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CULTURA

Mulheres do samba: viva Clementina de Jesus, Rainha Quelé, Baobá da cultura afro-brasileira

Por Amanda Menconi, da Mana Dinga*

“Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”, afirmou o escritor malinês Amadou Hampâté Bâ. O mesmo podemos falar de Clementina. Fruto do entrecruzamento de diversas tradições orais que compõe aquilo que podemos chamar de cultura afro-brasileira, Clementina é um verdadeiro Baobá, árvore guardiã da sabedoria e da ancestralidade. Em Mãe Quelé, como era chamada, a ancestralidade se traduziu como modo de vida. Assim como o próprio samba, Clementina é a síntese entre os tempos da escravidão e o mundo dos recém libertos, estabelecendo a ponte que entre a tradição e o moderno, o passado e o presente.

Com 24 anos de carreira artística, sua música negra é profundamente marcada pelos processos colonizadores, escravistas e classistas da história brasileira. As fortes raízes deste enorme Baobá frutificam ainda nos dias de hoje.

Neta de africanos e filha de ex escravos, Clementina de Jesus nasceu em Valença, interior do Rio de Janeiro, em meio as rodas de jongo.
A história de sua vida, assim como a de sua mãe, Dona Amélia rezadeira e a de seu pai, Paulo, são expressão da condição a que a população negra esteve submetida após a abolição da escravidão em 1888. Assim como tantos outros recém libertos, Clementina e sua família migram em 1910 para o Rio de Janeiro, Capital da República, para tentar sobreviver longe das fazendas de café. O destino foi o bairro de Jacarepaguá, área rural, onde já morava seu tio.

Clementina foi socializada no universo dos recém libertos. Na infância fez parte de um grupo de pastorinhas e folia de reis, manifestação religiosa e cultural que está na origem dos cordões carnavalescos e Escolas de Samba.
Após a morte do pai, Clementina e sua mãe se mudaram para o bairro Oswaldo Cruz, subúrbio rural do Rio e sozinhas buscaram se sustentar. Ambas passaram a trabalhar como empregadas domésticas, uma das atividades mais exercidas pelas mulheres negras no período após a abolição. Era na Pequena Africa da baiana Tia Ciata e na Escola de Samba Unidos do Riachuelo, onde foi diretora que Clementina esquecia momentaneamente da dureza do trabalho. Na década de 1930, dançando e cantando sob o chão batido, pôde conhecer diversas pessoas que se preocupavam com a resistência cultural afro-brasileira, como Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Paulo da Portela, Noel Rosa, Aniceto do Império e Albino Pé Grande, que viria a ser seu companheiro. Albino era morador do Buraco Quente, no Morro da Mangueira. Ali iria construir uma história e, em 1956 foi reconhecia como Princesa da Velha Guarda da Mangueira.

Conheceu também Hermíno Belo de Carvalho que se tornou seu produtor cultural, iniciando sua carreira profissional como cantora aos 64 anos de idade, em meados da década de 1960. Depois de 23 anos de trabalho doméstico em residências de seus patrões, seu canto e sua ancestralidade se materializaram como verdadeira resistência estética e política. Contra a cultura hegemônica europeia que buscava embranquecer o Brasil representando a negritude de forma disfarçada e dissimulada para garantir o lucro do mercado fonográfico,

Clementina chegou à mídia com identidade própria, com sua forma de cantar e de se vestir. Sem alterar seu estilo, questionou o olhar branco que impunha adaptações para que o samba pudesse ser tocado nas rádios, devolvendo ao samba das rádios seus tambores, ganzás e cantos dos terreiros.

A discografia de Clementina revela a presença de gêneros musicais relacionados a identidade negra, como Jongos, Modas, Batucadas Canto das pastorinhas e Corimás, ritmos relacionados à origem do samba, que foi o ritmo mais gravado pela cantora. Ao lado de Pixinguinha e João da Baiana gravou o disco Gente da Antiga, em 1968, representação musical do sincretismo religioso brasileiro.

Clementina foi sujeito de sua história. Em 1979 redigiu uma carta com a ajuda de Cartola para Jair Soares, então Ministro da Previdência Social do governo Figueiredo exigindo seu direito a aposentadoria e o de tantos outros artistas. Na carta afirma que não sabe “como é esse negócio de aposentadoria de cantora” e que “a nega veia e muitas outras pessoas do nosso meio estão no mesmo pagode”. Artistas como Cartola, Dona Ivone Lara, Nelson sargento, Candeia, dentre outros conquistaram sua aposentadoria não como artistas, mas com as profissões que tinham antes de se tornarem conhecidos, uma vez que direitos autorais eram manipulados pelas sociedades arrecadadoras.

A Rainha Quelé, Rainha Ginga apresentou-se em público pela última vez no dia 24 de maio de 1987, num restaurante do Méier, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Depois disso, os problemas de saúde se agravaram e no dia 19 de julho o Baobá tombou, deixando seus frutos por toda a eternidade. Na Carta ao Ministro, ela afirma que a força para ela seguir cantando Brasil afora com 80 anos vinha da juventude que a recebia de braços abertos. Sigamos divulgando o trabalho desta grande anciã para que sua obra frutifique para sempre!

Fontes de Pesquisa:

Silva, Luciana. Rosa de ouro: Luta e representação política na obra de Clementina de Jesus. http://www.historia.uff.br/stricto/td/1413.pdf
Silva, Carlos. CLEMENTINA DE JESUS UM CORPO CULTURAL, ANCESTRAL E DA INDÚSTRIA CULTURAL. http://www.uniedu.sed.sc.gov.br/…/Tese-Carlos-Alberto-Silva…

* A Mana Dinga é um grupo de cinco mulheres compositoras de Campinas, que leva músicas próprias para prosear com importantes sambistas, compositoras, instrumentistas e interpretes que abriram caminhos para as mulheres na musica brasileira. 
Formado por Amanda Menconi (flauta e percussão), Anisha Vetter (surdo e voz), Carla Vizeu (voz e percussão), Ju Leite (pandeiro e voz) e Milena Machado (violão e voz). Para mais informações acesse facebook.com/manadinga

Imagem: Esquina Musical

 

 

Marcado como:
8 de março 2018