Armando Pompermaier, de Xapuri (AC)
As circunstâncias da prisão política do ex-presidente Lula apenas confirmam que toda e qualquer forma de pensamento minimamente progressista está hoje, como sempre esteve e provavelmente sempre estará – a não ser por curtos espaços de tempo –, sob mais um dentre tantos outros ataques já dirigidos por uma das classes dominantes mais avessas à atuação das classes populares no campo político do mundo. É imprescindível neste contexto a realização de análises e debates os mais aprofundados e amplos possíveis sobre os principais acontecimentos que envolvam a atual crise generalizada, que significa sem dúvida uma mudança profunda de conjuntura histórica, para que os sujeitos envolvidos no processo tenham clareza dos desafios que os aguardam e desenvolvam estratégias válidas para os seus enfrentamentos.
É indispensável, antes de iniciar o debate, descartar versões ilusórias da realidade forjadas, em maior ou menor grau, tanto artificial quanto espontaneamente, no calor das atuações dos grupos políticos envolvidos mais diretamente nos processos históricos em análise. Mais especificamente, prosseguir em um debate pretensamente mais fundamentado exige a superação da visão midiática caricatural de uma disputa entre a justiça e a corrupção, personalizada no confronto entre um “heroico” juiz Sérgio Moro e um “criminoso” ex-presidente Lula, mas também das simples aparências superficiais de uma disputa ideológica entre esquerda e direita, tomando a forma de uma perseguição política de um judiciário elitista partidarizado ao rival político defensor das classes menos favorecidas.
Mas, se por um lado, tanto as visões que têm por objetivo manipulação política quanto as movidas mais pela emoção que pela razão devem ser superadas, algumas formas de análise de ambas também podem ser significativamente reveladoras dos contextos mais profundos em que então inseridas. É desta forma que a presente análise propõe como estratégia para a compreensão das ações da direita, no contexto da tumultuosa situação da política brasileira atual, uma perspectiva temporal bem mais abrangente que a do período dos governos petistas, colocando a segunda visão apresentada acima – a única das duas que se considera ter alguma consistência, mesmo sofrendo de uma boa dose de superficialidade – como um ponto de partida para a análise dos sentidos que esta adquire em sua inserção em processos históricos mais amplos.
É relevante também mencionar que tal tarefa se torna delicada no atual contexto por dois motivos principais: 1) o clima ainda é justificadamente de comoção para muitos setores da sociedade que vão inclusive além dos militantes do Partido dos Trabalhadores, mais diretamente envolvido na problemática abordada, de modo que muitos tendem a agir de forma menos racional e mais impulsiva; e 2) porque os debates que devem ser realizados devem ser também conduzidos de modo que todos os grupos que são realmente contra o Golpe de Estado de 2016 coloquem os motivos que os unem acima das diferenças que os separam.
Assim, analisando o conjunto de alguns acontecimentos que servem de contexto para a efetivação do golpe a partir do referencial marxista do conflito dos interesses de classe como o motor da história, a implacável perseguição política da qual o ex-presidente Lula é vitima não é uma consequência exatamente de seu governo ter tirado milhões da miséria, nem dos negros terem começado a frequentar a faculdade e nem dos pobres terem começado a frequentar aeroportos, como pode aparentar para muitos, e não obviamente sem motivo, à primeira vista. Tais fatores influenciaram sim no grande apoio que o golpe teve de grande parcela da classe média. Entretanto, é necessário considerar, em primeiro lugar, que o direcionamento das ações que deram origem ao Golpe de Estado de 2016 não partiu desta classe que lhe serviu de principal base de apoio, mas sim do grande capital nacional e internacional.
Esta análise defende que a impossibilidade da continuidade do projeto político de conciliação de classes que serviu de base de sustentação para os governos petistas só se torna realmente compreensível quando os recentes acontecimentos da situação de crise generalizada em que o país se encontra são observados na perspectiva do fim de uma conjuntura histórica que teve origem no início na segunda metade do séc. XX. O atual momento histórico seria, nesta perspectiva, marcado primordialmente por uma ruptura com a concepção de mundo que emergiu da II Guerra Mundial, quando as democracias ocidentais foram reformuladas para evitar a repetição das condições históricas que conduziram o capitalismo à beira de um colapso iminente, com sua continuidade seriamente ameaçada por tentativas de revoluções socialistas, contrarrevoluções fascistas, pela crise econômica de 1929 e a própria II Guerra.
As democracias do pós-guerra foram reconstruídas, nos países que em sua maioria haviam sido dominados por estados autoritários e regimes nazifascistas, sendo acordado entre estes que ainda viriam a formar o bloco capitalista do início da Guerra Fria, que 1) o capital manteria a exploração do trabalho em níveis civilizados e que 2) o Estado democrático atuaria como provedor de bem-estar social à classe trabalhadora. Tais medidas foram consideradas necessárias devido ao fracasso das promessas de que a auto-regulamentação dirigida pela “mão invisível” da economia de livre-mercado, de que falava o liberalismo econômico de Adam Smith, promoveria um crescimento econômico que superaria as péssimas condições de vida em que os trabalhadores ainda se encontravam após um século e meio de triunfo do sistema capitalista nas regiões mais ricas do mundo.
Ou seja, como a experiência da frágil democracia liberal do final da I Guerra não havia conseguido a adesão efetiva da maioria política nem da esquerda nem da direita, era indispensável a construção de uma nova democracia sobre outras bases. Nascia assim o chamado Welfare State onde, pela primeira vez, direitos trabalhistas como jornada de trabalho de oito horas, salário mínimo, férias remuneradas, aposentadoria, etc., por um lado, e serviços prestados pelo Estado saúde e educação, por outro, adquiriam pretensões universalizantes em todo o mundo capitalista desenvolvido. Objetivava-se, assim, principalmente, direcionar as atuações dos grupos políticos para posicionamentos mais ao centro, evitando o tipo de radicalização tanto de direita quanto de esquerda que tão fortemente já haviam ameaçado a continuidade do sistema.
O Welfare State, que em sua versão nos países capitalistas subdesenvolvidos ficou conhecido como desenvolvimentismo, nunca conseguiu se efetivar de forma plena no Brasil. As condições degradantes de vida da maioria da população deste país extremamente rico em recursos naturais, que figura entre as maiores economias do mundo, mas que ao mesmo tempo sempre esteve entre as suas dez piores distribuições de renda, foram historicamente mantidas por uma classe dominante radicalmente inescrupulosa e violenta, mediante o constante recurso de ameaças e golpes de Estado a qualquer sinal de alguma força política que pudesse representar minimamente a atenuação destas contradições. Enfim, esta análise considera que as medidas tomadas pelo Golpe de Estado de 2016 demonstram de forma inequívoca a pretensão das classes dominantes de destruírem as bases precárias sobre as quais a reconstrução das democracias do mundo capitalista do pós-guerra foram incorporadas no Brasil.
É desta forma que, no mais recente de uma série de golpes de Estado comuns a este país, os direitos trabalhistas de uma grande parcela da população com renda extremamente baixa foram praticamente tornados nulos pela lei de terceirização das atividades fins, por decretos e medidas governamentais que na prática liberam o trabalho análogo à escravidão, e pela reforma da Consolidação das Leis Trabalhistas, enquanto os recursos destinados ao bem-estar em setores como educação e saúde públicas, que sempre foram insuficientes para que as classes populares tivessem um mínimo de dignidade, foram congeladas pelos próximos 20 anos pela Emenda 95 – período em que a população certamente irá crescer ao mesmo tempo em que a inflação se encarregará reduzi-los ainda mais. O processo acelerado de privatizações em todos os setores completa o quadro de desmonte das propostas precárias de bem-estar social do Estado brasileiro.
Em outras palavras, se o direcionamento desta análise estiver correto, as classes dominantes decidiram romper totalmente, de forma planejada, com o pacto de moderação política anti-extremista sobre o qual as sociedades democráticas foram reconstruídas no contexto histórico que se seguiu à II Guerra Mundial. Na prática, tanto o compromisso de manutenção de exploração do capital sobre o trabalho em níveis civilizados quanto do Estado provedor de bem-estar social não existirão, sendo implantado o projeto de país formulado pela direita golpista para os próximos 20 anos. Tal qual na recomendação de O Príncipe, de Maquiavel, a implantação de uma política extremamente danosa à maioria absoluta da população se concretiza de forma gradual para que seus impactos não sejam percebidos de forma clara e imediata, pois a inevitabilidade de grandes convulsões sociais e da radicalização da esquerda após sua conclusão já é prevista no projeto de país elaborado pelo Golpe.
Não sendo objetivo deste artigo abordar as causas econômicas mais profundas do estado de coisas em que se encontra o Brasil, entendida por considerável número de analistas como uma crise estrutural do capitalismo, a presente análise prosseguirá utilizando as conclusões apresentadas até o momento como um novo ponto de partida para uma análise crítica entre a proposta de continuidade do tipo de frente de atuação política estabelecida entre movimentos sociais e sindicais e frações da burguesia, que havia nos últimos anos tomado a forma de um governo de conciliação de classes liderado pelo Partido dos Trabalhadores, e o projeto de país que já é possível perceber estar sendo delineado pelas forças políticas envolvidas no Golpe de Estado de 2016.
Nesta perspectiva, para compreender o significado mais profundo do Golpe de 2016, faz-se necessário levar em consideração o projeto de conciliação de classes implantado pelos governos petistas nunca chegou a propor nem as reformas estruturais programáticas da esquerda moderada (considerando o debate conceitual socialista sobre reforma ou revolução), não atuando enfim de forma tão diferente do que previa a promessa da versão liberal do capitalismo de que o simples crescimento econômico beneficiaria a todas as classes. O que teria chegado mais perto economicamente de uma postura considerável de centro-esquerda foram as políticas públicas assistencialistas de transferência de renda do programa Bolsa Família. Os governos do PT acabaram não somente não representaram a menor ameaça nem para o poder econômico nem político das classes dominantes deste país, como acabaram deixando-as ainda mais fortes, sendo estas as que, de longe, mais se beneficiaram com o crescimento econômico de seus governos.
No início de seu quarto governo consecutivo, a frente política que tornou possível o projeto de conciliação de classes foi rompida precisamente pelo grupo que mais havia se beneficiado desta. Parcialmente descontente com o neoliberalismo radical inicial do PSDB, esta havia aderido ao neoliberalismo moderado proposto pelos governos petistas, rompendo com esta principalmente por dois motivos: 1) já haviam superado as condições que os incompatibilizavam com o projeto neoliberal radical do PSDB após mais de uma década de benefícios acumulados pelo governo de conciliação de classes de Lula e 2) começaram a considerar os custos com a questão social mais desvantajosos que os benefícios em um contexto de crise econômica. Ao se tornar desnecessária e talvez até penosa, a incômoda aliança construída sobre frágeis bases foi desfeita, e a burguesia novamente estava unida contra os mesmos movimentos que tornaram viável a ascensão de uma de suas frações.
Após o fim trágico da proposta de um governo de conciliação de classes, ocorrido na forma de um Golpe de Estado institucional onde quadrilhas de corruptos representantes do grande capital assumiram claramente o controle sobre os três poderes da República, já transcorrida também a primeira fase do golpe de ruptura com o pacto que mantinha a exploração do capital sobre o trabalho em níveis civilizados e com o Estado provedor de bem-estar social às classes populares, as medidas para a contenção das já previstas grandes convulsões sociais e consequente radicalização das esquerdas já eram inequivocamente anunciadas no que se delineava como uma segunda fase do Golpe: a da repressão de um Estado policial, consistindo na criminalização dos movimentos sociais e dos posicionamentos políticos que vão desde o posicionamento político de centro a todas as variações da esquerda.
Já eram indicativos de tais tendências os projetos de leis que se anunciam para o ano de 2019 em diante, como a criminalização do pensamento crítico contida nos vários projetos que ficaram conhecidos como Escola Sem Partido, o projeto que classifica os movimentos sociais como grupos terroristas, etc., como também a livre atuação das milícias e a experiência de intervenção militar no Rio de Janeiro, a ascensão estimulada pela impunidade de movimentos proto-fascistas, dentre outros, dos quais se destaca a ameaça de Golpe Militar do general comandante do exército, seguido ao apoio imediato à insurgência de vários outros generais. Sem dívida a ameaça de militarização do Golpe de Estado por uma simples candidatura de um político que não propõe nada além de um governo conciliatório politicamente de centro acaba sendo um indicativo bastante substancial do caráter do golpe.
O recado dos representantes políticos do grande capital nos três poderes foi dado de forma alta e clara: para eles, a partir de agora, não existe mais conciliação de interesses de classe que seja minimamente possível. Qualquer governo politicamente pelo menos de centro será considerado como completamente intolerável pelos atuais detentores do poder. Todo tipo de medida necessária será tomada sem a menor hesitação para garantir o projeto de país formulado pelo grande capital e dirigido pela direita política golpista para os próximos 20 anos. Ameaças de morte, assassinatos, atentados a bala, prisões arbitrárias, condenações sem provas, fraudes em todos os níveis e todo tipo e atitudes cada vez mais cínicas vão se tornando situações cotidianas da vida política brasileira conforme as eleições de 2018 se aproximam.
A verdade parece ser que a redemocratização foi responsável pela criação de uma grande ilusão para os setores dominantes da esquerda que pensaram que bastava ocupar os espaços de poder políticos abertos neste processo. Até conseguiram ter êxito neste intento, mas a grande questão não era essa. O modelo econômico da Nova República continuou apenas se atualizando em relação às novas demandas do mesmo alinhamento das determinações da ordem econômica internacional vigente, com poucas variações. A ruptura de reformas estruturais em vão esperada por alguns setores à esquerda do governo Lula nunca esteve realmente nos seus planos. Apenas o ritmo de implantação do receituário econômico neoliberal foi relativamente contido enquanto eram feitas politicas assistencialistas e concessões menores aos movimentos sociais que serviram como principal base de apoio do governo petista, dentro das limitações do precário projeto econômico neodesenvolvimentista.
Em resumo, na perspectiva da nova geração das mesmas velhas elites que controlam o Brasil com mão de ferro desde 1500, na perspectiva do grande capital nacional e internacional, o Brasil não é, nunca foi, e nunca será “um país de todos”.
Análises em vários níveis do que representou a trajetória de Lula neste contexto são imprescindíveis. Talvez a imagem do “Lula light” exposta na capa da Revista Veja, o ex-líder sindical repaginado para ser melhor “digerido” pelo mercado nas vésperas das eleições, tenha sido a do político que melhor representou o ideal de “homem cordial” do historiador burguês Sérgio Buarque de Holanda. Lula melhor que ninguém encarnou a ilusão de que era possível a cordialidade entre o oprimido e o opressor, entre o explorado e o explorador, a ideia de que era possível construir um Brasil onde os antagonistas históricos estariam unidos por um objetivo comum que beneficiaria a todos igualmente. Por fim, o destino do grande conciliador de classes acabou sendo a traição por quem ele chamou de seus novos companheiros, o linchamento midiático, o ódio de parcela considerável da população, a condenação sem provas e a prisão.
Mas ironicamente, a maior contribuição para os movimentos sociais e a para as esquerdas políticas que os representam deixada por Lula talvez seja exatamente o fracasso de sua postura de cordialidade frente as classes dominantes deste país, o que demonstra na prática a inviabilidade de qualquer tentativa de conciliação com aqueles que fazem questão de deixar clara sua total incapacidade de ceder a uma proposta de sociedade democrática construída sobre bases tão profundamente moderadas como as dos governos petistas – para não dizer mesmo até bastante tímidas, acanhadas.
De uma forma ou de outra, há muito para a esquerda analisar e discutir nas definições de suas estratégias de ação a partir deste ponto do processo histórico. Sobre Lula, a minha opinião pessoal é a de que a esquerda não deve condenar uma pessoa que não somente sonhou ser possível como também lutou com todas as sus forças para seguir um caminho que acabou se demonstrando inviável na prática, alguém que sim acabou representando realmente as esperanças dos menos favorecidos e se demonstrando um dos maiores líderes populares da história deste país.
Concluo esta tentativa contribuir para a análise da conjuntura atual com uma adaptação de uma poesia de Bertolt Brecht, pela experiência deste como um militante de esquerda que vivenciou o período de ascensão do fascismo na Alemanha, por motivos que considero óbvios considerando o atual contexto político. Diz o locutor da poesia, no que chega a mim como um alerta:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas eu não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas eu não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarram uns desempregados
Mas como eu tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde
Como não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
Foi lembrando desta poesia que um velho amigo meu, companheiro de várias lutas, José Deda Rodrigues (vocalista da minha primeira experiência como guitarrista em bandas, o Arame Farpado HC), atualizou seu sentido, falando algo mais ou menos como: “Primeiro levaram a Dilma, mas como não gosto de política, não me importei / Depois levaram a Merielle, mas como não ligo pros direitos humanos, também não me importei / Depois levaram o Lula, mas como não sou petista, não me importei também”… Nos questionamos então: o que eles realmente queriam dizer quando disseram que primeiro iriam prender o Lula em seguida prender os “outros”? Quer dizer, quem realmente são esses “outros”? Quem será a próxima vítima do Golpe de Estado de 2016? O que realmente está sob ameaça atualmente? Nós, nossos familiares, nossos conhecidos, nossos companheiros, até mesmo nossos rivais, estamos todos seguros? De que modo entraremos para os livros de história a serem ainda escritos?
Muitas lutas nos aguardam, camaradas!
Armando Pompermaier é professor de História do IFAC (Campus Xapuri) e diretor de Imprensa do SINASEFE/Rio Branco.
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