Por Fernando Castelo Branco*
É possível que você já tenha repetido que “todo mundo é inocente até que se prove o contrário”, não é mesmo? Afinal, é isso o que diz a sabedoria popular. A ideia aí contida é a de que devemos proteger as pessoas contra um tratamento injusto, impedir que um inocente seja tratado como culpado antes que ele possa esgotar todas as formas de sua defesa. Antes que não restem dúvidas sobre sua culpa. Sim, porque mesmo depois de uma longa investigação, se temos diante de nós uma dúvida persistente, deve-se decidir a favor da absolvição, e não da condenação.
Esse princípio, de que não se pode tratar um inocente como culpado, é um princípio elementar da dignidade humana e, por essa razão, está expressamente escrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos publicada quase 70 anos atrás pelas Nações Unidas:
“Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.” (Art. XI, item 1, DUDH)
De acordo com a nossa lei mais importante, a Constituição, todos nós devemos ser considerados inocentes até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. É o que todos podemos ler, no inciso LVII do famoso art. 5º:
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
O que isso quer dizer? Que até que tenhamos contra nós uma sentença da qual não caiba mais recurso algum, até que tenhamos a última palavra do poder judiciário, a última, não a penúltima, não a antepenúltima, não a do juiz Moro, não a de um tribunal, mas sim a última, devemos ser reconhecidos como inocentes. Isso porque enquanto ainda houver possibilidade recorrer e obter outra decisão do poder judiciário, não estará ainda definitivamente provada a culpa, não se terá esgotado o devido processo que a lei estabelece como adequado para punir alguém por uma conduta definida como criminosa.
Mas a presunção da inocência não pode ser um fator que impeça, de maneira absoluta, a prisão de uma pessoa, você dirá. E tem razão. Existe a possibilidade até mesmo de prisão sem ordem judicial, uma prisão que é providência administrativa e pode ser adotada por qualquer um de nós diante de uma situação de flagrante delito (Art. 302, Código de Processo Penal).
Não há nenhum direito, não há nenhuma garantia que seja absoluta. E sendo assim, sim, é possível levar à prisão alguém que é ainda presumivelmente inocente. Mas neste caso, a prisão não é aplicação de pena, é uma medida extrema adotada para garantir a segurança do andamento do inquérito policial, do processo penal, ou mesmo da própria sociedade, em situações que deveriam ser absolutamente excepcionais. É uma medida de segurança, de proteção, de cautela, e por isso se chama prisão cautelar.
A prisão temporária, por exemplo, é uma forma de prisão cautelar. Nela, o juiz pode decretar a prisão de uma pessoa pelo prazo de 5 dias, prorrogável por mais 5, quando essa medida for considerada indispensável para as investigações, ou ainda quando pessoa investigada não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade, e por fim, quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do investigado em determinados crimes. Mas é sempre bom lembrar que nesse caso, a prisão não é aplicação de pena. É medida de proteção ao andamento das investigações, e não pode durar mais do que 10 dias.
“A prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou de requerimento do Ministério Público, e terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.” (art.2º, Lei 7960/1989)
Outra forma de se impor a prisão, cautelarmente, à alguém reconhecidamente inocente é a prisão preventiva. Ela ocorre quando o juiz interpreta que essa medida é necessária para proteger a ordem pública, ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, sempre que exista prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
“A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.” (art. 312, Código de Processo Penal).
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta: mais de 726 mil presos. Deste universo, 40% são presos provisórios. Estamos falando de aproximadamente 290 mil pessoas presas sem julgamento algum. Sem nenhuma condenação. Absolutamente nenhuma. São 290 mil pessoas que embora encarceradas não estão cumprindo pena.
Nenhuma delas será posta em liberdade caso o STF decida por conceder um Habeas Corpus a Lula no dia 04 de abril. Nenhuma delas será posta em liberdade caso o STF entenda ser inconstitucional a execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância, isto porque, estas pessoas não estão presas em virtude de uma condenação.
Desta forma, vamos esclarecer algumas coisas e desmentir falsas afirmações que circularam pela internet esses dias:
1) De todos os Estados Membros da ONU, mais de 193, só o Brasil adota o princípio da presunção da inocência.
MENTIRA!
Como vimos, o princípio está expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aceita junto com a Carta das Nações Unidas por todos os países que quiserem ser parte das Nações Unidas.
2) Se o STF conceder o Habeas Corpus a Lula, milhares de bandidos, estupradores, assassinos, traficantes de drogas, serão soltos.
MENTIRA!
O Habeas Corpus discute um caso concreto, específico, não é uma ação de repercussão geral. Este que vai a julgamento no STF no dia 04 de abril examina apenas a situação de Lula. Única e exclusivamente. Não vale para os demais condenados da Operação Lava Jato, não vale pra mim, não vale pra você, não vale para mais ninguém! Quem estiver em situação semelhante deve fazer um pedido ao judiciário, e o judiciário examinará o tema e suas particularidades.
3) Se o STF conceder o Habeas Corpus a Lula, ele pode ser candidato à Presidência da República?
NÃO. UMA COISA NÃO TEM NADA A VER COM A OUTRA.
O que pode impedir a candidatura de Lula à Presidente da República não é o fato de estar preso ou em liberdade, é a sua condenação por parte de um tribunal, como foi o caso do TRF da 4ª Região em janeiro deste ano. Qualquer que seja o cenário, o PT registrará a candidatura de Lula no dia 15 de agosto. A partir daí, a discussão sobre se ele pode ou não ser candidato será travada no TSE. Não tem nada a ver com o que está sendo discutido agora no STF.
4) Se o STF conceder o Habeas Corpus a Lula, será o fim da Operação Lava Jato.
MENTIRA!
O processo de Lula continua tramitando, assim como o de todos os demais investigados nos vários processos que compõem aquilo que se convencionou chamar de Operação Lava Jato.
5) Ouvi dizer que menos de 1% das decisões da segunda instância é modificada nos Tribunais Superiores. Por que então devemos ser contra a execução provisória da pena?
POR UMA QUESTÃO FUNDAMENTAL DEMOCRÁTICA E DE JUSTIÇA.
Essa me parece ser a questão fundamental. Não é um problema de número. De quantidade. Em tempos de profunda instabilidade jurídica é indispensável proteger as garantias das pessoas contra a pretensão punitiva do Estado.
Vivemos momentos de aguda crise política, de incerteza jurídica, de relativização do conceito de prova e de responsabilidade. Tempos de mudança na interpretação da separação dos poderes, de banalização uso de medidas de força e coerção, tempos de propagação de ideias e de práticas autoritárias. E em um contexto como esse, o melhor e mais prudente a se fazer é defender a presunção da inocência e estabelecer limites à forma da pretensão punitiva do Estado.
* Fernando Castelo Branco é professor, advogado e mestre em Direito Constitucional
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