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MUNDO

Edward Snowden: ‘O povo segue sem poder, mas agora está consciente’

Editoria Internacional

Cinco anos depois do histórico vazamento de documentos secretos da inteligência norte-americana, Edward Snowden diz ao jornal The Guardian que não se arrepende. Snowden faz um balanço do impacto das revelações nesta entrevista exclusiva a Ewen MacAskill e Alex Hern para o jornal britânico, trazidas ao público brasileiro na tradução de Pedro Lhullier, para o Esquerda Online.

Entrevista exclusiva de Ewen MacAskill e Alex Hern.

Cinco anos após fazer o maior vazamento de documentos secretos da história, Edward Snowden diz não ter arrependimentos. Ele é procurado pelos EUA. Está exilado na Rússia. Mas está satisfeito com a maneira como as suas revelações de uma operação de espionagem em massa abalaram governos, agências de inteligência e grandes empresas ligadas à internet.

Em uma entrevista por telefone para marcar o aniversário do dia que o jornal britânico The Guardian publicou a reportagem com suas revelações, ele relembrou o dia em que seu mundo – e o de muitos outros ao redor do planeta – mudou para sempre. Ele foi dormir em seu quarto de hotel em Hong Kong e, quando acordou, as notícias de que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos andava coletando os dados dos celulares de milhões de americanos já estavam no ar há várias horas.

Snowden sabia nesse momento que sua vida antiga tinha terminado. “Foi assustador, mas libertador.” ele disse. “Houve um sentimento de finalidade. Não havia voltar atrás.”

O que aconteceu nos cinco anos desde então? Ele é um dos fugitivos mais famosos do mundo, o assunto de um documentário vencedor do Oscar, um filme de Hollywood, e vários livros. Os governos dos EUA e do Reino Unido, com base em suas revelações, sofreram processos jurídicos quanto às suas leis de vigilância. Novas leis foram passadas em ambos os países. As empresas da internet, respondendo a uma agitação pública sobre privacidade, tornaram a criptografia de dados algo comum.

Snowden, fazendo um balanço das mudanças, disse que alguns ativistas da privacidade tinham expressado decepção sobre como as coisas andaram, mas que ele não se sentia assim. “As pessoas dizem que nada mudou: que ainda há espionagem e vigilância em massa. Não é assim que você mede a mudança. Compare antes de 2013 e o que aconteceu desde então. Tudo mudou.”

A mudança mais importante, ele disse, foi a consciência pública. “O governo e o setor corporativo exploravam nossa ignorância. Mas agora nós sabemos. O povo está consciente agora. O povo ainda não tem poder de impedir, mas estamos tentando. As revelações tornaram a luta mais justa.”

Ele disse que não tem arrependimentos. “Se eu quisesse ficar seguro, eu não teria saído do Havaí.” (Onde ele estava trabalhando para a NSA antes de ir para Hong Kong.)

Sua própria vida é incerta, talvez agora mais do que nunca, ele diz. Seu asilo na Rússia depende dos caprichos do governo Putin, e as agências de inteligência estadunidenses e britânicas não o perdoaram. Para eles, o problema segue tão cru como sempre: um ato de traição que causou danos em uma escala que o público não tem ciência.

Isso foi refletido em um raro pronunciamento de Jeremy Fleming, diretor da agência de vigilância britânica GCHQ, que, junto com a National Security Agency dos Estados Unidos, foi o principal objeto do vazamento. Em resposta a uma pergunta do The Guardian sobre o aniversário, Fleming disse que a missão do GCHQ era manter o Reino Unido seguro. “O que Edward Snowden fez cinco anos atrás foi ilegal e prejudicou nossa habilidade de fazer isso, causando danos reais e desnecessários à segurança do Reino Unido e seus aliados. Ele deveria ser responsabilizado por isso.”

O incômodo nas agências de inteligência estadunidenses e britânicas não é só sobre o que foi publicado – menos de 1% dos documentos – mas sobre o material não publicado também. Relataram que foram forçadas a trabalhar com o pressuposto de que tudo o que Snowden já tivera acesso tinha sido exposto e precisava ser jogado fora.

Houve um ponto positivo para as agências. Tendo descartado tanto, foram forçadas a desenvolver melhores capacidades mais rápido que planejado. Outra mudança veio na área da transparência. Antes de Snowden, as solicitações da mídia para a GCHQ geralmente não recebiam resposta, enquanto agora há mais boa vontade para o diálogo. O fato do pronunciamento de Fleming reflete este progresso.

No pronunciamento, ele expressa compromisso com a abertura, mas explicitamente não dá crédito a Snowden, dizendo que a mudança começou antes de 2013. “É importante que continuemos a ser o tão abertos quanto for possível, e estou comprometido a essa jornada para maior transparência que começamos há mais de uma década.”

Outros membros da inteligência, especialmente nos Estados Unidos, ressentidamente dão crédito a Snowden por iniciar um debate muito necessário sobre o limite entre privacidade e vigilância. O ex-diretor adjunto da NSA Richard Ledgett, ao se aposentar no ano passado, declarou que o governo deveria ter anunciado ao público que estava coletando em massa dados de celulares.

Sir David Omand, ex-diretor da GCHQ, compartilhou da visão de Fleming sobre os danos, mas admitiu que Snowden tinha contribuído para a introdução de novas leis. “Uma estrutura legal mais sensata e transparente agora existe para o trabalho da inteligência. Teria acontecido de qualquer forma, é claro, mas as ações dele certamente aceleraram o processo.”

O Congresso dos EUA passou o “Freedom Act” em 2015, limitando a coleta em massa dos dados de celulares. O parlamento britânico passou o contestado “Investigatory Powers Act” um ano depois.

Ross Anderson, acadêmico especializado em cibersegurança e privacidade, vê as revelações de Snowden como um momento fundamental. Professor de engenharia de segurança no laboratório de informática da Universidade de Cambridge, ele disse que “as revelações de Snowden são um daqueles momentos de lampejo que mudam a forma que as pessoas veem as coisas. Talvez não tenham mudado muito aqui na Grã-Bretanha por causa da nossa cultura de adorar ‘007’ e tudo o que ele faz. Mas ao redor do mundo, conseguiu mostrar a todos que a vigilância realmente é um problema.”

Os parlamentares e boa parte da mídia britânica não se envolveram com a mesma intensidade que seus equivalentes no resto da Europa, nos EUA, na América Latina, na Ásia e na Austrália. Entre as exceções estava o parlamentar liberal-democrata Julian Huppert, que falou sobre o problema até sair do cargo na eleição de 2015. “As revelações de Snowden foram um grande choque, mas levaram a muito maior transparência de algumas das agências sobre o tipo de coisas que estavam fazendo.” ele declarou.

Uma das informações vazadas que teve maior impacto foi sobre a escala da colaboração entre as agências de inteligência e as empresas da internet. Em 2013, as empresas estadunidenses estavam levando vantagem sobre a União Europeia em negociações sobre proteção de dados. O vazamento de Snowden caiu como uma bomba no meio das negociações, e a lei de proteção de dados que entrou em vigor no mês passado é uma consequência.

Um dos efeitos mais visíveis das revelações de Snowden foi a pequena notificação amarela que começou a aparecer em conversas do aplicativo Whatsapp em abril de 2016: “As mensagens que você enviar para esta conversa e chamadas agora são protegidas com criptografia de ponta-a-ponta.”.

Antes de Snowden, esse tipo de criptografia era para os perseguidos ou paranóicos. “Se eu lembro bem de 2013,” diz Jillian York, diretora do setorial de liberdade de expressão internacional do grupo de direitos digitais Electronic Frontier Foundation, “eu acho que tinha o precursor do Signal (aplicativo de mensagens criptografadas) no meu celular, o TextSecure. Eu tinha PGP (ferramenta de criptografia de email), mas ninguém usava.” A única grande exceção era o iMessage, da Apple, que usa criptografia de ponta-a-ponta desde que foi lançado em 2011.

Os funcionários de grandes empresas de tecnologia, enfurecidos com as informações vazadas, começaram a revidar. Alguns, como os do Whatsapp, que foi comprado pelo Facebook um ano após a história ser publicada, implementaram sua própria criptografia. Outros, como Alex Stamos, do Yahoo, preferiram se demitir a ser coniventes com mais espionagem. (Stamos agora trabalha como chefe de segurança no Facebook.)

“Sem Snowden,” disse Jillian York. “não acho que o Signal teria conseguido se financiar. Não acho que o Facebook teria contratado o Alex Stamos, pois ele estaria no Yahoo. Essas coisas pequenas levaram a efeitos maiores. Não acho que todas essas empresas tenham simplesmente decidido ‘nós ligamos para a privacidade’. Acho que foi a pressão.”

Outros eventos no mundo da tecnologia mostram que a influência de Snowden foi, de várias formas, limitada. O sucesso dos “smart speakers”, exemplificados pelo Amazon Echo, deixou muitos ativistas da privacidade perplexos. Por que, apenas poucos anos após um escândalo global envolvendo vigilância governamental, alguém instalaria um microfone sempre ligado em sua própria casa?

“O novo dilema de privacidade que se dá ao instalar um aparelho que pode literalmente escutar tudo o que você diz representa um fenômeno assustador na era das coisas conectadas à internet.” escreveu Adam Clark Estes, do Gizmodo, ano passado..

Próximo ao final da entrevista, Snowden relembrou um de seus primeiros codinomes, Cincinnatus, nome de um cônsul romano apontado ditador pelo Senado que, após cumprir seu papel, renunciou ao cargo e voltou à sua fazenda. Snowden disse que ele também sentia que, cumprido o seu papel, tinha voltado a uma vida mais quieta, usando seu tempo para criar ferramentas que ajudem jornalistas a proteger suas fontes. “Acho que nunca me senti tão realizado.” ele disse.

Mas ele não pretende usar o aniversário para comemorar, disse. Ainda há muito a ser feito. “Esse é só o início do revide.” disse Snowden. “O governo e as empresas estão nesse jogo há muito tempo e nós mal começamos.”.

* Originalmente publicado no jornal The Guardian.

Tradução de Pedro Lhullier.

 

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