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EDITORIAL

As relações religiosas como arma ideológica de dominação

Gleide Davis, colunista do Esquerda Online
Fio de contas

Fio de contas

Nós, pessoas negras e adeptos de religiões afro, vivenciamos todos os dias, sutilmente e brutalmente, os impactos da intolerância religiosa na nossa carne e na nossa mente. Entendendo que esse assunto é tão urgente como qualquer outra demanda política, porque se trata da nossa sobrevivência na sociedade como sujeitos dotados do direito de ir, vir e existir, falar sobre o ódio às religiões afro no Brasil é fazer política em prol de mais da metade da população do país.

A intolerância religiosa é qualquer negação, seja moral, política ou intelectual dos aspectos de uma religião e da cultura que esta carrega consigo.

A negação da religião cristã (entende-se como cristã, qualquer religião que tenha Jesus Cristo na centralização de sua cultuação) no Brasil é praticamente inexistente. Por se tratar de uma religião que se insere numa cultura dominante trazida pelos povos europeus no período que antecede e durante a escravidão, o cristianismo foi muito utilizado para modificar as relações culturais entre os indígenas e posteriormente entre os escravizados. Sendo disseminada como uma religião superior, cujo Deus tinha um propósito de “limpar” os pecados e trazer a verdadeira salvação para os povos considerados “sujos” e “primitivos” (indígenas e negros). Esta religião causou um impacto cultural negativo para as culturas indígena e africana, tem em vista que o processo de embranquecimento cultural, causou uma enorme dificuldade para a realização própria de seus cultos, sem que esses, sejam carregados de uma cultura embranquecida e colonizadora.

A negação da cultura afro-brasileira é originada por esses princípios históricos aqui mencionados. A mistura religiosa (sincretismo) imposta brutalmente pelos europeus causou ao candomblé e a umbanda um lado negativo que lhes foi delegado pela cultura cristã no Brasil. A imposição das entidades (exus e pombagiras) como algo sombrio e demoníaco foi uma das caracterizações que tornaram as religiões afro-brasileiras perseguidas até os dias atuais. Causando na população negra, um afastamento cultural e identidário, e ainda pior, uma enorme perseguição social e política em todos os espaços ao qual este grupo se propõe a (tenta) ocupar.

O fato é que, historicamente o racismo tem o seu papel na opressão contra as religiões afro. Não à toa, temos um enorme histórico de terreiros apedrejados e queimados em diversos estados do Brasil, assim como diversos sacerdotisas e sacerdotes que foram brutalmente assassinados em nome da religião. Não é difícil ouvir ou ler relatos de pessoas que perdem vagas de emprego, relacionamentos amorosos, que são expulsas do convívio familiar, acadêmico e social, que sofreram hostilização em um determinado espaço por estarem utilizando algum adereço, fio de contas ou contraeguns, que são elementos utilizados por pessoas que cultuam a religião afro. A livre acessibilidade e até mesmo a ascensão social dos indivíduos segue prejudicada, primeiramente pela sua condição racial, em segundo lugar por serem negros que se enegrecem culturalmente pela sua religião.

A arma ideológica do racismo é o genocídio. E o genocídio engloba o apagamento cultural causado pela intolerância religiosa do candomblé e umbanda no Brasil. Estes estão intimamente ligados quando o indivíduo é negro. Porque a acessibilidade de indivíduos brancos dentro e/ou fora das religiões afro, permanece intacta. É preciso refletir em como nossos corpos seguem mortos diariamente, não apenas fisicamente, mas ideologicamente, religiosamente e psicologicamente falando. Debater politica racial, é reconhecer que o primeiro passo para a nossa emancipação enquanto indivíduos e cidadãos sociais, é a nossa reconstrução humana, e para isso, a nossa identidade cultural precisa ser edificada e protegida, primeiramente por leis efetivas e em segundo lugar, pelo avanço da consciência de todas as pessoas que queiram ou não se inserir diretamente na cultura afro-brasileira.