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MUNDO

Leon Trotski: Tirem as mãos de Rosa Luxemburgo!

Por Leon Trotski

Em seu artigo “Uma contribuição para a história da questão da ditadura” (outubro de 1920), Lênin, tratando de problemas do estado soviético e da ditadura do proletariado colocados já pela revolução de 1905, escrevia: “representantes destacados do proletariado revolucionário e do marxismo sem falsificações, tais como Rosa Luxemburgo, apreciaram imediatamente a importância desta experiência prática e a analisaram criticamente em reuniões e na imprensa”. Pelo contrário, “(…) pessoas do tipo dos futuros ‘kautskistas’ (…) provaram ser absolutamente incapazes de compreender a importância desta experiência (…)”[1]. Em poucas linhas, Lênin presta o tributo de seu reconhecimento da importância histórica da luta de Rosa Luxemburgo contra Kautski – uma luta que o próprio Lênin esteve longe de avaliar imediatamente em toda sua importância. Se para Stálin, o aliado de Chiang Kai-xek, e o camarada em armas de Purcell[2], o teórico do “partido operário-camponês”, da “ditadura democrática”, do “não antagonizar a burguesia”, etc. – se para ele Rosa Luxemburgo é representante do centrismo, para Lênin ela é representante do “marxismo sem falsificações”. Qualquer um que conheça minimamente Lênin sabe o que significa esta designação vinda da sua pena.

Aproveito a ocasição para ressaltar aqui que nas notas das obras de Lênin há, entre outras coisas, as seguintes palavras sobre Rosa Luxemburgo: “durante o florescimento do revisionismo bernsteiniano e, mais tarde, do ministerialismo (Millerand[3]), Luxemburgo conduziu uma batalha decisiva contra esta tendência, tomando sua posição na ala esquerda do partido alemão (…) Em 1907 ela participou como delegada da Social Democracia da Polônia e da Lituânia no congresso de Londres do Partido Operário Social-Democrata Russo, apoiando a facção bolchevique em todas as questões básicas da revolução russa. Desde 1907, Luxemburgo se entregou inteiramente ao trabalho na Alemanha, assumindo uma posição de esquerda radical e conduzindo um combate contra as alas de centro e de direita (…) Sua participação na insurreição de janeiro de 1919 converteu seu nome em bandeira da revolução proletária”.

É claro que o autor destas notas provavelmente confesse seus pecados amanhã e anuncie que ele as escreveu tomado por ignorância na época de Lênin, e que ele chegou ao completo esclarecimento apenas na época de Stálin. Atualmente a imprensa de Moscou publica todos os dias anúncios deste tipo – combinações de servilismo, bufonaria e idiotice. Mas eles não mudam a natureza das coisas: não há machado que possa cortar nem poderes que possam mudar aquilo que uma vez foi colocado em preto e branco. Sim, Rosa Luxemburgo se tornou uma bandeira da revolução proletária!

No entanto, como e por quê Stálin se dedicou subitamente – depois de tanto tempo – à revisão da velha avaliação bolchevique de Rosa Luxemburgo? Tal como foi o caso com todos os seus abortos teóricos anteriores, com este último, e mais escandaloso, a origem está na lógica da sua luta contra a teoria da revolução permanente. Neste artigo “histórico”, Stálin mais uma vez dedica sua maior parte a esta teoria. Não há uma única palavra nova naquilo que ele diz. Respondi há muito tempo todos os seus argumentos no meu livro “A Revolução Permanente”. Do ponto de vista histórico, a questão estará suficientemente esclarecida, acredito, no segundo volume da “História da Revolução Russa” (A Revolução de Outubro), agora em impressão. No caso atual, a questão da revolução permanente nos interessa apenas na medida em que Stálin a relaciona ao nome de Rosa Luxemburgo. Veremos agora como o teórico infeliz armou uma armadilha mortífera para si mesmo.

Depois de recapitular a polêmica entre os mencheviques e os bolcheviques na questão das forças motrizes da Revolução russa e depois de comprimir magistralmente uma série de erros em umas poucas linhas, os quais sou obrigado a deixar de lado sem examinar, Stálin escreve: “qual foi a atitude dos social-democratas alemães de esquerda, de Parvus[4] e Rosa Luxemburgo, diante desta polêmica? Eles inventaram um esquema utópico e semi-menchevique de revolução permanente (…) Pouco depois, Trótski (e, em parte Martov[5]) tomaram este esquema e o transformaram em uma arma na luta contra o leninismo”. Tal é a inesperada história da origem da teoria da revolução permanente, de acordo com as mais recentes pesquisas históricas de Stálin. Mas, certamente, o investigador esqueceu de consultar suas próprias e ilustres obras anteriores. Em 1925, o mesmo Stálin já havia se expressado sobre esta questão em sua polêmica contra Radek. Eis o que ele escreveu à época: “não é verdade que a teoria da revolução permanente (…) foi apresentada em 1905 por Rosa Luxemburgo e Trótski. Na realidade, esta teoria foi apresentada por Parvus e Trótski”. Esta afirmação pode ser conferida na página 185 de “Questões do Leninismo”, edição russa, 1926. Esperemos que figure em todas as edições estrangeiras.

Portanto, em 1925, Stálin declarou Rosa Luxemburgo inocente do pecado capital de participar da criação da teoria da revolução permanente. “Na realidade, esta teoria foi apresentada por Parvus e Trótski”. Em 1931, fomos informados pelo mesmo Stálin que foram precisamente “Parvus e Rosa Luxemburgo (…) que criaram o esquema utópico e semi-menchevique da revolução permanente”. Enquanto Trótski, não criou a teoria, só “a colocou”, ao mesmo tempo que… Martov! Mais uma vez Stálin se enrolou sozinho. Talvez escreva sobre problemas dos quais não consegue distinguir nem pé nem cabeça. Ou ele está conscientemente embaralhando cartas marcadas ao jogar com as questões básicas do marxismo? É correto colocar esta questão como alternativa. Na realidade, tanto uma como a outra são verdadeiras. As falsificações stalinistas são conscientes na medida que estão ditadas a cada momento dado por interesses concretos inteiramente pessoais. Ao mesmo tempo elas são semi-conscientes, na medida que sua ignorância congênita não coloca qualquer impedimento às suas propensões teóricas.

Mas os fatos permanecem sendo fatos. Na sua luta contra o “contrabando trotskista”, Stálin caiu em desgraça com um novo inimigo pessoal, Rosa Luxemburgo! Ele não parou por um momento antes de mentir sobre ela e vilipendiá-la; e mais ainda, antes de colocar em circulação suas doses gigantes de vulgaridade e deslealdade, ele nem mesmo se deu o trabalho de verificar o que ele mesmo disse sobre o mesmo assunto seis anos antes.

A nova variante da história das idéias da revolução permanente teve sua origem sobretudo na necessidade de proporcionar um prato mais apimentado do que todos os anteriores. É desnecessário explicar que Martov foi arrastado pelos cabelos para tornar mais picante a culinária teórica e histórica. A atitude de Martov diante da teoria e prática da revolução permanente foi de um antagonismo inalterável, e nos velhos tempos, assinalou mais de uma vez que as concepções de Trótski sobre a revolução eram rejeitadas igualmente por bolcheviques e mencheviques. Mas não vale a pena deter-se sobre isso.

O que é verdadeiramente fatal é que não há uma única questão importante da revolução proletária internacional sobre a qual Stálin não tenha expressado duas opiniões diretamente contraditórias. Todos sabemos que em abril de 1924, ele demonstrou de maneira conclusiva em “Questões do Leninismo” a impossibilidade de construir o socialismo em um só país. No outono, em uma nova edição do livro, ele substituiu esta demonstração pela demonstração – quer dizer, a simples afirmação – de que o proletariado “pode e deve” construir o socialismo em um só país. Todo o resto do texto foi deixado inalterado. No decurso de uns poucos anos, e às vezes de alguns meses, Stálin conseguiu apresentar posições mutamente excludentes sobre a questão do partido operário-camponês, das negociações de Brest-Litovsk, da liderança da Revolução de Outubro, sobre a questão nacional, etc., etc. Seria incorreto colocar a culpa de tudo em uma memória deficiente. O problema é mais profundo. Stálin carece de todo método de pensamento científico, de critérios de princípio. Ele encara todas as questões como se estas tivessem nascido neste mesmo momento e estivessem isoladas de todas as outras questões. Para emitir seus juízos se guia inteiramente pelo interesse pessoal mais importante e urgente do dia. As contradições em que cai são a consequência direta do seu empirismo vulgar. Não vê Rosa Luxemburgo no marco do movimento operário polonês, alemão e internacional do último meio século. Não, para ele, ela é cada vez uma figura nova e, além disso, isolada, diante da qual se vê obrigado a perguntar a cada nova situação: “quem está ali, amigo ou inimigo?” Seu instinto infalível sussurrou agora para o teórico do socialismo em um só país que a sombra de Rosa Luxemburgo lhe é inimiga irreconciliável. Mas isso não impede que esta grande sobra continue sendo a bandeira da revolução proletária internacional.

Em 1918, em sua prisão, Rosa Luxemburgo criticou muito duramente e de maneira fundamentalmente incorreta a política dos bolcheviques. Mas, inclusive naquele que foi seu trabalho mais incorreto, percebem-se as asas de águia. Eis aqui sua caracterização geral da insurreição de outubro: “tudo o que o partido pode fazer no terreno da bravura, da ação firme, da previsão e coerência revolucionárias: tudo isto o fizeram Lênin, Trótski e seus camaradas. Toda a honra revolucionária e a capacidade de ação que tanto fizeram falta à social-democracia ocidental, os bolcheviques demonstraram possuir. Sua insurreição de outubro salvou não apenas a Revolução Russa como também a honra do socialismo internacional”. É possível que esta seja a voz do centrismo?

Nas páginas seguintes, Luxemburgo submete a uma dura crítica a política dos bolcheviques no terreno agrário, sua palavra de ordem de autodeterminação nacional e sua rejeição à democracia formal. Podemos acrescentar que nesta crítica, dirigida tanto contra Lênin quanto contra Trótski, não faz nenhuma distinção entre as posições de ambos; e Rosa Luxemburgo sabia ler, compreender e perceber os matizes. Por exemplo, nem sequer lhe passou pela cabeça acusar-me de que, ao me solidarizar com Lênin na questão agrária, eu teria mudado minha posição sobre o campesinato. Além disso, ela conhecia muito bem meus pontos de vista, já que em 1909 os desenvolvi detalhadamente em seu jornal polonês. Rosa Luxemburgo termina assim sua crítica: “na política, o essencial do essencial, o fundamental do circunstancial”. Considera fundamental as forças das massas em ação, a vontade de chegar ao socialismo. “Neste sentido – escreve – Lênin, Trótski e seus companheiros foram os primeiros a dar o exemplo ao proletariado mundial; ainda são os únicos que, até agora, podem gritar com Huteen[6]: ‘eu ousei!'”

Sim, Stálin tem motivos suficientes para odiar Rosa Luxemburgo. Mais imperiosa então é nossa obrigação de resgatar sua memória das calúnias de Stálin, que têm sido acolhidas pelos funcionários a soldo de ambos os hemisférios, e transmitir às jovens gerações proletárias, em toda sua grandeza e força inspiradora, esta imagem realmente bela, heróica e trágica.

Notas

[1] Obras Completas, Vol. 31, 20 de outubro de 1920

[2] Albert Purcell (1872-1935): dirigente do Conselho Geral do Congresso Sindical Britânico e do Comitê Sindical Anglo-Russo na época da traição da greve geral britânica de 1926.

[3] Alexandre Millerand (1859-1943): o primeiro socialista que tomou parte de um governo burguês, quando o designaram ministro do comércio no governo francês de 1899; foi logo expulso do Partido Socialista. Ocupou vários cargos ministeriais e foi presidente da República em 1920. Entre 1900 e 1901, Rosa Luxemburgo escreveu uma série de artigos reunidos sob o título “a crise socialista na França”, nos quais denunciou severamente Millerand

[4] Alexander Parvus (1869-1924): destacado teórico marxista da Europa oriental no pré-guerra, colaborou com Trótski e chegou a conclusões similares às da teoria da revolução permanente. Trótski rompeu com Parvus em 1914, quando este se converteu em um dos dirigentes da ala pró-guerra da social-democracia alemã. Em 1917 tratou de reconciliar o partido social-democrata alemão com os bolcheviques e posteriormente os socialistas independentes com a direção social-democrata de Ebert-Noske.

[5] Júlio Martov (1873-1923): um dos fundadores do Partido Operário Social-Democrata Russo; no início esteve estreitamente ligado a Lênin. Mais adiante se converteu em dirigente da ala esquerda menchevique, se colocou contra a Revolução de Outubro e em 1920 imigrou para a Alemanha.

[6] Ulrich von Huteen (1488-1523): humanista e poeta alemão, foi um teórico dos membros da nobreza que estavam a favor de reformar o império eliminando os príncipes e secularizando a propriedade eclesiástica.