Pular para o conteúdo
BRASIL

Da criança negra com fome no shopping ao ator Leno Sacramento: O racismo é cruel

Por: Henrique Oliveira, de Salvador/Bahia
Segurança tenta impedir que menino almoce no shopping. Reprodução vídeo

Segurança tenta impedir que menino almoce no shopping. Reprodução vídeo

Salvador, a cidade mais negra fora da África é também a mais racista

 Nessa semana a capital baiana foi destaque no noticiário nacional, primeiro pelo caso inacreditável em que o segurança do Shopping da Bahia, o antigo shopping Iguatemi, tentou impedir que um cliente pagasse um almoço para uma criança negra, chamada Matheus, de 12 anos idade, que trabalha na rua vendendo bala. O vídeo que circulou nas redes sociais com milhares de visualizações mostra o exato momento em que o segurança tenta de todas as formas evitar que o almoço seja comprado, inclusive chega a tentar colocar a criança para fora do shopping à força por meio de empurrões, mas não foi permitido pelo homem que queria pagar a refeição. A situação só foi resolvida quando o supervisor da segurança chegou ao local e garantiu que a criança pudesse comer.

O Ministério Público da Bahia abriu um inquérito civil para investigar a responsabilidade do Shopping da Bahia em uma possível prática de racismo institucional. A Ordem dos Advogados (BA) vai oficiar o shopping para que o mesmo esclareça de forma oficial o que aconteceu, o que vão fazer para reparar o ocorrido, como pretendem garantir o acesso de jovens negros da periferia e se terão uma política de inclusão de funcionários.

Matheus é de uma família pobre, moradora do bairro de Pernambués, o bairro mais negro de Salvador com 53 mil moradores e fica próximo ao shopping. A sua Mãe, com 57 anos, vende balas e salgadinhos nos ônibus da cidade para sustentar 8 pessoas, três filhos, dois netos e os pais que moram numa cidade do interior baiano.

Em uma nota enviada à imprensa, o Shopping da Bahia declarou que o segurança foi afastado do trabalho, de contato com o público, e está passando por um processo de reabilitação, voltando a afirmar que não há nenhuma orientação para uma abordagem que vá “além de coibir ações de comércio informal e de pessoas (crianças e adultos) que tentam abordar clientes com pedidos de dinheiro, alimentos ou produtos. A decisão do cliente é soberana e tem que ser respeitada, sem nenhuma ação violenta ou que gere constrangimento.”

No entanto, esse caso em que o segurança do Shopping da Bahia tentou impedir que um rapaz pagasse uma refeição a uma criança pobre e negra deve ser avaliado por duas perspectivas.

A primeira é que sabemos que todos os shoppings do Brasil têm recomendações de caráter racista e higienista, de modo que os shoppings devem receber pessoas negras em situações de trabalhadoras das lojas ou como consumidoras, contanto que elas estejam dentro de um padrão aceitável de comportamento. No ano passado, por exemplo, um pai acusou o Shopping Pátio Higienópolis de São Paulo de cometer racismo contra o seu filho negro, que foi ‘confundido’ com um mendigo, mesmo a criança usando a farda da Escola Sion que fica localizado no mesmo bairro nobre. A segurança do shopping chegou e perguntou ao artista plástico Enio Squeff se o menino o ‘estava incomodando’, justamente por ser uma criança negra.

Nós vimos também como os mesmos shoppings de São Paulo e de outras cidades trataram os ‘rolezinhos’ quando jovens negros e da periferia, privados de espaços públicos e de lazer em seus bairros, escolheram se divertir nos shoppings centers.

Os shoppings são espaços pensados para ser o templo do consumo e ostentação da classe média branca, qualquer corpo estranho a esse é altamente vigiado, pois o que não faltam são histórias de perseguições dos seguranças, acusações infundadas de roubo e desprezo dos vendedores das lojas com os consumidores negros, que são vistos como incapazes financeiramente de pagarem por determinados produtos.

Eu ouvi muitas pessoas dizerem que o antigo Iguatemi, agora Shopping da Bahia, durante os governos Lula – Dilma, em que houve aumento do poder de compra dos trabalhadores, estava se “tornando do povão”. E o que era se tornar do povão? Receber consumidores negros em grande escala. E por isso o recém criado Salvador Shopping se tornou reduto das pessoas brancas, era nítido como o Salvador Shopping ficou bem mais embranquecido.

A outra questão é a atitude do segurança, ele mesmo falou que estava cumprindo ordens, como nós sabemos que estava. O Shopping da Bahia em uma nota cínica e canalha jogou a responsabilidade para o seu funcionário, lógico, a corda só arrebenta do lado mais fraco. Ao mesmo tempo que para cumprir ordens é necessário que esse mesmo segurança concorde com elas, porque não é incomum que agentes públicos e privados quando querem, em certa medida, são negligentes com as normas e regras estabelecidas. O que o segurança fez foi reproduzir racismo e preconceito de classe, elementos formadores da sociedade brasileira. Ainda mais num período em que o desemprego está altíssimo, o segurança vive constrangido pela ameaça de não seguir as regras e ser colocado para fora, tendo obrigações de se sustentar, assim como possivelmente a sua família. Em momentos de crise, a submissão se torna uma ferramenta necessária para a sobrevivência dos trabalhadores e uma forma de controle para o grupo dominante.

csm_seg001_ed0e474422
Prints da confusão no shopping da Bahia

O segundo caso diz respeito ao ator negro Leno Sacramento, do Bando de Teatro do Olodum, que foi baleado na perna por policiais civis, após ser ‘confundido’ com homens que assaltaram na região do centro da cidade, que assim como Leno Sacramento, também estavam de bicicleta. A versão dos policiais é que ao receberem o chamado sobre homens assaltando de bicicleta, acharam que Leno era um dos suspeitos de participarem do crime e que Leno não obedeceu a ordem de parada. O policial civil que efetuou o disparo disse que atirou para o chão e o que afetou a perna do ator foram os estilhaços da bala.

Em depoimento prestado à própria Polícia Civil, Leno Sacramento contou que estava andando de bicicleta, indo para o teatro, quando ouviu pessoas o mandando parar, quando olhou para trás, muito antes de colocar os pés no chão, ouviu um disparo, quando viu, a perna já estava sangrando muito e o tiro não foi de raspão como foi dito no dia, mas a bala atravessou sua perna. O ator disse que “estava ferido e machucado, mas a dor que ele sentia é da bala que pegou nele na quarta-feira, mas que antes pegou em vários negros que não podem falar.”

Bastou apenas os policiais civis saberem que homens de bicicleta assaltaram no centro da cidade que o primeiro homem negro que estava de bicicleta foi baleado, sem nem ser revistado. Na mentalidade policial, qualquer crime cometido no ambiente público só tem pessoas negras como suspeitas e culpadas. E por mais que exista uma relação entre o lugar social do crime e as pessoas que o cometem, somente os corpos negros são vistos como aqueles que podem ser violados por tapas, chutes, socos e projéteis de arma de fogo. O recado dado pelo Racismo é que nós homens negros não podemos andar de bicicleta, pois até assim somos considerados suspeitos/criminosos.

A delegada chefe da Corregedoria da Polícia Civil, numa entrevista coletiva, disse que o tiro é o último recurso ensinado na academia de polícia. E quando perguntada se o caso configuraria racismo, a delegada respondeu que as investigações ainda estão no começo, mas que a priori isso não foi “detectado e os próprios policiais são negros”. Leno Sacramento participou do filme “O Pai ó”, da peça “Cabaré da Raça” e atualmente encena o monólogo “Encruzilhada”, que justamente aborda a violência racial no Brasil.

Porém, a manifestação do racismo é impessoal, não ocorre apenas quando um branco discrimina um negro pela sua cor. Por mais que os brancos sejam responsáveis diretos e indiretos pela existência do racismo em nossa sociedade, a Raça enquanto elemento social é criadora de uma concepção sobre as pessoas, sobre aquilo que elas podem ser ou são. E foi justamente baseado nessa concepção que um homem negro poderia ser o ladrão, que o policial nem revistou Leno, já chegou atirando na sua perna como se o mesmo fosse culpado e estava sendo punido por isso.

Se os policiais são negros, isso só mostra como o racismo é duplamente violento, pois retira das pessoas negras a autopercepção, elas não se reconhecem como tais, carregam consigo o auto-ódio, porque a representação positiva em nossa sociedade é a branca. As pessoas negras não se beneficiam em nada quando reproduzem racismo, já que elas não deixam de ser negras. Inclusive, numa sociedade como a nossa, de minoria branca, a reprodução social do racismo é necessária para garantir aos brancos todos os privilégios sociais, culturais, econômicos e políticos que eles têm. O papel do racismo é sempre garantir vantagens a um único grupo racial.

Leno entrevista
Entrevista na Rede Bahia

O que aconteceu com Leno Sacramento não é nenhum fato isolado como bem gostam de dizer os órgãos de assessoria das polícias civis e militares, quando essas ações acontecem. Nós sabemos muito bem que a prática da polícia brasileira é de atirar primeiro e perguntar depois, principalmente quando se trata de pessoas negras.

Os policiais militares que atiraram no pintor Nadinho, no dia 21 de Abril, na cidade de Candeias, Região Metropolitana de Salvador, acabaram de ser indiciados por homicídio doloso, ao balearem o artista plástico pelas costas, no seu ateliê, após atenderem uma chamada de roubo em que um suspeito estaria escondido numa casa.

A versão inicial dada pelos policiais militares é que o pintor Nadinho estava armado e atirou. Agora, depois do laudo do IML e da reconstituição feita, os mesmos policiais dizem que não podem afirmar com precisão que Nadinho estava armado, mas dizem que ele segurava algum objeto. No entanto, os PMs apresentaram uma arma calibre 38, com numeração raspada, além da perícia comprovar que a vítima não tinha pólvora nas mãos. E já existem relatos, indícios e provas suficientes que demonstram que o Auto de Resistência se tornou um instrumento policial para a “produção de uma realidade”, cujo objetivo é criminalizar a vítima para construir a legítima defesa e justificar mortes, através de uma narrativa que os policiais são ‘recebidos a tiro’ e só fazem reagir para se defenderem. Afinal, morto não fala e nem conta história, por isso, muitas vezes o que acaba prevalecendo é o discurso baseado na autoridade policial.

No começo do mês também veio a público uma filmagem feita por turistas sobre uma abordagem truculenta e selvagem de policiais militares realizada no bairro do Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, na qual um jovem negro é agredido e torturado, por estar portando, supostamente, um baseado de maconha. A filmagem de 11 minutos mostra 4 PMs tentando colocar o jovem dentro de uma viatura enquanto a população pede para que os policiais parem de agredi-lo. Não satisfeito, um policial militar se volta contra as pessoas que estavam gritando e parte para cima de uma mulher negra dando tapas no rosto e puxando pelos cabelos, mesmo as pessoas dizendo que ela estava grávida.

No fim de semana, entre a sexta0feira 08/06 e o domingo 10/06, Salvador e Região Metropolitana foram banhadas de sangue com 31 homicídios, a maioria deles ocorridos após o assassinato brutal de um Policial Militar num bairro periférico de Salvador na madrugada de sábado. Os homicídios em série aconteceram nos bairros pobres, com característica de atuação de Grupos de Extermínio, só no bairro de São Cristóvão 5 jovens foram assassinados por homens encapuzados em dois carros.

Nas regiões do Nordeste de Amaralina, Santa Cruz, Vale das Pedrinhas e Chapada do Rio Vermelho, em que o PM foi morto, mais de 5 pessoas já foram mortas após a intensificação da ação policial, que estão lá supostamente atrás dos responsáveis pelo assassinato. Além dessas mortes, taxistas que trabalham nas localidades também denunciaram abordagens violentas da PM que os acusavam de estarem dando fuga aos traficantes.

E não à toa as polícias baianas estão entre as que mais matam em serviço, ficando atrás apenas das polícias do Rio de Janeiro e São Paulo, com 456 mortes em 2016. O que ocorreu com Leno Sacramento é só um exemplo cristalizado pelas estatísticas divulgadas pelo Atlas da Violência de 2018, no qual, em 2016, o Brasil chegou a marca de 62 mil homicídios, sendo que 33.590 vítimas eram do sexo masculino, jovem, negro e tinham entre 15 e 29 anos de idade.

Segundo o Atlas, no período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Esses números também são os mesmos para as mulheres, a taxa de mulheres negras assassinadas teve um aumento de 71%, quando comparado com as mulheres não negras.

E seja o segurança do shopping querendo impedir uma criança negra de se alimentar ou um policial civil que atira num homem negro tido como criminoso pela sua condição natural de homem negro, o que está em curso no Brasil é um processo histórico que vem sendo amplamente denunciado pela militância antirracista, um Genocídio, uma política de ‘higiene racial’, que faria Hitler ficar orgulhoso dos nossos governantes. Tudo isso em 2018, no ano em que se completam 130 anos da Abolição da escravidão. Quem realmente são as pessoas livres no Brasil?

 

*Henrique Oliveira é mestrando em História Social pela UFBA e colaborador da Revista Rever

Save

Marcado como:
bahia / Racismo