Por: Renan Dias Oliveira, militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e agente da Pastoral Carcerária em Bragança Paulista
Mais um ano se inicia e vemos novamente nos noticiários as rebeliões, assassinatos, massacres, a “crise” no sistema carcerário do país. “Crise” propositalmente entre aspas, pois o sistema carcerário do país não vive uma crise propriamente, mas como diria o antropólogo Darcy Ribeiro: uma crise que se estendeu e se tornou um verdadeiro projeto. Mas projeto por parte de quem? Afirmamos: um projeto da burguesia e das classes dominantes brasileiras. Em 12 de janeiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou um levantamento que mostra que o tempo médio de prisão provisória no país é de um ano e três dias, ou seja, um efetivo encarceramento, que de provisório não tem nada.
Esse levantamento do CNJ traz, ainda, outros dados interessantes, como o que aponta que dos 654.372 presos no Brasil, 221.054 – um terço do total – são provisórios. Os números chocam tanto absolutamente (é a terceira maior população carcerária do mundo), como pela indicação de um terço que, encarcerados, aguardam julgamento, podendo chegar até a até 974 dias de detenção provisória (quase três anos), como é o caso do estado de Pernambuco. A iniciativa do levantamento do CNJ partiu dias após as mortes no Amazonas e em Roraima, neste mês, diante da constatação de que não havia números atualizados da quantidade de presos no Brasil. O último balanço, do fim de 2014, feito pelo Departamento Nacional Penitenciário (Depen), do Ministério da Justiça, apontava um total de 607.731 presos no Brasil – 7% a menos do que o agora divulgado pelo CNJ, o que mostra que nossa população carcerária, incluindo os considerados presos provisórios, não para de crescer.
O levantamento é uma espécie de base para a futura realização do censo penitenciário nacional, que o CNJ planeja executar com o apoio do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Exército Nacional e da Pastoral Carcerária. Resgatando uma história próxima: em 2007 foi instalada uma CPI do Sistema Carcerário Nacional, pela Câmara dos Deputados, que gerou um Relatório em 2009, o qual apontava (dentre outros dados importantes) que tínhamos 34,43% de presos provisórios, com disponibilidade de vagas para apenas 21,88%. A “crise” continuou. Uma segunda CPI do sistema carcerário gerou outro relatório em 2015, que apontava que o percentual de presos provisórios de 2007 a 2015 havia aumentado em 41%! Além disso, mostrava que que para cada 10 vagas em presídios, hoje, há 16 presos! Esse mesmo relatório destacou que apenas 18 estados da Federação responderam ao questionário enviado pela CPI, mostrando que os números devem ser ainda piores.
Medidas legislativas no interior do sistema burguês podem minimizar problemas estruturais e crônicos da sociedade capitalista, como aconteceu no caso da presente “crise”. Em 2011, a Câmara Federal aprovou a Lei 12.403, que buscava restringir hipóteses de prisão provisória e criou novas medidas cautelares, como o monitoramento eletrônico por exemplo. A lei até teve uma reverberação positiva em processos judiciais. Mas o Ministério Público, e o Judiciário de forma geral, continuam propalando uma cultura punitivista e encarceradora nos processos judiciais, o que explica o aumento da população carcerária, e dos detentos provisórios principalmente, no país, conforme os dados apresentados, mesmo com a ampliação da aplicação da Lei 12.403 de 2011.
Mas vamos parar por aqui com os dados e as siglas e resgatar a nossa afirmação inicial: o projeto de encarceramento em massa é um projeto da burguesia e das classes dominantes brasileiras. Ainda que tenhamos visto melhorias no Sistema Penal do país como um todo, o que permitiu a prisão de criminosos do “colarinho branco”, como os envolvidos na Lava-Jato e, mais recentemente, de Paulo Maluf, a estrutura do sistema carcerário no país funciona mesmo é para prender grande parte da classe trabalhadora, pobre, negra e jovem. O dispositivo de encarceramento na cultura do país (“todo camburão tem um pouco de navio negreiro”), marcado pelo racismo estrutural e pela “guerra às drogas” permite às classes dominantes manter um rígido controle social sobre a população trabalhadora do país.
A estrutura das polícias mantém uma verdadeira “guerra aos pobres”, expulsando-os para as áreas periféricas, realizando batidas e prisões extremamente violentas à revelia de mandados judiciais, torturando sistematicamente nas delegacias e mantendo uma íntima ligação de favores e pagamentos com o crime organizado, que controla territorialmente grandes áreas em favelas e presídios do país. A estrutura da polícia brasileira se faz dócil e competente para atender aos interesses da burguesia do país, é o seu legítimo “braço armado”.
Mas o crime organizado é, e sempre foi, extremamente funcional ao sistema do capital. O tráfico, em especial, desempenha um importante papel na circulação de mercadorias, garantindo a reprodução da mais-valia e, no limite, da própria sociedade capitalista, como apontara Marx com relação à circulação do capital de forma global. O tráfico de drogas e armas (que são mercadorias no sistema do capital) é totalmente incorporado e bem-vindo pelos capitalistas. Ainda que haja conflitos entre o poder constituído (polícias, Executivos, Judiciário, etc.) e o chamado “poder paralelo” (traficantes, máfias, milícias, etc.), sua atuação conjunta é extremamente importante para o sistema do capital continuar controlando a força de trabalho. Evidentemente que nesse “conflito” quem sofre as consequências é, novamente, a população trabalhadora e mais pobre, que fica na “linha de fogo” dessa guerra promovida pela burguesia, além de ser extremamente vulnerável à estrutura do crime organizado, o que fica claro quando vemos que o maior porcentual de presos provisórios está enquadrado no tráfico de drogas: 29%. O crime de roubo vem em seguida, com 26%. Ambos extremamente ligados à população mais pobre que se vê refém do tráfico e das milícias.
Por fim, é fundamental destacar que grande parte do trabalho de setores públicos (e, nos Estados Unidos, China e Rússia, também de setores privados), como manutenção de vias públicas por exemplo, é realizado por detentos do sistema prisional, o que garante ampla exploração da força de trabalho, já que, muitas vezes, esse trabalho não é pago e nem contabilizado no tempo de aposentadoria dos detentos, é praticamente escravo. Não vamos entrar aqui no mérito se o trabalho é importante no tempo que os detentos estão encarcerados, isso mereceria outra reflexão mais aprofundada. Adiantamos que consideramos que sim, o trabalho é importante no tempo de cárcere. Há iniciativas pontuais extremamente bem-sucedidas de trabalho e estudo em penitenciárias no país, como é o caso do Centro de Ressocialização da cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo. Mas, de forma geral, o trabalho a que os presos são submetidos servem para uma profunda exploração e estão inseridos na dinâmica global do capital de controle de força de trabalho.
Foto: EBC
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