Oswald, 1928

Éder Silveira*

Maio de 1928. É publicada, como um fascículo de 8 páginas, a Revista de Antropofagia. Como muitas das revistas modernistas, tais como Klaxon, Estética, Terra Roxa e outras terras, ela foi uma publicação relativamente efêmera. Circulou, em sua “primeira dentição”, entre maio de 1928 e fevereiro de 1929, contando com 10 números. Sua “segunda dentição” se estendeu de março a agosto de 1929, sendo publicados 15 números. Apesar de sua relativa efemeridade, a Antropofagia teve efeitos definidores de uma série de caminhos do chamado modernismo brasileiro, como procurarei explorar nas linhas que seguem.

O principal idealizador da nova publicação, que surgia em São Paulo naquele maio de 1928, era Oswald de Andrade. O “homem sem profissão”, como gostava de se apresentar, não era exatamente um estreante quando da publicação da Revista de Antropofagia. Já na década de 1910, Oswald era um nome conhecido na cena artística e literária paulista. Diretor de um jornal satírico bastante conhecido à época, O Pirralho, autor de críticas teatrais, peças de teatro, artigos jornalísticos e livros de poesia, o jovem bem-nascido, que desde cedo circulava nas rodas boêmias da Belle Époque paulistana, já era uma figura carimbada desta acanhada boemia literária.

Foi, no entanto, com a Semana de Arte Moderna de 1922 que Oswald passou a assumir, de forma mais marcante, uma posição de “chefe de escola”. Além de ser um dos idealizadores do evento que levou jovens artistas, mais ou menos sintonizados com aquilo que ocorria no mundo das artes na Europa do entreguerras, ele passou a manter uma posição de virulenta militância em defesa de uma estética moderna.

Esta tendência, facilmente identificável em seus escritos, irá se cristalizar em um primeiro momento na publicação do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 1924. Neste manifesto, cuja primeira publicação se deu no Correio da Manhã, em 18 de março de 1924, a mensagem é direta e deixa poucas margens para dúvida: cumpria criar uma língua poética nacional, que soubesse valorizar a “contribuição milionária de todos os erros”. Era chegada a hora de enterrar os rigores da métrica parnasiana, trazendo para a literatura a língua brasileira.

Um bom exemplo desta plataforma intelectual é o poema “Vício na fala”, presente no livro Pau-Brasil, do mesmo ano de 1924. Dizia Oswald:

Vício na fala

Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados.

Ainda que o Manifesto da Poesia Pau-Brasil seja, como de resto é como um todo a obra de Oswald, prenhe de provocações e de ideias interessantes sobre a cultura brasileira, ele era, para dizer sem rodeios, um texto bastante palatável para nosso arremedo de um circuito artístico e literário de vanguarda. Este texto, em suas propostas centrais, não chegava a ofender a sensibilidade dos “companheiros de geração” de Oswald, Mário e tutti quanti.

Ao longo da década de 1920, o relativo sucesso do modernismo, vazado em um discurso nacionalista mais acessível, sem contar o relativo sucesso das obras dos modernistas na imprensa nacional, acabaram por atrair um número crescente de simpatizantes, tendo como consequência a formação de uma série de grupos que se acomodavam sob o rótulo “modernistas”. Figuras tão díspares quanto Oswald de Andrade e Plínio Salgado, em algum momento daquela década, dividiram espaço em publicações modernistas.

A virada de mesa se dará no final da década de 1920, mais especificamente com a publicação da Revista de Antropofagia, do Manifesto

Antropófago, sem contar a postura extremamente agressiva que era expressa pela linha editorial da revista e as profundas transformações pelas quais o Brasil e o mundo começavam a passar naquele momento.

Como o próprio Oswald de Andrade insinuou em alguns textos de caráter mais memorialístico, o Manifesto Antropófago e a Revista de Antropofagia colocaram fim ao período de namoro que se estabelecera entre os modernistas de São Paulo e mesmo de outras regiões do país. As críticas ácidas, carregadas de ironia, em especial aquelas escritas por Oswald de Andrade e Oswaldo Costa, ajudaram a separar o joio do trigo.

O grupo de escritores modernistas ligados ao Integralismo, de movimentos como os Verde-Amarelos e o Anta, rapidamente passou a ser atacado pelos principais “açougueiros” da trupe antropofágica. Aliás, o versinho debochado de Oswald de Andrade, publicado na Revista de Antropofagia, é de uma atualidade brutal, uma vez que vivenciamos as patéticas marchas de pessoas vestidas com as camisetas do selecionado da CBF. Como dizia Oswald, “Verde e amarelo dá azul?/Não, dá azar”.

A guinada promovida por Oswald de Andrade, no final dos anos 1920, é de uma radicalidade que lhe é própria. Do ponto de vista pessoal, junto com a bancarrota econômica, fruto da Crise de 1929, Oswald termina o seu casamento com Tarsila do Amaral, desfazendo o casal Tarsivald e se unindo à escritora e militante comunista Patrícia Galvão. Além de ser uma personalidade brilhante, autora de Parque Industrial, considerado por muitos o primeiro romance proletário brasileiro, não seria exagero dizer que Pagu levou Oswald a se reinventar, apresentando a ele o marxismo. Foi ela quem o levou ao encontro de Luís Carlos Prestes e ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde ele permaneceu por cerca de 15 anos.

Pouco depois do rompimento de Oswald com o seu passado recente, de escritor boêmio e convertido ao marxismo, ele escreve um dos seus textos mais brutais, um dos acertos de contas mais crus e diretos da literatura contemporânea brasileira, o Prefácio ao Serafim Ponte Grande, publicado em 1933. Dizia Oswald que a “situação “revolucionária” desta bosta mental sul-americana apresentava-se assim: o contrário do burguês não era o proletário – era o boêmio!”. Entre os dois, já que ainda não conhecia o Manifesto do Partido Comunista, Oswald escolheu a boemia literária.

Ele não deixa dúvidas neste texto ácido de que sua aventura modernista foi um erro, uma perda de tempo e mesmo uma experiência reacionária. Não havia margens para dúvidas, quando Oswald dizia: “eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. E possuído de uma única vontade. Ser, pelo menos, casaca de ferro na Revolução Proletária”.

Curiosamente, 1928 foi o começo do fim da aventura modernista de Oswald de Andrade. Uma parte considerável do que ele escreveu ao longo da década de 1930, seja sua criação literária, seja sua produção jornalística, esteve voltada para as questões sociais, de franco engajamento político. Exemplo é o problema da posse da terra descrito no romance cíclico da fundação de São Paulo, Marco Zero, que, é preciso destacar, foi redigido em uma linguagem bem mais sóbria do que seus romances experimentais dos anos 1920 e menos metafísico do que a trilogia Os condenados.

A antropofagia, que poderia ser o ápice de seu engajamento em uma poética vanguardista, representou o abandono de sua experiência modernista, ao menos até o final dos anos 40, quando Oswald rompe com o PCB e volta a se dedicar à antropofagia, dando a ele um corpo filosófico. Mas esta é outra história, como diria o contador de causos.

*Doutor em História pela UFRGS e Pós-doutor em História pela USP. Autor de “Tupi or not Tupi. Nação e nacionalidade em José de Alencar e Oswald de Andrade” (Edipucrs) e de “Oswald Ponta de Lança e outros ensaios” (Bestiário).
**Texto publicado originalmente no Correio do Povo

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