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O encontro de Marx e Heine: política e poesia de mãos dadas contra a exploração

Por Paulo César de Carvalho

Karl Marx era filósofo; Heinrich Heine era poeta: ambos eram alemães. Heine, vinte anos mais velho, foi morar em Paris em 1831, fugindo do antissemitismo e da censura. Marx viajou para a capital da França em 1843, para conhecer as “sociedades secretas socialistas” e as associações operárias. O poeta e o filósofo, enfim, não só se conheceram, mas também se reconheceram na leitura crítica da realidade, firmando uma sólida relação de amizade.

Em 1844, quando Marx e Arnold Ruge fundaram a revista “Anais Franco-Alemães”, em resposta à censura do governo prussiano à “Gazeta Renana”, Heine foi chamado para ser um dos seus colaboradores. No contexto dos ataques à liberdade de expressão, pode-se ler no convite uma das frases aforismáticas mais célebres do poeta: “Aqueles que queimam livros, acabam cedo ou tarde por queimar homens” (Almansor, 1821). Aliás, abrindo parênteses, como num trágico prenúncio, seus livros seriam mesmo queimados na fogueira nazista da Opernplatz (Praça da Ópera, em Berlim), em 1933.

Voltando ao ano em que o filósofo e o poeta deram-se as mãos, foi em 1843 que Karl concluiu a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Na “Introdução” da obra, está uma de suas formulações mais conhecidas: “A religião é o ópio do povo”. Em 1840, Heinrich escrevera o que serviria de fonte à paráfrase do amigo: “Bendita seja uma religião, que derrama no amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança” (Ludwig Börne). Na tradução de Marx, é a “religião como felicidade ilusória do povo”, produzindo “uma consciência invertida do mundo”.

Em 1845, ele e Engels, em A Ideologia Alemã, usariam a metáfora da “câmara escura” para explicar a fabricação ideológica da “falsa consciência”, investigando os efeitos das “soporíferas gotas de ópio espiritual” no condicionamento dos explorados. Na mesma obra, recorreram a outra das máximas mordazes de Heine: “Semeei dragões, mas a colheita deu-me pulgas”. Faça-se a ressalva de que, mesmo a dupla tendo lhe dado o crédito, numa infeliz ironia, a autoria é quase sempre atribuída a Karl.

Aproveitando para evitar um equívoco, não é exatamente o caso deste trecho de As tarefas do proletariado em nossa revolução (1917), em que Lênin, ao menos, registrou o nome de Heine na nota à citação: “Compreendamos também nós as tarefas e peculiaridades da nova época. Não imitemos aqueles marxistas de meia-tigela dos quais Marx dizia: ‘semeei dragões mas a colheita deu-me pulgas’ (….)”.

Enfim, de volta a 1844, nesse ano ocorreu “a primeira revolta operária da história alemã moderna, esmagada pela intervenção do exército prussiano” (como lembra Michael Löwy no prefácio de Lutas de classes na Alemanha, de Marx e Engels, lançado pela Boitempo). Heine, influenciado pelas ideias de Marx, escreveu um de seus poemas políticos mais notáveis, homenageando os combativos trabalhadores: Os tecelões da Silésia (província oriental da Prússia) foi publicado no “Vorwärts!” (“Avante”), periódico de esquerda editado em Paris por exilados alemães. Com a palavra, o poeta:

Os tecelões da Silésia

Nos olhos sombrios 

nenhuma lágrima,

Sentados ao tear, eles

rangem os dentes: 

Alemanha, tecemos tua 

mortalha, 

Tecemos nela a tripla

maldição – 

Tecemos, tecemos! 

Maldição sobre o Deus 

ao qual rezamos 

no frio do inverno 

e passando fome. 

Esperamos e persistimos 

vão – 

Ele nos iludiu, nos tapeou, 

zombou de nós  – 

Tecemos, tecemos! 

Maldição sobre o rei, 

o rei dos ricos, 

que da nossa miséria não 

se condoeu,

que de nós extorque até 

o último vintém,

e como a cães nos manda 

fuzilar – 

Tecemos, tecemos!

Maldição sobre o falso 

solo pátrio, 

onde só viçam humilhação

e vergonha, 

onde cada flor bem cedo 

é vergada, 

onde podridão e mofo

deleitam os vermes – 

Tecemos, tecemos! 

Voa a lançadeira, range

o tear

Tecemos sem parar, dia 

e noite velha – 

Velha Alemanha, tecemos

tua mortalha, 

Tecemos nela a tripla 

maldição – 

Tecemos, tecemos!

(Tradução: Nélio Schneider)

Karl Marx, inspirado pelos versos e indignado com um artigo de Arnold Ruge sobre o episódio, escreveu o ensaio Glosas críticas ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’. De um prussiano. Na “Introdução” à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, publicada nos “Anais Franco-Alemães”, apontou pela primeira vez o proletariado como o sujeito histórico da transformação social. Nas Glosas críticas, Marx localizaria seu papel ativo como sujeito revolucionário a partir da análise de uma situação concreta, investigando as condições materiais que produziram a revolta dos silesianos. Vejamos um trecho deste ensaio: 

“A revolta silesiana começa justamente no ponto em que as revoltas dos trabalhadores da França e da Inglaterra terminam, consciente da essência do proletariado. (…) Ao passo que todos os demais movimentos se voltaram apenas contra o industrial, o inimigo visível, este movimento se voltou se voltou simultaneamente contra o banqueiro, o inimigo oculto. Por fim, nenhuma revolta dos trabalhadores da Inglaterra foi conduzida com tanta bravura, ponderação e persistência” (p.44). 

Na primeira estrofe do poema de Heine, a classe trabalhadora é representada metonimicamente na figura dos valentes “tecelões da Silésia”, que, com “olhos sombrios”, “rangem os dentes” não só de frio e fome, mas – sobretudo – de raiva contra a exploração. A imagem da “mortalha” da Alemanha, tecida pelos operários fabris, articula dialeticamente a relação entre o “literal” e o “figurado”, entre a “metáfora” e a “realidade”: o “manto mortuário” está sendo preparado por “tecelões”; logo, por sujeitos cujo lugar na produção é exatamente o de “tecer”. O mesmo “manto”, contudo, servirá para enterrar a “Velha Alemanha”, o que significa que os trabalhadores serão os próprios responsáveis por sua emancipação, destruindo o “antigo regime”, a ordem que os oprime.

Na “mortalha”, eles tecem com obstinação a “tripla maldição”, identificada nas estrofes seguintes: na segunda, a Igreja; na terceira, a Monarquia; na quarta, a Pátria (o típico nacionalismo exacerbado dos prussianos). Nesta estrofe, aliás, os versos “onde podridão e mofo/ deleitam os vermes” novamente lembra o Marx da Crítica: “a putrefação do mundo de seu tempo, que se compraz em si mesma”. Vale registrar, também, que o início da estrofe, referindo-se ao “solo pátrio,/ onde só viçam humilhação/ e vergonha”,   irá reverberar no Manifesto Comunista. Em 1848, Marx e Engels dirão: “Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar o que não têm”.

Para concluir esta breve história do encontro da poesia com a política, não se pode esquecer que Heine também foi amigo de Engels, que verteu Os tecelões da Silésia para o inglês, publicando-o no jornal “The New Moral World”. O poema, então, não poderia receber maior homenagem: tornou-se o hino da Liga dos Comunistas em Londres.

Paulo César de Carvalho é militante da RESISTÊNCIA (com Boulos presidente e Silvia Ferraro para o Senado).

Marcado como:
Marx 200