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A história como farsa? Lendo a greve dos caminhoneiros a partir de uma analogia histórica

Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes, em 1947

Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes, em 1947

Carlos Zacarias

Carlos Zacarias é doutor em História e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde leciona desde 2010. Entre 1994 e 2010 foi professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), onde dirigiu a Associação Docente (ADUNEB) entre 2000 e 2002 e entre 2007 e 2009. Colunista do jornal A Tarde de Salvador, para o qual escreve artigos desde 2006, escreve às quintas-feiras, quinzenalmente, sobre temas de história e política para o Esquerda OnLine. É autor de Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil (1936-1948) (São Paulo, Annablume, 2009) e no ano passado publicou De tédio não morreremos: escritos pela esquerda (Salvador, Quarteto, 2016) e ainda organizou Capítulos de história dos comunistas no Brasil (Salvador, Edufba, 2016). É membro da Secretaria de Redação da Revista Outubro e do Conselho Editorial das revistas Crítica Marxista, História & Luta de Classes, Germinal, entre outras.

FOTO: Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes, em 1947.

Referindo-se a Hegel, Marx escreveu no 18 Brumário que a história acontece, por assim dizer, por duas vezes, a primeira como tragédia, a segunda como farsa. Obviamente que a história não se repete, todos sabemos. Marx fez essa afirmação apenas como forma de dar ênfase à maneira como acontecimentos permitem analogias e como o passado permanece assombrando o cérebro dos vivos.

Os acontecimentos que atingiram o Brasil nos últimos dias, e que se relacionam com o golpe de 2016 e a maneira como a esquerda hegemônica entende o processo, pode ser comparado a um outro momento grave na história brasileira. Engana-se, contudo, quem pensa que me refiro a 1964.

Em 29 de outubro de 1945, Getúlio Vargas foi deposto por um golpe de Estado que partiu de setores do seu governo que se juntaram à oposição e derrubaram o Estado Novo, que durava oito anos. (1) O Estado Novo, uma ditadura protofascista com tendência inicial de se alinhar à Alemanha e à Itália na guerra que eclodiu em 1939, tinha redefinido sua posição na geopolítica mundial em 1942/43, quando a partir de sucessivas gestões dos Estados Unidos, e após o torpedeamento de navios brasileiros por submarinos alemães, resolveu se juntar aos aliados no conflito mundial.(2)

Muito embora não tivesse deixado de ser uma ditadura, o afastamento do Estado Novo das potências do Eixo a partir de 1942, seguido ao alinhamento com as nações ditas democráticas, lideradas pelos Estados Unidos, mas incluída aí a União Soviética, redefiniram as peças do tabuleiro político, promovendo deslocamentos à direita e à esquerda do governo de Getúlio Vargas. O PCB, que havia sofrido uma derrota significativa depois da aventura de 1935 e lograva um pesado ostracismo, iniciou um lento processo de aproximação do governo Vargas através de sua política de unidade nacional antifascista, a chamada União Nacional. (3)

Pode parecer paradoxal que logo os comunistas, que caracterizaram o golpe do Estado Novo como um golpe fascista, tenham se aproximado de Vargas. Mas não se pode esquecer que pouco antes a URSS e a Alemanha tinham firmado o pacto germano-soviético (1939-1941). Portanto, a política do PCB, como a do movimento comunista internacional, atendia a objetivos que aliavam aspectos táticos e estratégicos, como a urgência de derrotar o nazi-fascismo e preservar a “pátria do socialismo” no plano mundial e as tarefas da revolução democrática (burguesa) no Brasil.

A partir dos anos 1940, a conjuntura começou a mudar e o PCB, ainda na clandestinidade, viu o governo Vargas declarar guerra ao Eixo em 1942. Tal decisão favoreceu a aproximação do PCB com o governo e enquanto as mobilizações pela entrada no Brasil na guerra foram desencadeadas e arrastaram multidões ao centro da cena política nas grandes cidades, a partir do torpedeamento de navios brasileiros por submarinos alemães, os comunistas ocuparam a vanguarda das manifestações.

O (res)surgimento de um movimento de massas no Brasil, de forte teor antifascista, foi o dado mais importante ao longo de 1943 e 1944. Em 1945, voltaram as greves, e os comunistas, com importante presença na classe trabalhadora, também cumpriram um papel de grande relevância. Nessa altura, os setores liberais, que haviam concedido algum espaço às manifestações e às greves, passaram a atacar as paralisações, porque pressentiam o crescimento da radicalidade e do prestígio alcançado pela URSS que caminhava para vencer a guerra. Adotando a linha tática de União Nacional, que pavimentava o caminho para o que entendiam ser a realização das tarefas democráticas da revolução brasileira, os comunistas se aproximaram de Vargas, entendendo que a continuidade do ditador era essencial para a consolidação da democracia política e um passo fundamental para a conformação da estratégia de transformar o Brasil num país plenamente capitalista.

Comício organizado pelo PCB em São Januário em 23 de maio de 1945
Comício organizado pelo PCB em São Januário em 23 de maio de 1945

A aproximação do PCB com Vargas foi a senha para o fechamento de espaços para os comunistas, principalmente depois de decretada a anistia, em abril de 1945. Fora da cadeia, o principal dirigente do PCB, Luiz Carlos Prestes, arrastava multidões por onde passava. Convertendo-se na mais importante liderança política do país, Prestes, contudo, apelava aos trabalhadores para que evitassem fazer greves. Defendendo a tese de que era melhor “apertar os cintos” e até mesmo passar necessidade, o PCB dizia que o fundamental era consolidar a transição à democracia, na base da “ordem e tranquilidade”, sem provocar a reação.

Entretanto, a reação permanecia a postos, espreitando a movimentação do governo e também dos comunistas, então em 29 de outubro de 1945, foi desfechado um golpe que depôs Getúlio Vargas, no momento em que o PCB defendia a instalação de uma Constituinte com Getúlio e os setores mais diretamente governistas defendiam a bandeira do “queremos Getúlio” (queremismo).

Analogias históricas são importantes, mas devem ser usadas sempre de maneira cuidadosa. O PCB foi, em meados dos anos 1940, um partido com influência de massas. Sua rápida ascensão e o atendimento dos imperativos da União Soviética, fizeram com que o partido pretendesse se converter num partido de “todo o povo”, deixando para trás a marca de ser um partido do proletariado.

Recentemente o PT passou por um processo semelhante, quando pretendeu se livrar da “sombra de Santo André-Lins”, ou aquilo que André Singer chamou de sua “primeira alma”, para se tornar um partido de todo povo, com sua decisiva conversão ao lulismo (sua “segunda alma”)(4). Frente ao golpe de 1945, em que o PCB foi uma das principais vítimas, após alguns dias e depois de restabelecido os dispositivos de transição para a democracia, os comunistas se pronunciaram através de um manifesto em que anunciavam a disposição de lutarem pela consolidação do novo governo (golpista), ocupado pelo presidente do STF José Linhares, “para livrá-lo dos elementos reacionários que o comprometem”.(5)

Como parecia óbvio, tratava-se de um golpe reacionário, desferido por setores que outrora haviam defendido a aliança do Brasil com a Alemanha que se juntaram aos liberais na oposição com a firme disposição de afastar Vargas do poder, juntamente com a crescente influência comunista. De sua parte, o PCB, por medo de que as coisas se deteriorassem e a reação retornasse com ainda mais força, optaram por defender o governo, mesmo com a iminente derrota do nazifascismo e a abertura de uma vaga revolucionária mundial a partir de 1943. (6)

Vivemos uma situação de ofensiva conservadora (reacionária?) no país, mas sempre haverá a possibilidade de que as coisas possam piorar, então o que cabe a esquerda fazer é tentar influir no processo, porque a extrema-direita, os neofascistas e os reacionários já estão em campo. Há um golpe, há um governo golpista e há gente da esquerda que praticamente está pedindo pelo “fica Temer” por medo de um eventual aprofundamento do golpe, através dos militares, caso o atual governo golpista não se sustente. É claro que há o risco de as coisas piorarem! Há risco de suspensão das eleições e de intervenção militar, algo grave que ninguém que aposta numa saída progressista pode desprezar. Mas o medo nunca foi bom conselheiro político na história.

A greve dos caminhoneiros instalada no país há mais de uma semana pode ter vários desdobramentos, mas a atitude mais correta da esquerda é intervir no processo, denunciando Temer e criando condições para a sua derrubada, algo que precisa ser feito pelos trabalhadores, pelos movimentos sociais e pela própria esquerda. Temer pode cair e em sua substituição pode vir uma intervenção militar apenas se os trabalhadores, os movimentos sociais e os partidos de esquerda permanecerem recolhidos e paralisados pelo medo. Mas Temer também pode ficar e pode se fortalecer se o apoio da população aos caminhoneiros, que existe hoje, se dissipar, algo que não parece improvável numa situação em que caos seja algo iminente. Embora improvável, um eventual fortalecimento do governo golpista pode vir através de ações de repressão com o uso das Forças Armadas contra os caminhoneiros, o que pode redundar na suspensão de eleições e no surgimento de um governo sob a tutela dos militares.

Essas alternativas, que não chegam a formar uma disjuntiva, parecem improváveis, porque a direita não joga sozinha e não há, até o momento, setores das classes dominantes com disposição para novas aventuras golpistas com o uso das Forças Armadas. Todavia, como apenas são improváveis, mas não são impossíveis, é preciso que fiquemos atentos aos desdobramentos da greve dos caminhoneiros e à movimentação do governo, mas é preciso fazer isso exigindo a entrada em cena dos trabalhadores, com seus sindicatos, suas organizações e suas centrais.

Quanto à experiência histórica que nos trouxe a essa analogia, após a eleição de Eurico Gaspar Dutra, em fins de 1945, o PCB passou a dizer que o apoiaria “nos seus atos democráticos”. Como tinha se convertido numa importante força política com influência de massas, o PCB elegeu 14 deputados e o senador Luiz Carlos Prestes, tornando-se a quarta bancada da Constituinte, atrás, apenas, do PSD, partido de Dutra, da UDN, formada pelos setores liberais e oligarcas, e pelo PTB, partido trabalhista criado por Vargas.

O PCB teve um importante papel na Constituinte de 1946, mas a forte atmosfera anticomunista instalada no país em fins de 1945, depois intensificada em março do ano seguinte com o desencadeamento da guerra fria, fechou as portas da legalidade política para os comunistas. O PCB teve seu registro e seus parlamentares cassados, em maio de 1947 e janeiro de 1948, respectivamente, e sem que houvesse luta nas ruas, os comunistas se retiraram da cena para um novo ostracismo que durou até os anos 1960.

O medo impediu que o PCB avaliasse bem as circunstâncias e preparou uma nova derrota para o partido e para os trabalhadores em 1947/48. (7) Estamos diante de uma outra circunstância em que o medo parece imobilizar parte da esquerda. Os caminhoneiros não formam uma categoria homogênea e todos lembramos bem o papel cumprido por alguns trabalhadores desse segmento que apoiaram o golpe de 2016. Todavia, não estaremos em melhor situação se apenas apontamos o dedo para esses trabalhadores dizendo “eu avisei”. Faremos melhor se trabalharmos para lhes convencer que a situação atual é fruto de decisões políticas de um governo mais interessado em contemplar os acionistas da Petrobras do que em atender os interesses da população.

Precisamos ser capazes de mostrar a insuficiência das pautas apresentadas pelas lideranças dos caminhoneiros, pois elas não serão capazes de reverter o quadro adverso em que decisões políticas de um governo entreguista nos submeteu. Só uma Petrobras 100% estatal e um governo legítimo terão condições de mudar o atual quadro social e político do país. A história nos oferece lições, que sejamos capazes de aprender com nosso acertos e erros.

 

NOTAS

1 – Por uma dessas coincidências que a história nos proporciona, em 29 de outubro de 2015, exatos 70 anos depois do golpe que depôs Getúlio Vargas, o PMDB lançou o seu programa “Uma ponte para o futuro”, que vem a ser o programa do golpe de 2016.

2 – Sobre o assunto, ver SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de. “’Esta guerra também é nossa’: os comunistas baianos e o antifascismo na luta pela segunda frente na guerra (1936-1944)”. In: BARBOSA, Jefferson Rodrigues et al. (Org.). Militares e política no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2018, p. 369-406.

3 – Discuti a política antifascista e a União Nacional defendida pelo PCB nos anos 1930 e 1940 em SENA JÚNIOR, Carlos Zacarias de. Os impasses da estratégia: os comunistas, o antifascismo e a revolução burguesa no Brasil. 1936-1948. São Paulo: Annablume, 2009.

4 – Sobre o lulismo e as duas almas do PT, ver SINGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Chamo de “sombra de Santo André-Lins” a algo parecido ao que Singrer chama de espírito de Sião. Em ambos os casos há alusão ao PT das origens, algo encarnado a partir das chamadas Teses de Santo André-Lins, de 1979, e da fundação do partido no Colégio Sião em 1980.

5 – No manifesto que tinha por título “Consolidar o novo governo de fato para livrá-lo dos elementos reacionários que o comprometem”, o PCB escreveu: “O Partido Comunista do Brasil em face dos últimos acontecimentos dos últimos dias que determinaram a brusca substituição de homens no poder, dirige-se ao proletariado e ao povo em geral para reafirmar sua posição de luta pacífica e conseqüente, pela União Nacional, como o único meio justo de garantir, ampliar e consolidar a Democracia em nossa terra e assegurar a independência e o progresso do Brasil e de liquidar moral, política e conseqüentemente os remanescentes do fascismo que, como ficou visto, ainda ameaçam a tranqüilidade interna e tudo fazem para levar o país ao caos e à guerra civil, com o objetivo inconfessável, mas evidente, de barrar o processo democrático dos últimos meses e, assim mais facilmente, entregar a Nação à exploração crescente do capital financeiro, estrangeiro e colonizador, no que tem de mais reacionário”. Veja-se, a esse respeito: SENA JÚNIOR, Os impasses da estratégia, p. 235-248.

6 – Eric Hobsbawm se refere a quatro vagas revolucionárias no século XX em HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos. O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 444.

7 – Abordei o tema do “medo” no capítulo 5, intitulado “Sob o domínio do medo”, em os impasses da estratégia (p. 249-300)

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