Pular para o conteúdo
BRASIL

De massacre em massacre: A vez do Paissandu

Por Juliana Benício e Larissa Vieira
Secom SP

Foto Secom SP

Existe uma lei para dizer que o dia 1º de maio deve ser guardado como um dia sagrado, um feriado nacional, um dia de descanso para que nós, trabalhadoras e trabalhadores, possamos usar a nossa festejada liberdade e aproveitemos essas 24 horas como quisermos.

É claro que os limites da propagandeada liberdade são sentidos já quando vamos fazer nossas escolhas sobre como “tirar um lazer” no feriadão. O salário, o lugar em que moramos, a cor da nossa pele, o balaio de roupa suja acumulada, a bagunça da casa, o cansaço que nos toma o corpo e exige recuperação para os demais dias do ano são determinantes na decisão. É que “ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima”, então, frequentemente usamos esse dia para por a vida em ordem e recuperar o sono atrasado, perdido para as longas horas de idas e vindas para o trabalho.

O ideal seria que estivéssemos super organizadas e organizados e usássemos a data para nos enfrentarmos contra as nossas patroas e patrões, mas certamente se fizéssemos esse uso do dia, ele não se estenderia sendo um feriado desde a década de 40.

O 1º de maio deste 2018 entra para a história não por ter sido ordinariamente usado para a recomposição das forças, mas por ter sido um dia de massacre, de extermínio explícito de trabalhadoras e trabalhadores. Acordamos com um dos símbolos de resistência do movimento de moradia da cidade de São Paulo em ruínas: o prédio Wilton Paes de Almeida, no Centro de São Paulo, em que cerca de 400 trabalhadoras e trabalhadores viviam, foi incendiado e desabou. (1) As doutas “autoridades” ainda não divulgaram o número de mortos, mas se estima que tenham tombado 44 mulheres e homens que faziam de um edifício extremamente precário seus lares, lugares do afeto e, também, dos endereços para fins da conquista de um emprego, matrícula das crianças em escola, acesso ao SUS, benefícios assistenciais etc.

A política de extermínio do povo trabalhador é efetivada tanto pela violência homicida intencional e direta, como pela omissão legal, que não se torna menos culposa por não ter um carrasco empunhando uma pistola e desferindo tiros contra as gentes pobres.

Para lamentar o 01/05/2018, poderíamos execrar os governos por fazerem da lei letra morta. Copiaríamos vários artigos das constituições (federal e estaduais), leis orgânicas e planos diretores municipais; caberia falar em função social da propriedade e da cidade, mas nada disso faz sentido quando dezenas de pessoas morreram porque esse direito e todos os demais relacionados a uma existência digna lhes foram negados sistematicamente.

A narrativa dos nossos dias – parte 2

A política de cercamento de terras, levada a cabo pela Inglaterra em meados do século XVIII, está entre os eventos históricos mais conhecidos acerca da apropriação fundiária por uma pequena quota de indivíduos em detrimento de um contingente muito maior de homens e mulheres que vivia secularmente nesses espaços em regime de servidão. Tal prática, sustentada em um conjunto de leis, foi colocada em curso a serviço do incipiente modo de produção capitalista, que expulsou mulheres e homens dos campos em razão de sua necessidade de mão de obra para servir à nascente indústria, fosse nas cidades fabris, fosse no processo de colonização do continente americano.

Se de um lado as terras comunais eram privatizadas e o povo era delas expulso, de outro, ao chegar aos “centros industriais” não lhe era assegurado um espaço em que se estabelecer e garantir suas necessidades vitais básicas. As cidades surgiam e se consolidaram, então, de acordo com a demanda da indústria, e as mulheres e homens responsáveis por movimentarem essa atividade produtiva eram tratados como meros instrumentos, sem que fossem articuladas ações para que sua inserção se desse a partir das peculiaridades e necessidades inerentes aos seres humanos.

Quando pensamos em direito à moradia, despejos, incêndios em favelas e ocupações, estamos, portanto, lidando com um problema secular, intrinsecamente relacionado ao modo de produção vigente. Nos dias atuais, a questão assume um contorno mais sofisticado. A especulação imobiliária, aproveitando-se da reorientação do espaço urbano, marcada pela mercantilização de todos os ambientes de socialização humana, torna a moradia nos centros populacionais cada vez mais inacessível ao povo trabalhador, afastando-nos dos locais de execução das atividades econômico-produtivas e da fruição de direitos sociais e culturais.

Paralelamente, o desenvolvimento da técnica expulsa dos espaços de produção um número crescente de trabalhadoras e trabalhadores e o desemprego força o rebaixamento dos salários, impondo que vivamos com menos recursos a cada dia, de forma que vão se afunilando as opções no rol das liberdades. Os espaços de resistência, pautados pelo enfrentamento ao único direito realmente pleno em nossos dias, o direito de propriedade, são perseguidos e, sempre que possível, aniquilados, especialmente para servirem como vitrine, em uma tentativa de conformar as mentes e corações do povo pobre.

Vivemos, portanto, em uma sociedade em que nós, trabalhadoras e trabalhadores, fomos e continuamos sendo, excluídas e excluídos do direito fundamental à moradia. Podem nos negar esse direito, mas “morar com dignidade” está na matriz de nossa condição de ser humano, já que basilar para que desenvolvamos nossas potencialidades e sejamos felizes. Quanto mais nos negam tal garantia, mais nos impelem a conquistá-la. Uma das formas utilizadas é (e seguirá sendo) a ocupação de espaços urbanos e rurais para neles criarmos nossos lares e desenvolvermos nossas atividades produtivas, resistindo ao processo de segregação que se traduz não apenas no campo econômico, mas também no social e espacial.

A liberdade que as trabalhadoras e trabalhadores que perderam seus lares em 01/05/2018 detinham lhes dava o direito de escolher entre morar nas praças e ruas da cidade, sujeitando-se a formas ainda mais agudas de violências, ou ocupar um prédio abandonado pelo poder público (seu proprietário) antes e, sobretudo, depois da ocupação. Essa liberdade ainda não lhes/ nos foi negada. Tombaram o prédio no Largo do Paissandu, mas não nos tombaram: enquanto morar for um privilégio, ocupar segue sendo “O” direito.

NOTAS
1 Não existe novidade no incêndio como método de extermínio do povo pobre e parte da política de higienização e gentrificação das cidades. No ano de 2013, em São Paulo assistimos a inúmeros episódios desse grande roteiro, ilustra-se: Favela do Gato, Favela do Moinho/ Heliópolis, Comunidade da Ilha, Favela da Rua Serra da Juruoca, Paraísopolis.