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MOVIMENTO

Luiz Alberto, presente! Uma homenagem ao militante histórico do Partido dos Trabalhadores e do Movimento Negro Unificado

por Jean Montezuma, de Porto Alegre (RS)
“Eu sou negro, e negra é a cor da liberdade.
Sou negro como o rio, sou negro como a dor.
Sou negro como o mar, sou negro como a verdade.
Verdades negras, soando ao toque do tambor.”
(Poema Ilê Aiyê, a flor púrpura)

O meu primeiro e único encontro pessoal com Luiz Alberto (1) aconteceu em julho de 2018. Eu já era militante há uma década, portanto, já conhecia um pouco da sua trajetória política. Mas, naquela terça-feira, 10 de julho de 2018, fui encontrá-lo como um estudante cuja entrevista com o ex-deputado federal seria essencial para minha monografia. Minha pesquisa era sobre a relação entre o movimento negro e a fundação do PT na Bahia, logo, era incontornável entrevistar Luiz Alberto, militante histórico com a trajetória ligada a fundação de ambos, Partido dos Trabalhadores e Movimento Negro Unificado. 

Marcamos num bar, no tradicional e popular bairro do 2 de Julho, na capital baiana. Cheguei antes do horário, busquei uma mesa mais reservada e aguardei (nervoso, confesso). Assim que chegou, Luiz Alberto foi logo quebrando protocolos, me cumprimentou como quem cumprimenta um velho conhecido e, sorridente, perguntou se podíamos pedir uma cerveja. Na enorme TV do bar que estava atrás de nós, França e Bélgica se preparavam para entrar em campo pela semifinal da Copa do Mundo. Falamos um pouco sobre a Seleção, eliminada dias antes pela mesma “geração Belga”, depois sobre o Bahia que também dias antes havia perdido em plena Fonte Nova a final da Copa do Nordeste para o Sampaio Corrêa. Pronto, feita a resenha, a tensão havia passado, e dali em diante mais relaxado, poderia desfrutar da aula que Luiz Alberto Santos estava prestes a me proporcionar sobre parte da história do protesto negro brasileiro, sobre o PT e a esquerda, sobre a relação entre raça, racismo, exploração e luta de classes. 

Quando tomei conhecimento da sua morte, o primeiro sentimento foi a tristeza. Em seguida, ao rememorar sua trajetória e os feitos da geração da qual fez parte, veio a gratidão. A nossa geração sabe bem as dores e alegrias de não abaixarmos a nossa cabeça e nos afirmarmos como negras e negros, sabemos também os imensos desafios políticos e sociais com os quais precisamos nos confrontar no nosso tempo. Porém, também sabemos reconhecer que a luta que travamos hoje, no que diz respeito à afirmação de uma consciência racial, se dá em melhores condições porque antes de nós Luiz Alberto e tantos outros pavimentaram esse caminho. 

Retornando àquela entrevista (2) na mesa de bar, lá em julho de 2018, busco nas palavras de Luiz Alberto um pouco das lições que a sua geração nos ensinou. Uma delas é que quando a nossa cultura é negada, ou tratada como uma coisa menor, de segunda categoria, afirmá-la é um ato político. Na ocasião, usou como exemplo o processo que deu origem ao Ilê Aiyê, que ele acompanhou de perto: 

“Em meados de [19]74 surgiu um grupo de jovens, nessa época eu estudava no Colégio Duque de Caxias, esse grupo começou a se reunir para debater o racismo no carnaval. A partir daí surgiu a idéia de criar um bloco que foi o que posteriormente veio a se chamar Ilê Aiyê, e que era o ‘Poder Negro’, e que questionava os blocos tradicionais como Traz os Montes, Internacionais, que eram blocos de

brancos e não permitiam que os negros saíssem nesses blocos. Então essa juventude negra, também inspirada em blocos como os Filhos de Gandhy e pelas escolas de samba que existiam em Salvador, decidiu criar um bloco com essas características” 

Quem conhece um pouco da trajetória da reorganização do movimento negro nos anos 1970 sabe bem que o político e cultural andavam juntos. Por todo Brasil, havia centenas de coletivos que produziam jornais, organizavam grupos de teatro, música e poesia, traduziam livros, promoviam bailes de Soul, e agrupavam uma juventude que se inspirava na luta por direitos civis nos EUA, nos Panteras Negras e nos movimentos anti-coloniais de libertação que ocorriam em África, especialmente Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Princípe. Foi nesse caldeirão que se temperou a ideia da constituição de um movimento que unificasse a militância negra. O MNU – Movimento Negro Unificado – foi um grande legado que a geração de Luiz Alberto nos entregou: 

“O MNU sempre teve uma concepção de uma organização política que apresentasse um debate de construção de um projeto político no Brasil, a partir da concepção da militância negra. O MNU tinha ferramentas orientadoras: tinha um estatuto, tinha um plano de ação, tinha uma carta de princípios. Realizava periodicamente congressos nacionais para atualizar a sua agenda política nacional e, portanto, formou um conjunto de militantes que foram muito importantes na construção do PT, mas também de outros partidos de esquerda.” 

Essa perspectiva de um projeto político que coloque “a concepção da militância negra” no centro, ainda hoje é território de intensas disputas. Há quem insista em opor classe a raça, como se fosse possível apartar o Brasil da sua própria história. Tão logo se pauta o debate, a carta do “identitarismo” em tom acusatório é lançada. Sobre isso, entre um gole e outro na sua cerveja gelada Luiz Alberto me disse naquela tarde: 

“Em nenhum momento nossa militância contestava a ideia de luta de classes, mas ela tentava construir uma formulação para demonstrar que a luta de classes no Brasil assumia características distintas da luta de classes na Europa. Que tinha uma particularidade no Brasil que combinava exploração e opressão. A esquerda nunca conseguiu compreender essa formulação, opondo a esse debate da questão racial, a luta de classes como solução última para todas as questões. Nós insistimos sempre: o capitalismo, ele assume determinadas características dependendo de que lugar ele está sendo operado. Tem uma operação geral que é a extração e desapropriação da riqueza da mão do trabalhador, isso é universal. Agora como isso se dá, de que forma é mais ou menos potencializado, vai depender de situações específicas. Em países como o Brasil você percebe que há ali uma especificidade do ponto de vista da operação do capitalismo, na extração da riqueza, na acumulação do capital que se deu com a escravidão. Então nesse debate a gente nunca teve, vamos dizer assim, paz com o conjunto da esquerda. Não só no PT, aí eu coloco a esquerda de um modo geral.” 

A lucidez com a qual apresentou essas ideias reflete a maturidade de quem sabia o caráter estratégico desse debate, por entender que o destino da esquerda e do ativismo negro estavam ligados, que um sem o outro carecem da radicalidade necessária para transformar estruturalmente a nossa sociedade solapando as suas injustiças sociais. Essa certeza, ou melhor dizendo, confiança histórica, não o impedia de ser crítico. Essa criticidade, aliás, é outro exemplo que resgato daquela nossa conversa: 

“Ainda hoje há uma insuficiência nessa compreensão. No que pese a gente ter avançado neste debate, não se concluiu que tipo de natureza de formulação política nós precisamos ter para o Brasil”

Luiz Alberto estava certo. Se um programa político representa uma síntese histórica de múltiplas determinações – objetivas e subjetivas – que traduzem uma visão de mundo, ainda está em disputa o caráter que irá assumir o programa da nossa revolução. Está longe de ser ponto pacífico no universo daquilo que reconhecemos como a esquerda brasileira, que o antirracismo é um componente programático estruturante, que a nossa história produziu por um lado, um capitalismo pautado na superexploração e na violência (essa última em suas múltiplas faces), e por outro lado, uma classe trabalhadora na qual raça e classe se materializam como categorias sobrepostas. 

Neste dia 13 de dezembro de 2023, Luiz Alberto Santos fez a sua passagem. Aos 70 anos, seguia na atividade. Ano passado participou do gabinete de transição para o terceiro mandato de Lula como presidente e, antes disso, esteve em campo na luta para derrotar o bolsonarismo nas urnas. A vida é finita, mas o legado de quem luta perdura nas relações políticas que constituiu, no exemplo das batalhas que encampou, e no legado coletivo que ajudou a construir e a deixar como heranças para as novas gerações. 

Luiz Alberto, PRESENTE! 

Notas

1 Luiz Alberto Santos foi deputado federal pelo PT da Bahia entre 1997 e 2015. Foi também Secretário de promoção da igualdade racial da Bahia entre 2007 e 2008, durante o governo de Jaques Wagner (PT). Foi fundador do PT na Bahia, assim como do Movimento Negro Unificado (MNU), além de liderança sindical entre os petroleiros. 
2 As citações utilizadas no texto fazem parte de entrevista realizada em 10 de julho de 2018, concedida pelo ex-deputado federal Luiz Alberto, ao autor desse texto para a ocasião do trabalho de conclusão de curso “Convergência de raça e classe: A militância negra nos primeiros anos da trajetória petista em Salvador”.