Publicamos a tradução da segunda parte do artigo de Eric Toussaint
No seu último livro Adults in the Room, Yanis Varoufakis nos dá a sua versão das razões que levaram à capitulação vergonhosa do governo de Tsipras em julho de 2015. Analisa essencialmente o período de 2009-2015, embora também remeta para épocas mais recuadas.
No primeiro artigo sobre este livro, analisei de forma crítica as propostas apresentadas por Varoufakis antes dele participar no governo de Tsipras em janeiro de 2015, mostrando que levavam à derrota. Este segundo artigo incide nomeadamente sobre os laços mantidos por Yanis Varoufakis com a classe política dirigente grega (tanto o PASOK, historicamente ligado à social-democracia, como o partido conservador Nova Democracia) ao longo de vários anos.
Yanis Varoufakis destaca por diversas vezes o seu vasto leque de relações nos meios políticos gregos. Insiste na sua velha amizade com Yannis Stournaras (atual presidente do banco central grego, aliado de Draghi e dos banqueiros privados gregos e estrangeiros), as suas boas relações em 2009 com George Papandreou (que lançou uma política conducente ao primeiro Memorando), as suas relações com Antonis Samaras (que dirigiu o governo grego após o segundo Memorando) e consagra uma grande parte dos quatro primeiros capítulos do livro ao relato da construção de relações estreitas de colaboração e a certos momentos de cumplicidade com três dirigentes do Syriza. São eles Alexis Tsipras (que levou o povo grego ao terceiro Memorando), Nikos Pappas (alter ego de Tsipras e que veio a ser ministro de Estado no Governo de Tsipras I), a se juntaria, de caminho, Yanis Dragasakis (antes de este se tornar vice-primeiro-ministro dos Governos Tsipras I e II). Nesta segunda parte abordarei o relato do início da crise grega, assim como as relações de Varoufakis com a classe política tradicional grega.
Varoufakis denuncia os banqueiros gregos, mas a solução que ele propôs a Alexis Tsipras a partir de junho de 2012 consistia em transferir a propriedade dos bancos gregos para a União Europeia.
Varoufakis relata de maneira muito discutível o encadeamento de acontecimentos que levou à imposição do primeiro Memorando (em Maio de 2010). Procurando sempre defender-se, sustenta no entanto a narração oficial, segundo a qual a causa da crise grega reside na incapacidade do Estado grego para fazer face à dívida pública. Embora denuncie o estado lamentável a que os bancos gregos chegaram [1], declara que o Estado grego, incapaz de fazer face à situação, devia ter declarado falência. Descarta a possibilidade «oferecida» ao Estado de se recusar a assumir as perdas dos bancos. O seu raciocínio sobre a falência do Estado grego assenta no argumento de que, segundo ele, o passivo (= as dívidas) dos bancos privados é, queiramos ou não, um encargo do Estado. O passivo dos bancos privados era de tal forma elevado que o Estado grego era incapaz de lhe fazer face. No entanto, em diversos momentos históricos, outros Estados recusaram assumir as perdas dos bancos privados. Assim fez a Islândia a partir de 2008, quando o seu sector bancário privado se afundou, e saiu-se muito bem. Soube fazer frente, com êxito, às ameaças da Grã-Bretanha e da Holanda. [2]
Não basta, para pôr fim ao debate, afirmar que a Grécia não é a Islândia, ou que a Grécia faz parte da zona euro e nela deve permanecer. Varoufakis adopta uma atitude na realidade conservadora do ponto de vista económico e social. Denuncia os banqueiros gregos mas a solução que propôs a Alexis Tsipras a partir de Junho de 2012 consistia em transferir a propriedade dos bancos gregos para a União Europeia. [3]
Por outro lado, é evidente que seria necessário pôr em causa o pagamento da dívida pública, que tinha aumentado imenso, principalmente na década de 1990, ao serviço de objectivos ilegítimos (despesas militares excessivas, financiamento de benesses fiscais às grandes empresas e aos mais ricos, financiamento, por via da dívida, da redução das contribuições sociais do patronato, etc.) ou do financiamento dessa dívida em condições ilegítimas (taxas de juro abusivas cobradas pelos bancos), tudo isto acompanhado de corrupção e outros factores de ilegalidade (ver capítulo 1 do «Rapport préliminaire de la Commission pour la vérité sur la dette publique grecque»).
Varoufakis e o governo de George Papandreou (PASOK) 2009-2011
«No Outono de 2009, um novo governo grego foi eleito, com a seguinte promessa: aumentar a despesa para ajudar o montante do rendimento nacional a reconstruir-se. Só que o novo primeiro-ministro e o seu ministro das Finanças, provenientes do partido social-democrata, o PASOK, não compreenderam. A falência do Estado já estava em curso, antes mesmo de eles pregarem o sermão.» [4]
É falso afirmar que o Estado grego estava falido. Este discurso parafraseia os argumentos enganadores apresentados pela Troika e pelos meios de comunicação dominantes. O que Varoufakis não diz, é que Papandreou dramatizou a situação da dívida pública e do défice público, em vez de obrigar os verdadeiros responsáveis – tanto os estrangeiros como os nacionais, ou seja, os accionistas privados, os administradores dos bancos, os bancos estrangeiros e outras sociedades financeiras que tinham contribuído para gerar a bolha especulativa – a pagarem os custos da crise bancária. O Governo de Papandreou mandou falsificar as estatísticas da dívida grega, não nos anos que precederam a crise, para a diminuir (como pretende a narrativa dominante), mas em 2009, para a ampliar. Isto foi claramente demonstrado pela Comissão para a Verdade sobre a Dívida Pública Grega no seu relatório de Junho de 2015 (ver cap. II, p. 17, do « Rapport préliminaire de la Commission pour la vérité sur la dette publique grecque »). Varoufakis não denuncia a falsificação, dando por justas as afirmações de Papandreou e do seu ministro das Finanças sobre os estado dramático das finanças públicas.
Após as eleições legislativas de 04 de outubro de 2009, o novo governo de George Papandreou procedeu, de forma totalmente ilegal, a uma revisão das estatísticas, a fim de insuflar o défice e o montante da dívida durante o período anterior ao Memorando de 2010. O nível do défice em 2009 sofreu várias revisões em alta, passando de 11,9 % do PIB numa primeira estimativa, para 15,8% na última. Andreas Georgiu, director em 2009-2010 do departamento grego de estatísticas ELSTAT (quando ainda ocupava um cargo no FMI) foi condenado em Agosto de 2017. Sob o título «Na Grécia, condenação do antigo chefe das estatísticas, que maquilhou os números do défice público», eis o que diz o Le Monde na sua edição de 01 de agosto de 2017:
«Andreas Georgiu, antigo chefe do gabinete de estatística grego, Elstat, que esteve no âmago da saga dos números falsos do défice público no início da crise da dívida, foi condenado, a 1 de Agosto, a dois anos de prisão. O tribunal de Atenas deu-o como culpado de “faltar ao dever”, segundo fonte judicial. Este antigo membro do FMI foi processado por se ter conluiado com o Eurostat (gabinete europeu de estatísticas, dependente da Comissão Europeia) a fim de exagerar os números do défice e da dívida pública gregos para o ano de 2009. Presumível propósito: facilitar a sujeição do país a uma tutela, donde resultou, em 2010 o primeiro plano de ajuda internacional à Grécia – que já vai no terceiro, em Agosto-2015.» [5]
Contrariamente ao que Varoufakis afirma, os bancos privados não cortaram o crédito ao Estado grego em 2009; [6] o que foi interrompido, de facto, foi o crédito aos sectores privados gregos. No Outono de 2009 o Estado grego conseguiu angariar fundos sem dificuldade. A interrupção do crédito prestado pelos mercados financeiros ao Estado grego apenas ocorreu em 2010, depois de Papandreou ter dramatizado a situação e no momento do primeiro Memorando.
Varoufakis explica em diversos passos do capítulo 2 que mantinha, apesar das divergências evidentes, boas relações com Papandreou:
«Em Janeiro de 2010, durante uma entrevista na rádio, preveni o primeiro-ministro, que eu conhecia pessoalmente e com o qual tinha uma relação amigável, dizendo-lhe: “Faças o que fizeres, não vás procurar empréstimos ao Estado junto dos parceiros europeus para tentares, em vão, evitar a bancarrota”.» [7]
Neste último ponto tem razão Varoufakis: não era preciso pedir crédito à Troika. Em contrapartida, erra quando afirma que o Estado grego devia ter declarado falência. A alternativa, oposta à política seguida por Papandréou e diversa da avançada por Varoufakis (= declaração de falência do Estado) era não só possível mas também necessária. Após a vitória eleitoral de 2009, obtida graças a uma campanha que denunciava as políticas neoliberais adoptadas pela Nova Democracia, o governo de Papandréou – se quisesse respeitar a suas próprias promessas eleitorais – podia e devia ter socializado o sector bancário, organizando a falência ordenada dos bancos e protegendo os depositantes. Vários exemplos históricos atestam que essa falência era inteiramente compatível com uma retoma rápida de actividades financeiras ao serviço da população. Teria sido necessário procurar inspiração no que estava a ser feito na Islândia desde 2008 [8] e no que tinha sido realizado na Suécia e na Noruega nos anos 1990. [9] Papandréou preferiu seguir o exemplo escandaloso e catastrófico do Governo irlandês, que salvou os banqueiros em 2008 e em Novembro de 2010 aceitou um plano de ajuda europeia que teve consequências dramáticas para o povo irlandês. Era preciso ir mais longe que a Islândia e a Suécia, optando por uma socialização completa e definitiva do sector financeiro. Era preciso imputar aos bancos estrangeiros e aos accionistas privados gregos os custos provocados pela resolução da crise bancária; e, além disso, levar a tribunal os responsáveis pelo desastre bancário. Esta iniciativa teria permitido à Grécia evitar a sucessão de memorandos que sujeitaram o povo grego a uma crise humanitária terrível e humilhante, sem que apesar disso o sistema bancário grego tenha sido verdadeiramente sanado.
Varoufakis e Antonis Samaras
Varoufakis refere por diversas vezes os seus contactos com personalidades destacadas da classe política grega, tanto do PASOK como do principal partido conservador, a Nova Democracia.
No que diz respeito aos elogios prodigalizados por Samaras, outras pessoas no lugar de Varoufakis ter-se-iam interrogado: «Não será inquietante receber elogios de um dos dirigentes chave do partido conservador?» Não foi o caso de Varoufakis.
«Uma tarde [de 2011, N. do E.], ao regressar a casa após uma emissão da ERT, a rádio e televisão pública gregas, o telefone fixo tocou. Ao atender reconheci a voz de Antonis Samaras, dirigente da Nova Democracia, o partido conservador, que, nessa época, representava a oposição oficial. […] “Não nos conhecemos, sr. Varoufakis”, disse-me ele, “mas acabo de vê-lo na televisão e senti necessidade de falar consigo. Acho que nunca ouvi propostas tão profundas e tocantes num palco de televisão. Quero agradecer-lhe as suas tomadas de posição”. Samaras não foi o único membro do establishment grego que me contactou. A minha cruzada levou-me a ter numerosas discussões em privado com ministros socialistas, deputados conservadores da oposição, dirigentes dos sindicatos e outros, que sentiam que eu fazia a diferença. A partir do momento em que lhes dei parte da minha análise, eles estiveram de acordo, todos sem excepção. (…) Os conservadores, pelo menos até Novembro-2011, foram ainda mais audaciosos: como o seu dirigente, Antonis Samaras, tinha adoptado um ponto de vista anti-austeridade e anti-recapitalização, estavam à vontade para me seguirem.» [10]
A amizade entre Stournaras e Varoufakis
Varoufakis consagra pelo menos 4 páginas à sua relação de amizade com Yannis Stournaras. [11] Entre finais dos anos 1990 e a época dos memorandos, Yannis Stournaras passou-se do PASOK para a Nova Democracia. Varoufakis explica:
«Foi ele que convenceu Bruxelas e Berlim a integrar a Grécia na zona euro. Depois de o país ter sido admitido de pleno direito, em 2000, o primeiro-ministro, membro do PASOK, agradeceu-lhe oferecendo-lhe o cargo de director-geral e presidente do Banco Comercial da Grécia. [12] Foi nessa época que nos conhecemos. Apesar de lhe ser escasso o tempo, Stournaras mostrou-se sempre disponível para ensinar com prazer e devoção. Os nossos pontos de vista sobre economia e política divergiam, mas o seu empenho na universidade e as nossa afinidades naturais deram lugar a uma amizade profunda.»
Ainda que à época Varoufakis não ocupasse qualquer posição oficial, mantinha relações com dirigentes chave e algumas das suas ideias não eram rejeitadas pelos dirigentes conservadores, longe disso.
Varoufakis conta que passaram juntos, no apartamento de Stournaras, a noite eleitoral de 4 de Outubro de 2009, que deu a vitória ao PASOK. Nessa época, Stournaras era um dos altos conselheiros dos «socialistas» e tinha abraçado a orientação pró-memorando de Papandreou. Varoufakis prossegue:
«Em 2010, ano crucial para a Grécia, Stournaras fez uma opção que surpreendeu muita gente, tornando-se presidente de um think-tank de economistas criado de raiz pela Confederação Nacional das Indústrias da Grécia, a organização patronal mais poderosa e estável do país, tradicionalmente ligada à Nova Democracia.»
Isto não afectou a amizade entre ambos. Um mês antes das eleições de Maio de 2012, Varoufakis, de passagem por Atenas, telefonou a Stournaras:
«encontrei-me com ele no dia seguinte no café dum hotel situado perto da Acrópole. Abraçámo-nos […]. Depois passámos às coisas sérias e eu fiz-lhe um resumo das conversas que tive em Berlim com os representantes do BCE e do Governo alemão, com os jornalistas financeiros e outros. Mencionei também uma conversa que tive com George Soros. Este mostrou-se de acordo com a minha análise sobre a situação da Grécia e com o essencial das minhas propostas em matéria de política económica para a Europa em geral.»
Varoufakis conta que Stournaras e ele não se puseram de acordo sobre a viabilidade do memorando, mas que se despediram com a promessa de conservarem intacta a amizade. As coisas azedaram quando Stournaras, meses mais tarde, acusou Varoufakis de especular com Soros sobre os títulos da dívida grega. Foi nesse momento que a relação entre ambos se interrompeu. Entretanto, Stournaras tinha-se tornado ministro da Competitividade (Maio-Junho-2012). Após as eleições de Junho-2012, Stournaras tornou-se ministro das Finanças do Governo de Antonis Samaras. Depois, a partir de Junho-2014, Samaras colocou-o à cabeça do banco central grego, onde permanece ainda hoje.
Dei-me ao trabalho de resumir a passagem do livro de Varoufakis, porque ela revela o à-vontade com que ele se dava nos meios da classe política grega. Apesar de nessa época não ocupar nenhuma função oficial, mantinha relações com dirigentes chave e algumas das suas ideias não eram rejeitadas pelos dirigentes conservadores, longe disso. Manifestamente, esse facto não o incomodava, como prova o facto de o alardear no seu livro.
Tradução: Rui Viana Pereira
Notas
[1] Por meio lado analisei a crise dos bancos gregos em « Grèce : Les banques sont à l’origine de la crise ». Ver também Patrick Saurin, « La “Crise grecque” une crise provoquée par les banques ».
[2] «O tribunal da EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio) rejeita queixas do «Icesave» contra a Islândia e os seus habitantes», publicado em 29-01-2013.
[3] Y. Varoufakis, Adults in the Room, Bodley Head, London, 2017, cap. 3, p. 65. Voltarei a este tema num próximo artigo.
[4] Y. Varoufakis, Adults in the Room, Bodley Head, London, 2017, cap. 2, p. 31.
[5] Consultar artigo completo no Le Monde. Note-se que este tipo de artigo é muito raro no Le Monde. A imprensa conservadora grega (nomeadamente o diário Kathimerini) sublinha o descontentamento da Comissão Europeia. A porta-voz da Comissão, Annika Breidthardt, declarou em 1-Agosto-2017 que a decisão do tribunal não é conforme às decisões precedentes da justiça e reitera que «a Comissão tem plena confiança na exactidão e fiabilidade dos dados do ELSTAT durante o período 2010-2015 e posteriormente».
[6] Publicarei um novo artigo sobre esta questão antes do final de 2017. demonstrarei que vários gráficos publicados pelos organismos oficiais, nomeadamente do FMI, são falsos.
[7] Y. Varoufakis, Adults in the Room, Bodley Head, London, 2017, cap. 2, p. 31. Na página seguinte Varoufakis escreve: «Convicto de que a falência era inevitável, por mais água que deitemos na fervura, continuei a bater no prego. Por outro lado, o facto de eu ter redigido discursos para o primeiro-ministro Papandréou chamou a atenção da BBC e doutros órgãos de comunicação estrangeiros.»
[8] Renaud Vivien, Eva Joly, « Na Islândia, os responsáveis pelo naufrágio bancário não puderam comprar a jsutiça », 20-Fevereiro-2016 – ler em francês ou inglês ou espanhol.
[9] Mayes, D. (2009). Banking crisis resolution policy – different country experiences. Central Bank of Norway.
[10] Y. Varoufakis, Adults in the Room, Bodley Head, London, 2017, cap. 2, p. 38-39.
[11] Y. Varoufakis, Adults in the Room, Bodley Head, London, 2017, cap. 2, p. 68 a 72.
[12] Este banco viria a mudar de nome; chama-se agora Emporiki e foi comprado pelo banco francês Crédit Agricole.
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