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Haiti: a renúncia do primeiro-ministro e a continuidade da crise

Matheus Gomes

Deputado estadual pelo PSOL no Rio Grande do Sul, Matheus Gomes é historiador, servidor do IBGE e ativista do movimento social há mais de 10 anos. Sua coluna mostra a visão de um jovem negro e marxista sobre temas da política nacional e internacional, especialmente dos povos da diáspora africana.

Jack Guy Lafontant, primeiro-ministro do Haiti, renunciou ao cargo nesse sábado (14), após semana marcada pela forte greve geral, ocorrida entre segunda e terça-feira, e a paralisia do governo de Jovenal Moise (Partido Tèt Kale) ante a pressão do FMI pela continuidade da aplicação do ajuste econômico na ilha.

A renúncia foi uma ação combinada entre o presidente, o premiê e os líderes da Assembleia Nacional, que visam acalmar os ânimos populares. Entretanto, a situação de Moise complica-se a cada dia. O presidente eleito no pleito manipulado de 2016 já não possui a mínima base social para governar.

Por um lado, a elite haitiana, completamente desprovida de um projeto de desenvolvimento autônomo do imperialismo, acirra seus conflitos internos. Um dos agentes fundamentais da renúncia de Lafontant foi o Fórum Econômico do Setor Privado, o grupo mais poderoso do país, que exigiu sua saída na última terça-feira. De acordo com o jornalista Alcides Carrazana, setores da burguesia comercial, nutridos pelas exportações com a República Dominicana, visam derrotar o governo como um todo devido o aumento nas taxas aduaneiras promovido por Moise. As antigas lideranças, corresponsáveis pela crise, encontram-se acuadas. Na semana passada, o ex-presidente Michel Martelly foi o primeiro a fugir de helicóptero para a República Dominicana, que, sob as ordens do presidente Danilo Medina, ampliou o controle da fronteira temendo uma nova onda de imigração.

Ao mesmo tempo, o povo haitiano reinventa seus métodos de resistência. De acordo com Henry Boisrolin, do Comitê Democrático Haitiano, a situação após a insurreição é explosiva e programas de rádio veiculam diariamente mensagens conclamando a manutenção das barricadas, o fechamento do parlamento e a deposição do presidente pela ação popular, após o impacto das mobilizações de rua e da greve geral.

FMI mantém pressão pelo ajuste
Na última quinta-feira, Gerry Rice, diretor do Departamento de Comunicação do FMI, emitiu declaração afirmando que o pacote “proposto” pela banca internacional deve ser mantido na pauta do governo. Disfarçado de “ajuda humanitária”, as medidas ampliam a dependência externa da ilha. A dívida externa haitiana é estimada em U$ 890 milhões, sendo 41% relacionados com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, maior credo do país, e 21% com o Banco Mundial. O FMI propõe o fim dos subsídios aos produtos derivados do petróleo, a privatização de empresas estratégicas e a continuidade da política econômica desenvolvida por Moise.

Desde o governo Martelly a economia haitiana foi dolarizada. Hoje, 1 dólar equivale a 60 gourdes e a valorização da moeda estadunidense tem pressionado a elevação de preços dos produtos importados, impactando na inflação que varia entre 11% e 15%. Moise e o Tèt Kale congelaram o salário mínimo em 350 gourdes por dia, ou menos de U$ 6, ao passo que estudos demonstram que as necessidades básicas dos trabalhadores podem ser atendidas com cerca de 1.248 gourdes diários. Desemprego, miséria, violência e completa ausência de direitos sociais representam o plano do imperialismo para o Haiti, enquanto as remessas diárias para fora do país seguem na casa dos U$ 8 milhões.

Com o povo haitiano, em defesa da sua autodeterminação!
Para onde vai o Haiti? Essa é a grande questão da política caribenha nesse momento. Estamos falando de um país que possui em seu DNA a experiência da primeira revolução anticolonial vitoriosa em nosso continente. Por isso, jamais deixou de resistir à política de intervenção permanente do imperialismo. A insurreição popular abriu uma nova situação e, diante da insistência do FMI e da burguesia nacional em aplicar os planos de ajuste, é possível apostar em novas irrupções pelas ruas de Porto Príncipe e outras cidades da ilha no próximo período.

Após a demissão de Lafontant, a linha de Moise – orientada pelo FMI e o Fórum Econômico do Setor Privado – será a constituição de um novo governo de unidade nacional. Entretanto, para além da crise gerada pelo aumento dos combustíveis, a situação haitiana remete aos problemas históricos do desenvolvimento econômico e social, agravados recentemente pela intervenção militar que restringiu ainda mais os direitos democráticos e auxiliou na imposição do projeto econômico imperialista, além dos trágicos terremotos dos últimos oito anos que abalaram as péssimas condições estruturais.

A radicalidade dos protestos indica bem os alvos da insurreição haitiana: os prédios públicos que simbolizam o poder corrupto e antipopular, os hotéis construídos com dinheiro público que não servem à população, os carros da polícia violenta, a sequência de saques nos centros comerciais da elite haitiana. De forma consciente ou não, esse repertório de ação aponta a desorganização do sistema neocolonial no Haiti e a necessidade do protagonismo popular assumir a vanguarda na luta pela autodeterminação nacional e a reconstrução do país a partir de uma perspectiva democrática, igualitária, antirracista e de integração entre os povos latino-americanos.

 

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