Pular para o conteúdo

Bonaparte veste toga?

Por: Paulo César de Carvalho*, de São Paulo/SP
Reprodução

“Lembremo-nos mais uma vez do seguinte: se espetarmos, simetricamente, dois garfos numa rolha, esta pode ficar de pé, mesmo sobre uma cabeça de alfinete. É precisamente o esquema do bonapartismo. Naturalmente, um tal governo não deixa de ser, por isso, o caixeiro dos possuidores. Mas o caixeiro está sentado sobre as costas do patrão, machuca-lhe a nuca e não faz cerimônias para esfregar-lhes, se for necessário, a bota na cara”
(Leon Trotsky, “Bonapartismo e Fascismo”, Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, CLB, Lisboa, s.d, p.282).

Na guerra contra os retrocessos autoritários – que se intensificam desde o golpe parlamentar – a defesa de Lula representa, metonimicamente, a proteção das liberdades democráticas e garantias fundamentais do próprio Estado de Direito. Na “Introdução” à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx usa a “arma da crítica” para declarar “guerra à situação alemã”: nós lançamos mão dela para denunciar a grave crise institucional da situação brasileira. Recorrendo às palavras do pensador alemão, é fato que ela está ‘abaixo do nível da história’, ‘abaixo de toda crítica’; não obstante, continua a ser um objeto de crítica (…). Em luta contra ela, a crítica não é uma paixão da cabeça, mas a cabeça da paixão. Não é um bisturi, mas uma arma. Seu objeto é seu inimigo, que ela não quer refutar, mas destruir. Pois o espírito de tal situação já está refutado (…). Seu ‘pathos’ essencial é a indignação, seu trabalho é a denúncia” (Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Boitempo, São Paulo, 2013, p.153).

Enfim, considerando que estamos denunciando, indignados, mais um ato do “teatro do golpe” – em que a prisão arbitrária de Lula é o clímax da narrativa – e que Karl foi citado, é providencial recordar O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, obra em que investiga os sutis mecanismos do golpe que levou o sobrinho de Napoleão ao poder. O título faz referência à manobra que conduzira o tio ao poder: o “18 de Brumário”, marcado pelo autoritarismo e desrespeito às conquistas democráticas da Revolução Francesa, deu origem ao regime político que entraria para a história com o nome de “bonapartismo”. O trecho a seguir contextualiza o termo, localizando a gênese do conceito:

Nela [a Assembleia Nacional], os deputados e pares de Luís Filipe encontraram uma legião sagrada de legitimistas para os quais numerosas cédulas de votos dadas pela nação haviam se transformado em bilhetes de ingresso para o teatro político (…). Assim, este se apossou do poder de governo, das Forças Armadas e do corpo legislativo, em suma, de todo o poder do Estado, moralmente fortalecido pelas eleições gerais, que faziam com que o seu governo aparecesse como vontade do povo (…)
(Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Boitempo, São Paulo, 2011, p.58).

Sabemos que as analogias históricas, sedutoras, podem induzir a perigosas distorções: Michel Temer está muito longe de ser um Luís Filipe – que já era, diga-se de passagem, uma versão farsesca da tragédia napoleônica. O regime de governo do usurpador não é de natureza “bonapartista”: ainda que tenha chegado ao poder por meio de um golpe parlamentar legitimado por “deputados e pares”, o veredicto da corte legislativa não conseguiu dissimular que ele não representa a expressão da “vontade do povo” (o mesmo povo, aliás, que elegeu Dilma e, paradoxalmente, também aqueles que votaram pelo impeachment da presidenta).

A prova real que parece desautorizar a tese, na nossa situação concreta, é que, por um lado, os deputados e senadores gozam de baixíssima popularidade; e, por outro, o presidente tem menos de 5% de aprovação. Se o conceito tradicional implica um regime político que produz o efeito de autonomia relativa do Estado, nem o Legislativo, menos ainda o Executivo, têm a força necessária para se impor como instância suprema “mediadora” dos conflitos de interesses entre as classes (e de suas frações, já que as classes não são homogêneas).

No prefácio ao livro O longo bonapartismo brasileiro, de Felipe Demier (parte de sua tese de doutorado defendida na UFRJ, em 2012), o historiador Valério Arcary define esse regime nos seguintes termos:

“Apresentando-se como a representação da nação em uma hora de emergência, o regime bonapartista repousa na força do apelo à união de todas as classes, de todas as posições políticas em torno de um objetivo comum. O seu rosto foi, invariavelmente, o de um bonaparte, ou seja, de um homem que está acima das divisões políticas e foi predestinado para salvar a pátria”
(Felipe Demier, O longo bonapartismo brasileiro, Mauad X, Rio de Janeiro, 2013, p.16).

Hoje, ao que parece, o Judiciário se esforça por encarnar o poder capaz de produzir a ilusão de estar acima das classes, dos partidos, como um ente “imparcial”, arbitrando os conflitos. Lembremos que essa narrativa farsesca (que atingiu o ponto alto na prisão de Lula) teve na máscara de Moro um esboço de personificação do bonapartismo em versão togada: os que vestiram a camisa da CBF e celebraram o pato da FIESP alçaram o juizeco ao pedestal de “salvador da pátria”. Felipe Demier, no artigo O bonapartismo de toga: golpe, contrarreformas e o protagonismo-político do Poder Judiciário no Brasil atual, traduz bem a questão. Para concluir estas breves reflexões, deixemos a explicação com ele, um dos maiores especialistas no espinhoso tema:

Gozando de amplo apoio dos setores médios, em especial de seus estratos mais conservadores, a Operação Lava Jato demonstra servir aos interesses mais estratégicos da classe dominante, na medida em que vem, desde antes do golpe (do qual ela foi parte ativa), criando as condições políticas propícias para que as contrarreformas e o ajuste fiscal possam ser efetivados. Em meio a um cenário que combina a derrota do petismo, a fraqueza político-organizativa da classe trabalhadora e uma espécie de “crise orgânica” da burguesia brasileira, cujos representantes políticos tradicionais, os seus partidos e líderes, parecem não servir mais para executar, com legitimidade social, as tarefas contrarreformistas exigidas pelo capital, o Poder Judiciário, com suas baterias coercitivas cada vez mais voltadas para os setores revéis da classe trabalhadora e até mesmo para suas lideranças reformistas e colaboracionistas, parece se apresentar como uma alternativa política possível para a classe dominante brasileira. O ingurgitamento desse aparato jurídico tende a exacerbar a blindagem de nossa já blindada democracia e a acentuar suas tendências semibonapartistas, trazendo a possibilidade, a depender da luta de classes, de que a mesma possa vir a ser substituída por um novo regime, de cariz ditatorial. Assim, embora não seja, a julgar pela correlação de forças atual, o cenário mais provável, um bonapartismo de toga, com ou sem um Bonaparte, não pode ser descartado do horizonte próximo do país.

*Paulo César de Carvalho (Paulinho) é militante da RESISTÊNCIA-PSOL, na luta pelas liberdades democráticas.

Marcado como:
judiciário / lulalivre