neoliberal, e embora busque flertar com a esquerda, traz em seu DNA um programa de ajustes inventado pela direita (talvez por isso, certa simpatia com privatizações). Acena para o seu velho sonho de ser presidente e para que esse sonho seja real não se constrange de acenar para o lado que o vento sopra. Sonha agora que o vento vai levá-lo. Esquece, contudo, que por mais que se esforce, certamente, não é o número um da burguesia. Pessoalmente, o número um da burguesia ainda é o médico de Pindamonhangaba; partidariamente, o PSDB. Doutro lado, embora Ciro Gomes iluda uma parte da esquerda (Haddad, por exemplo, sugere que “a ideia da chapa com Ciro não morreu”), a esquerda, em seu sentido mais amplo, sabe o que se esconde por trás de seu aceno: uma história e um programa – e esses, com certeza, não coincidem com um perfil de esquerda.
FOTO: André Carvalho / CNI / Fotos Públicas
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