Por Mário Maestri
Minha mais forte e antiga recordação do Clóvis Oliveira é um encontro, rápido, como era praxe na época, na Borges de Medeiros com a Salgado Filho, em fins de 1970. Uma ação aventureira de grupo armado contra diplomata estadunidense ensejara repressão geral contra a esquerda organizada rio-grandense. As organizações que procuraram contribuir para a reorganização do movimento operário e estudantil foram as primeiras a cair, já que mais abertas à vida real.
Clóvis Oliveira, estudante universitário, militava na Fração Bolchevique Trotskista do POR, primeiro grande grupo trotskista sulino, de origem posadista. Eu, em micro-grupo trosko em extinção. Éramos companheiros na frente estudantil, a Tendência à Aliança Operário-Estudantil. Seus companheiros da FBT balançavam ou já começavam a cair – Vito Letizia, Vera Stringuini, Sylvio Nogueria, Daives Hutz, Nara Machado, Romualdo Machado, entre outros. Falei que viajaríamos para o Chile, eu e Sandra Machado, então minha companheira. Clóvis, bastante tenso, disse que ficaria. Algum tempo depois, foi preso.
Naqueles anos, fora o PCB, que seguia propondo aliança com a “burguesia progressista”, os trotskistas eram os únicos que criticavam duramente o caráter pequeno-burguês e aventureiro da luta armada incondicional. Propunhamos que a libertação social seria necessariamente obra da insurreição dos trabalhadores do campo e da cidade. Como ainda seguimos propondo.
Voltei a Porto Alegre sete anos mais tarde, em fins de 1977. Encontrei-me com Clóvis, creio, na praça da Alfândega. Seguia no combate, firme. Militava na Organização Socialista Internacionalista, que animava a tendência estudantil “Liberdade e Luta”, a famosa Libelu. Fora nela que, com diversas defecções, confluiram os militantes duros da FBT, em 1976. Eu me ligara à Convergência Socialista. Seguíamos primos-irmãos, com as tradicionais birras de família. Mais tarde, com a resistência da OSI em participar da fundação do PT, Clóvis Oliveira e Sylvio Nogueira animaram pequena ruptura que denominou sua frente estudantil de “Avançar a Luta”, a Avalu, para os próximos.
Clóvis Oliveira cursou história e economia, na UFRGS. Estudioso incansável, unia uma sólida cultura geral a um domínio seguro do método marxista, que a longa militância apenas consolidou. Trotskista de boa cepa, tinha como princípio a centralidade da luta operária, da qual, não abria mão. Manteve-se na defesa incondicional da URSS, até o golpe contra-revolucionário de Ieltsin. Conclamou a cerrar-se filas, contra o imperialismo, na defesa da independência nacional do Iraque, da Síria, da Líbia, etc. por além do carácter de seus governos. [DS, 28, 13.01.2017]
Clóvis não seguiu, como poderia ter feito, a vida acadêmica. Trabalhou como economista no Estado e se dedicou sobretudo ao magistério público estadual, com, desde 1978, uma longa, persistenta e destacada militância no Cpers, o forte e combativo sindicado dos professores estaduais sulinos. Não houve campanha e greve que não o encontrassem nas primeiras filas. Era respeitado pela urbanidade, persistência, coerência e clarividência.
Intelecual orgânico, na acepção plena do termo, Clóvis pensava e agia. Há anos, animava o “Centro de Estudos e Debates Socialistas”, que publicava periodicamente uma folha, “Debate socialista”, comentando os principais sucessos políticas estaduais, nacionais e internacionais, sempre com contensão e clarividência. O último que recebi, o número 47, de maio, abordava as eleições deste ano. Exigia o direito de Lula da Silva, que definia como “preso político”, de participar das eleições. Mas lembrava que os “governos do PT desarmaram as massas para resistir ao golpe, através de acordos com partidos burgueses de direita e evangélicos e da barganha de cargos, para garantir maioria parlamentar. Era possível fazer recuar o golpe que foi montado para prender Lula, se o PT e o PCdoB, e as centrais CTB e CUT, não tivessem recuado da greve geral prevista para 5 de dezembro de 2017, contra a Reforma da Previdência.” Ao romper com o PT, Clóvis jamais militou no PSOL.
Falei por última vez com o companheiro em 8 de outubro, quando do lançamento da biografia de Stalin por Trotsky, que comentei crer ser o pior livro do “Velho”. Respondeu-me que o lera havia muito. Estavam Nara e o Ponge, companheiros seus na FBT e na OSI. Propus, mais uma vez, a necessidade de escrever a história sobretudo política da FBT do POR, uma fixação minha.
Lembrei que nossa geração começava a “abandonar a luta”, por esgotamento do “tempo de validade”. Clóvis sorriu, com seu sorriso que pareceu-me sempre habitar campo indefenido entre o alegre, o amargo e o irônico. Falou-me que reunira farto material e começara a escrever a história do grupo. O que me tranquilizou. Não havia ninguém melhor do que ele para cumprir tal tarefa.
A reedição, consolidada, do Debate Socialista e do que tenha escrito sobre a FBT do POR não é apenas homenagem incontornável mas uma forma de permitir que esse comunista revolucionário infatigável siga entre nós, na luta, de onde jamais arredou o pé.
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