Nos dias que antecederam o 25 de julho eu pensei muito sobre o que queria falar, sobre que temática abordaria para tratar do Dia da mulher negra Latina e caribenha. Pensei em escrever sobre a violência que nos aterroriza, que nos mata, a violência histórica com a qual convivemos diariamente. Mas enquanto eu escrevia e analisava os dados, eu descobri que estava cansada, literalmente cansada. Cansada de contar corpos negros, cansada dos dados estatísticos. Cansada de olhar para aqueles dados e ter que ser forte diante deles, cansada de não ter respostas, enfim, cansada, muito cansada.
Eu me recuso a olhar para os dados estatísticos de forma desumana, não quero falar sobre violência nessa nota. Não porque não seja importante. A denúncia constante do genocídio é uma arma política que temos, mas por um momento eu quero olhar para as minhas irmãs e lembrar que somos resiliência, embora não tenhamos a obrigação de sermos fortes o tempo todo. Aliás, todas as pretas deveriam saber disso: não temos obrigação nenhuma de sermos fortaleza o tempo inteiro.
Eu decidi que queria contar uma história. A história de uma mulher negra como eu, a história de um símbolo do feminismo negro. Porque olhar para a história dessas mulheres significa dar um novo olhar para nós mesmas e para o sentido da nossa militância. E para relembrar o quanto a nossa ancestralidade é motivo de orgulho, que aquelas que vieram antes de nós são as grandes responsáveis por continuarmos aqui, erguidas.
Somos mulheres negras, somos resiliência
Akron, Ohio, 1851. Dia da primeira Convenção Nacional pelos Direitos das Mulheres. Naquele período histórico os EUA ferviam com os conflitos entre o Norte e o Sul do país e os movimentos abolicionistas, conflitos que, posteriormente, acarretariam em uma guerra civil no país. Naquele período também as mulheres começaram a se organizar na luta por direitos, especialmente as discussões do direito ao voto. Como não poderia ser diferente, apesar da movimentação importante das mulheres americanas naquele momento, composto inclusive por muitas mulheres pertencentes aos movimentos abolicionistas, aquele era um movimento com um corte de classe bem definido: era composto majoritariamente por mulheres brancas, de classe média e abastadas. Questionavam a posição de sujeição, subordinação e violência das mulheres no casamento, na vida doméstica dedicada ao lar, aos filhos e aos seus maridos, mas ignoravam por completo a situação de opressão vivida pelas mulheres trabalhadoras, operárias brancas, nas fábricas, e ignoravam ainda mais a situação das mulheres negras no Sul e no Norte dos EUA.
No dia da Convenção Nacional o ainda incipiente movimento de mulheres americano se preparava para uma convenção histórica e para enfrentar a presença de homens nessa convenção que manifestamente achavam aquele espaço absolutamente desnecessário: porque mulheres precisavam votar? Porque reivindicar direitos? Sim, havia homens na convecção, por mais absurdo que isso possa parecer hoje em dia.
Nesse dia, porém, uma mulher se destacava. Usando um turbante branco, vestida rusticamente, a ex-escrava, única mulher negra presente naquela convenção, enfrentava a hostilidade de um feminismo nascente que negava a sua existência. Não fosse a solidariedade de algumas poucas mulheres que defendiam a causa abolicionista, aquela mulher negra, definitivamente, não estaria ali. Portanto, não havia nenhuma preocupação classista naquele movimento, não se fazia uma ligação real entre a exploração capitalista, o racismo e o sexismo. Mas Sojourner Truth estava lá, como representante de suas irmãs escravas e ex-escravas, como um anúncio do que deveria ser o movimento feminista no futuro.
Uma parcela significativa das mulheres brancas presentes naquele local, algumas inclusive abolicionistas, não desejava a presença de Sojourner Truth. Pior, tentaram impedi-la de falar tamanha era a sua aversão racista a presença de uma mulher negra e ex-escrava em uma convenção para se discutir os direitos das mulheres.
Acontece que aquela mulher negra não se intimidou e muito menos se retirou, aliás, nunca foi do feitio de Sojourner Truth se intimidar. Contra o racismo e o sexismo da época aquela mulher preta participava de vários encontros, tomava a palavra e falava, mesmo tendo que lidar com a hostilidade do movimento de mulheres. Até hoje, segundo aponta Angela Davis, não se sabe ao certo se Truth foi convidada para Convenção ou se foi por sua própria iniciativa. O que importa é que ela estava lá e aquele dia seria totalmente diferente sem a sua presença.
Durante a Convenção os ataques sobre a supremacia masculina começaram, eram terríveis, vinham de todos os lados, e ridicularizavam as mulheres. Intimidadas, sem conseguir dar repostas, as mulheres brancas presentes naquele local não sabiam responder. Os homens presentes na convenção queriam demonstrar que as mulheres não tinham capacidade alguma de serem sujeitos de direitos, de votar, ou qualquer coisa do tipo, já que eram frágeis demais para tal coisa. Segundo eles, as mulheres precisavam de ajuda até para pular uma poça de lama ou embarcar em uma carruagem, portanto, como poderiam votar? Então a voz de trovão se ergueu, voz de trovão era o termo que uma das mulheres presente à convenção na época usou para descrever o discurso de Sojourner.
Truth se ergueu irritada com tanto machismo. E provavelmente com um ódio gigante do racismo daquele lugar. Como muitas de nós, cansadas do racismo e do sexismo, Truth fez da sua raiva uma arma. E que arma! Depois de comprar uma briga com as mulheres racistas daquela convenção, ela finalmente conseguiu falar, e com a sua fala, entrou para a história:
“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari cinco filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”
Em apenas poucos segundos Sojourner fez cair por terra o mito da fragilidade feminina, calou por completo os homens presentes naquela convenção, e, segundo relata Angela Davis na obra “Mulheres, raça e classe”, negou a tese de que a supremacia masculina era um princípio cristão:
“Daí aquele homenzinho de preto ali disse que a mulher não pode ter os mesmos direitos que o homem porque Cristo não era mulher! De onde o seu Cristo veio? De onde o seu Cristo veio? De Deus e de uma mulher! O homem não teve nada a ver com isso. Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo por sua própria conta, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de conserta-lo, colocando-o do jeito certo novamente. E agora que elas estão exigindo fazer isso, é melhor que os homens as deixem fazer o que elas querem”.
Truth teve um papel fundamental naquele dia e nos dias e anos que se seguiram, já que ela continuou caminhando, falando nos espaços, fazendo seus discursos, quebrando paradigmas, revelando o quão nociva é a opressão racista e machista que as mulheres negras estão submetidas.
Se o racismo com a presença de Truth no movimento de mulheres terminou depois daquele dia? Evidente que não. Aquele era um movimento completamente omisso as condições das mulheres trabalhadoras e das mulheres negras. Truth continuava tendo seu espaço negado, mas sua obstinação em estar naqueles lugares revelou não só a face cruel do movimento feminista nascente nos EUA, mas a necessidade de um movimento classista.
E ela insistiu, persistiu, imprimiu sua marca e o seu discurso, conhecido como “E não sou uma mulher?”, tornou-se uma das maiores referências para o feminismo negro, uma inspiração para uma geração inteira de mulheres negras.
Por um feminismo negro e das mulheres trabalhadoras
Neste dia 25 é necessário que nós, mulheres negras, saibamos onde encontrar forças para continuar essa jornada iniciada por mulheres como Truth. Estamos calejadas, é verdade, mas estamos aqui, vivas, com uma vontade imensa de lutar, movendo as estruturas do racismo e do patriarcado, prontas para dar continuidade ao que nossas ancestrais iniciaram antes de nós.
Que possamos dar conta da nossa militância cuidando de nós mesmas e umas das outras, da nossa autoestima, dessa força interior enorme capaz de fazer balançar o capitalismo, porque somos vanguarda em muitas lutas.
Que nesse dia 25 possamos nos sentir verdadeiramente abraçadas. Que se compreenda que o nosso feminismo precisa ser negro e classista ou não será feminismo, mas apenas um apanhado de ideias que não reflete a realidade das mulheres brasileiras.
Por Sojourner Truth, por Dandara, por Tereza, por Marielle, por todas que vieram antes de nós, viva o Dia Internacional da Mulher negra Latina e Caribenha!
Referências: a narração histórica presente nessa nota está baseada na obra de Angela Davis “Mulheres, raça e classe”, capítulo 3, pg 57 a 79.
Foto: Carol Burgos
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