Febre Amarela: informação para combater o pânico e notícias falsas

O Esquerda Online entrevistou o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Felipe Monte Cardoso, médico de família e comunidade – Clínica da Família Ricardo Lucarelli/RJ e preceptor do Programa de Residência em Medicina de Família e Comunidade/ SMS-RJ.

Por Gisele Peres, da Redação

O Brasil registrou 53 mortes por febre amarela, de um total de 130 casos confirmados, no período de julho de 2017 a janeiro deste ano, de acordo com dados do Ministério da Saúde. O índice de letalidade da doença está em 40,8%, número maior do que os 33% registrados entre julho de 2016 e janeiro de 2017 — nesse período, houve 397 casos e 131 óbitos. Os dados foram divulgados na última quinta-feira (24), durante videoconferência entre o Ministério e representantes estaduais e municipais de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, onde serão realizadas campanhas de vacinação com uso de doses fracionadas.

EO: Anúncios de epidemias já fazem parte do cotidiano da população brasileira no último período: Dengue, Zika Vírus, Gripe H1N1, Chikungunya, Sífilis e agora Febre Amarela. Por que esses surtos de doenças contagiosas estão, não só mais frequentes, quanto também atingem grande quantidade de pessoas em áreas cada vez mais extensas em curtos períodos de tempo? Qual a responsabilidade do poder público?

Felipe Monte Cardoso: Estes episódios recentes tem em comum o fato de serem todas doenças infecto-contagiosas, mas o atual surto de Febre Amarela ainda não pode ser considerado uma epidemia. Outra diferença importante é que a gripe H1N1 o contágio é pessoa-pessoa por contato; na sífilis, o contágio é pessoa-pessoa por relação sexual desprotegida; as demais são arboviroses (doenças virais transmitidas por artrópodes). A forma de contágio é importante para entender porque estas doenças se proliferam, e que as medidas de prevenção e atendimento aos que adoeceram são bastante diferentes. A gripe é uma doença extremamente comum, que tem ciclos de maior ou menor incidência, mas que sempre pode provocar epidemias.

No caso do H1N1, houve uma grande comoção internacional que foi muito bem aproveitada pela indústria farmacêutica para vender medicamento cuja eficácia (prevenir eventos graves e mortes) não foi devidamente comprovada. No caso da sífilis, a resposta é complexa, mas passa pela redução no uso de preservativos, pela falta da medicação mais eficaz (penicilina benzatina, cuja baixa margem de lucro não desperta interesse da industria farmacêutica). Por fim, as arboviroses tem a ver com a arraigada presença do vetor aedes aegypti, que é parte da paisagem urbana brasileira desde muito tempo, dada o processo desordenado – e segregado – de formação de nossas cidades. A falta de investimento em reforma urbana e em especial no saneamento levaram a perpetuação do vetor, que transmite as arboviroses que você citou.

Se pensarmos em termos de política de saúde, o SUS engloba ações que tem capacidade de prevenir (no caso das arboviroses, de monitorar a evolução temporal e espacial das doenças) e tratar os infectados. O crônico desfinanciamento do SUS faz com que estas ações fiquem incompletas, e muitas vezes nós profissionais de saúde nos sentimos apagando um incêndio após o outro. Para piorar, estamos vivendo em muitos estados demissão em massa de agentes comunitários de saúde, reflexo da nova Política Nacional de Atenção Básica editada por Temer. Um dos objetivos não declarados é desmontar a Estratégia de Saúde da Família, talvez a política pública mais capilarizada do Brasil, que atinge a quase totalidade do território nacional. A ESF tem a capacidade de combater estas epidemias através de ações preventivas, vacinação, identificação de casos graves e tratamento precoce a um custo relativamente baixo. Os agentes comunitários de saúde tem o papel de identificar pessoas potencialmente doentes, monitorar focos do mosquito vetor, sendo de enorme valia no vínculo comunidade-serviços de saúde. Caso o plano de Temer para a ESF se concretize, o país terá menor capacidade de ação diante de situações como as epidemias de dengue, zika e chikungunya.

EO: Não é incomum depararmos com notícias que denunciam abusos praticados por grandes corporações farmacêuticas, pressionando o consumo de produtos, motivadas por lucro. Deste modo, é compreensível que parte da população apresente desconfiança e resistência quanto a necessidade da vacinação de modo geral, e de forma mais enfática neste momento, contra a vacina da Febre Amarela. A expressão “terrorismo vacinal” ganha espaço nas redes sociais, acompanhadas de notícias de possíveis mortes causadas por reação adversa. Quais são as reais indicações e contra-indicações da vacina?

Felipe Monte Cardoso: A indústria farmacêutica chegou a ser chamada de “crime organizado” por Peter Goetzche, um dos mais importantes epidemiologistas do mundo, em seu livro sobre o setor. Um exemplo do que você citou foi a epidemia de H1N1, na qual a indústria se aproveitou do pânico global com a doença e emplacou vendas estratosféricas de uma medicação cuja eficácia era, no mínimo, duvidosa. Vacinas contra o HPV e mesmo contra a gripe não tem comprovação de eficácia e, mesmo assim, são vendidas em clínicas particulares e ao setor público.

No entanto, não podemos embarcar no perigoso movimento mundial antivacinação. Esta, quando bem indicada, é uma excelente medida de saúde pública. Devemos ao Programa Nacional de Imunização brasileiro parte da queda vertiginosa da mortalidade infantil no país nas décadas de 70 e 80. A vacina de febre amarela é produzida desde 1937, e tem elevada eficácia, e foi um dos pilares do fim da febre amarela urbana, que matou muitas pessoas em nosso país. Para nossa sorte, é produzida no Brasil. Atualmente, a OMS recomenda uma dose única para adultos, e duas doses para crianças.

Mais recentemente, há a recomendação da dose fracionada em situações em que não haja doses suficientes para vacinar toda a população para evitar uma epidemia. Esta semana, seminário na FIOCRUZ em que se mostrou que a dose fracionada é eficaz por pelo menos 8 anos. Como se trata de vacina de vírus vivo cultivada em ovo, alérgico a este alimento, pessoas com imunidade muito baixa, crianças menores de 6 meses, portadores de doenças graves não devem ser vacinados. Pessoas maiores de 60 anos, em virtude de um risco um pouco mais elevado de desenvolver a forma vacinal, devem ser aconselhadas sobre riscos e benefícios. Os efeitos adversos existem, e por isso estas precauções devem ser tomadas. Mas a vacina é bastante segura, e, diante da incerteza sobre o alcance deste surto, altamente recomendada nas regiões afetadas.

EO: Grande parte das cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo afetadas pelo surto de Febre Amarela localizam-se em regiões afetadas pela tragédia de Mariana, quando 55 milhões de m³ de lama vazaram da barragem de Fundão após seu rompimento. É possível afirmar a relação entre os dois fatos?

Felipe Monte Cardoso: A pesquisadora Marcia Chame da Fiocruz levantou esta hipótese ano passado. Não conheço estudos que a confirmem, mas pode-se dizer de uma forma geral que a destruição dos ecossistemas, a redução da biodiversidade e o maior trânsito de pessoas por áreas onde circula o vírus tem aumentado o número de casos da forma silvestre da doença. A rápida circulação de pessoas entre cidades e estados acelera este processo. Mas a ideia de que a Febre Amarela poderia ressurgir nas cidades não é nova; as condições estão presentes (a infestação maciça do vetor), bastando que o mosquito pique pessoas doentes infectadas nas matas.

EO: Outro tema, que anda chamando a atenção nos noticiários, é a caça e matança de macacos. Em diferentes regiões, foram registrados casos deste crime, por pessoas que acreditam que eles transmitem a febre amarela, pois fazem parte do chamado “ciclo silvestre” da doença. Qual a relação entre macacos e febre amarela?

Felipe Monte Cardoso: Como dizem os especialistas no tema, os macacos são os nossos sentinelas nas matas. Ao detectar aumento na mortalidade destes animais por febre amarela, temos a capacidade de entender a marcha da doença, e, assim, tomar as medidas de prevenção adequadas. A matança pode piorar o desequilibrio ecológico e tornar o ciclo silvestre da febre amarela mais difícil de prever, trazendo dificuldades adicionais para a prevenção da doença.

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