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Trinta anos depois: a incerteza eleitoral e as comparações entre 1989 e 2018

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Valério Arcary, de São Paulo (SP)

Não por muito madrugar amanhece mais cedo
Nem todo o grão vai ao olho do moinho
Pregar no deserto é sermão perdido
(Sabedoria popular portuguesa)

Duas previsões opostas, mas ambas catastrofistas, preocupam uma parcela da esquerda brasileira. A primeira é que as eleições poderiam não ocorrer, com um novo golpe. Não, as eleições deste ano permanecem imprevisíveis, mas vão acontecer. O golpe já foi feito. É verdade que serão as mais imprevisíveis desde 1989. Aqueles com menos de cinquenta anos nunca viveram nada parecido. Mas o núcleo central de poder nas altas esferas da classe dominante brasileira aposta ainda na preservação do regime eleitoral, ainda que subvertido por contrarreformas autoritárias como a crescente judicialização da política.

A segunda é que, em função da gravidade da situação econômica, ou do impacto em prazos breves de um choque internacional, quando se inverter a atual fase de recuperação do ciclo econômico, devemos nos preparar para uma situação de potencial explosão social, com aquela que veio depois da eleição de Collor, quando da crise de 1991/92, um novo junho de 2013. Portanto, profetizam a rebelião.

Só que isso não é tão, facilmente, previsível. Situações revolucionárias não se precipitam mais rápido porque são, sinceramente, previstas e agitadas por revolucionários honestos. O que coloca em movimento milhões de trabalhadores e jovens é um amadurecimento político, uma disposição de luta que depende, essencialmente, de uma experiência prática. E na atual conjuntura o que prevalece na consciência dos setores organizados do povo não é a revolta, mas a insegurança e perplexidade diante da degradação das condições de vida, depois de quatro anos de estagnação, desemprego e desvalorização salarial. Os humores poderão mudar e, certamente, mudarão. O problema é quando mudarão. Quem repete, incansavelmente, que é meio dia, acerta uma vez todo dia, mas erra todas as outras. Uma linha política deve responder ao tempo do presente, não à previsão de um futuro imaginário.

Analogias históricas são sempre perigosas, porque tendem a acentuar as semelhanças e diminuir as diferenças. É compreensível, já que a busca de regularidades ou padrões responde à necessidade de previsões. Mas um marxismo sério exige rigor. Excessos de voluntarismo na ação são perigosos. Mas quando excessos de “entusiamo” contaminam a análise é muito grave. E duas diferenças imensas agigantam-se, quando pensamos em perspectiva 2018 olhando para 1989. A maior delas é que o país mudou muito. Muito mesmo. Além disso, a relação de social de forças agora é mais desfavorável. Na verdade, muito mais difícil.

Entretanto, é um fator central da análise da conjuntura destacar que nas últimas seis eleições presidenciais em 1994, 1998, 2002, 2006, 2010, e 2014, um intervalo de um quarto de século, prevaleceu um padrão de alternância entre dois campos políticos: PSDB e PT. A crise no sistema partidário, um dos componentes do regime político, é muito grave, talvez, terminal. Podemos chegar a outubro, nas vésperas do primeiro turno sem que um destes partidos, ou mesmo os dois tenham condições de garantir presença no segundo turno. Eis um exercício rápido de comparação das eleições de 2018 e 1989 em seis variáveis:

(a) situação econômica alimenta um profundo mal estar social: em 1989, a superinflação, e em 2018 o desemprego e o arrocho salarial; e dois governos ultra-desprestigiados, que não podem ser reivindicados sem prejuízos eleitorais irreparáveis. Em 1989, Sarney, em 2018, Temer;
(b) a necessidade de uma política de choque de efeitos antipopulares, só que naquele momento contra a inflação, agora uma política de choque para atrair investimentos externos, que passa pela reforma da Previdência social, de longe a maior política social de distribuição de renda;
(c) em 1989, a ausência de uma candidatura, eleitoralmente, viável nos partidos mais orgânicos e confiáveis para a classe dominante, como PSDB (Covas), PMDB (Ulysses), PFL (Aureliano Chaves) e PDS (Maluf). Ou seja, a fragilidade do sistema partidário de representação burguesa que surgiu ao final da ditadura. O que resultou na improvisação de um aventureiro com o discurso anticorrupção de caça marajás, Fernando Collor. Em 2018 teremos, provavelmente, Alckmin, Temer ou Meirelles, Rodrigo Maia, Alvaro Dias, Marina Silva e Ciro Gomes e, nas margens, João Amoedo e Flavio Rocha. Correndo “por fora” e “contra todos”, reivindicando a ditadura e “armas para todos”, o neofascista Bolsonaro;
(d) em 1989, uma maioria da burguesia tranquilizada diante do protagonismo de Brizola (deu provas de “responsabilidade” ao defender a extensão de um ano de mandato para Figueiredo, durante a campanha pelas Diretas Já, enquanto o PT boicotou o colégio eleitoral que elegeu a chapa Tancredo Neves/ Sarney), e unificada contra a possibilidade de Lula chegar a um segundo turno; em 2018, uma mesma maioria se formou para impedir Lula de ser candidato, ou até mesmo poder fazer campanha para transferir votos, mas surgiu a candidatura Boulos/ Sonia Guajajara como embrião de uma reorganização da esquerda socialista, para além do PT;
(e) uma altíssima imprevisibilidade de quem poderá chegar ao segundo turno e, portanto, o papel decisivo da mídia, em especial da Globo, mesmo considerando o perigo real das fake news pelas redes sociais;

Isto posto, a seriedade exige que haja alguma coerência entre a análise da conjuntura, as caracterizações que decorrem da análise e a política. Quando consideramos que nossos inimigos estão fragilizados, arriscamos mais, tentamos avançar. Quando consideramos que estão fortalecidos, lutamos, defensivamente, para manter posições. O que não pode ser é ter uma política para avançar, se a situação piorou, ou manter táticas defensivas, se consideramos que a situação melhorou. Não pode ser. Não é racional. Política marxista tem que ser responsável.

Há duas posições distintas em grau, porém, ambas equivocadas sobre a avaliação do regime político. Não percebem ou subestimam as mudanças reacionárias em curso. Cometem cinco erros de análise:

(a) tergiversam sobre a criminalização do PT e de Lula pela operação LavaJato, como se estivesse em disputa uma renovação das tradições arcaicas do sistema político;
(b) desconsideram o significado reacionário das maiores mobilizações de massas desde antes de 1964, lideradas por uma fração da burguesia em 2015/16, iludidos pela forma “democrática” da bandeira contra a corrupção, ignorando, com uma ingenuidade imperdoável, a fúria de classe e o ódio social que foram a combustão da explosão da classe média;
(c) não compreendem que o impeachment de Dilma foi uma aberração jurídico-política, uma violação da ordem legal do próprio regime, um golpe encoberto pelo domínio de uma maioria parlamentar;
(d) diminuem as sequelas provocadas pelo governo Temer;
(e) e não vêem o perigo que o neofascista Bolsonaro representa como expressão de uma corrente com influência de massas, ainda que minoritária, mas com influência nos aparelho repressivo do Estado.

Este é um bom debate, porque explica a existência de dois campos políticos dentro do Psol que se traduziram em duas candidaturas. Mas deve ser feito com alguma perspectiva histórica, e sentido das proporções.

A longevidade de trinta anos do regime democrático-eleitoral consagrado na Constituição de 1988 teve fatores objetivos e subjetivos: pressão internacional a favor de regimes eleitorais nos países da periferia, em especial, na América Latina, depois das décadas de ditadura; fim da transição histórica do Brasil, majoritariamente, agrário, ainda nos anos cinquenta, para uma sociedade urbanizada e semi-industrializada nos anos oitenta; estabilização da moeda com índices inflacionários de menos de dois dígitos, inferiores a 10%; crescimento econômico, ainda que moderado; elevação do salário mínimo acima da inflação; ampliação do acesso de metade da população economicamente ativa ao crédito pela bancarização (eram 20%); expansão da fronteira agrícola; distribuição de renda pela previdência social, com o salário mínimo como piso; assistência social, em particular os programas de renda mínima focados; burocratização sindical, expectativas no lulismo.

Quais entre estes fatores e, possivelmente, outros, não estão mais presentes? Aqui deveria começar uma discussão interessante. Mas não se faz assim. Faz-se com caracterizações impressionistas que só servem para incendiar ou assustar a militância. Enganam-se os que pensam que este regime está em crise terminal. E que, por isso, prevem que poderá não haver eleições em outubro. Há elementos de crise, mas teremos eleições. Enganam-se, também, aqueles que prevêm a iminência de uma explosão social contra todos, como em Junho de 2013. Estamos assistindo desde o final de 2016 uma relativa recuperação da influência do lulismo e do PT, desde que passaram à oposição.

É verdade que um dos pilares do regime, o sistema partidário articulado em trono da alternância PSDB/PT está mais que debilitado. Está em frangalhos, ruindo, pela intervenção da LavaJato. Ainda não colapsou, mas pode cair. A possibilidade que nem PSDB, nem PT consigam chegar ao segundo turno é verdadeira. A alternância PSDB/PT pode não se manter.

Mas, é possível, também, que a execução de Marielle e a prisão de Lula, estejam produzindo uma onda de impacto cujas consequências ainda são pouco claras. A operação de quadrilhas articuladas com frações das polícias no Rio de Janeiro na disputa do mercado de venda de drogas deixou de ser um drama de segurança pública, e mudou de qualidade: trata-se de milícias fascistas que matam lideranças populares. A prisão de Lula antes das eleições escancara a perseguição política, projeta Lula como um mártir e favorece uma recuperação do prestígio do PT.

Portanto, a crise do sistema partidário não equivale à crise terminal da “Nova República”. A novidade perigosíssima é que surgiu uma corrente neofascista com influência de massas (com articulação forte no aparelho policial/militar e ramificações nas milícias clandestinas), por enquanto, minoritária, que desafia o regime defendendo, abertamente, a necessidade de uma ditadura.

Em conclusão: uma parte da esquerda socialista, ainda que em graus diferentes, subestima os efeitos reacionários da LavaJato e da criminalização do PT e de Lula, mas, paradoxalmente, exagera a crise do regime, prevendo o fim da Nova República, apoiados na ilusão que o impulso de 2013 continua vivo, como se estivessemos em uma situação pré-revolucionária. Não, infelizmente, a situação aberta em Junho se fechou, e a ofensiva reacionária vem firme e forte desde 2015.

Não obstante, é verdade que não ocorreu uma derrota histórica. A classe trabalhadora e seus aliados resistem, e há muitas forças intactas. Precisamos transformar a resistência em contraofensiva. Nesse combate todas as forças revolucionárias são necessárias, e devemos ter um pouco mais de paciência mútua e aprender a nos ouvir.