Por: Felipe Demier, colunista do Esquerda Online
Nas análises de Marx sobre o regime político do Segundo Império francês, encontramos a compreensão de que o relativamente autonomizado poder político governamental, sob comando de uma camarilha bonapartista com traços lumpens, procurou se sustentar política e ideologicamente na enorme massa camponesa do país que havia sido agraciada com a reforma agrária de Napoleão I. Entretanto, esse mesmo poder governamental, não obstante sua altissonante retórica e moderna propaganda, não teria feito mais do que dirigir politicamente o país segundo os interesses essenciais da grande burguesia francesa: mormente, a garantia da ordem social e o desenvolvimento do capitalismo industrial.
No segundo semestre de 1870, aproximadamente vinte anos após o golpe de Estado desfechado por Luís Bonaparte contra a Assembleia Nacional, o Segundo Império francês, vencido militarmente pela Prússia bismarckista, desmoronaria em poucos dias, possibilitando o espocar, em 1871, da heroica Comuna de Paris. Neste mesmo ano, em seu opúsculo A guerra civil na França (dedicado àquela inovadora experiência revolucionária, afogada em sangue pelo derrotado Exército francês), Marx, lançando um olhar retrospectivo sobre o recém findado regime bonapartista, pôde constar como este, ao “liberar” a burguesia da árdua tarefa de governar politicamente a nação, mostrara-se extremamente funcional para o progresso do capitalismo industrial francês.
O já significativo distanciamento histórico do qual então gozava Marx em relação ao golpe de Estado de 2 dezembro de 1851, analisado por ele no seu clássico O 18 brumário de Luís Bonaparte,1 o levaria também a considerar tal evento como uma expressão política de um momento abalizador da evolução da sociedade burguesa. “Divisor de águas” na história do sistema capitalista, o momento do surgimento do bonapartismo francês teria exprimido uma situação em que a burguesia, tendo passado à condição de classe contrarrevolucionária, havia perdido a capacidade de governar por conta própria a sociedade, mas o proletariado, à época politicamente imberbe, ainda não podia colocar-se como uma classe social dirigente.
O resultado de tal impasse histórico-político teria sido justamente a emergência de um aparelho estatal relativamente independente das classes fundamentais em presença; jogando demagogicamente com estas, manipulando-as politicamente, essa ingurgitada máquina burocrático-militar teria competentemente levado a cabo o desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais capitalistas na França:
O [Segundo] Império, com o coup d’état por fé de batismo, o sufrágio universal por sanção e a espada por cetro, declarava apoiar-se nos camponeses, ampla massa de produtores não envolvida diretamente na luta entre o capital e o trabalho. Dizia que salvava a classe operária destruindo o parlamentarismo e, com ela, a descarada submissão do governo [republicano] às classes possuidoras. Dizia que salvava as classes possuidoras mantendo em pé sua supremacia econômica sobre a classe operária; e, finalmente, pretendia unir todas as classes ao ressuscitar para todos a quimera da glória nacional. Na realidade, era a única forma de governo possível em um momento em que a burguesia havia perdido a faculdade de governar a nação e a classe operária não a havia adquirido ainda. O Império foi aclamado de um extremo a outro do mundo como salvador da sociedade. Sob sua égide, a sociedade burguesa, livre de todas as preocupações políticas, alcançou um desenvolvimento que nem ela mesma esperava. Sua indústria e seu comércio ganharam proporções gigantescas; a especulação financeira celebrou orgias cosmopolitas; a miséria das massas se destacava sobre a ostentação desavergonhada de um luxo suntuoso, falso e envilecido. O poder de Estado, que aparentemente flutuava por cima da sociedade, era, na verdade, o maior escândalo desta e o autêntico viveiro de todas as suas corrupções. Sua podridão e a podridão da sociedade que ele tinha salvado foram postas a nu pela baioneta da Prússia, que ardia, por sua vez, em desejos de trasladar esse regime de Paris para Berlim. O imperialismo [isto é, a forma imperial de governo] é a forma mais prostituída e, ao mesmo tempo, a forma última daquele poder estatal que a sociedade burguesa nascente havia começado a criar como meio para se emancipar do feudalismo, e que a sociedade burguesa adulta acabou transformando em um meio para a escravização do trabalho pelo capital.2
A conhecida definição de Marx (destacada no fragmento acima) do bonapartismo como um regime político resultante de uma situação peculiar da luta de classes (em que a burguesia não podia mais, e o proletariado não podia ainda) seria posteriormente associada à noção de “equilíbrio entre as forças sociais em confronto” por notórios intelectuais do movimento operário, como Engels, Trotsky e, principalmente, Antonio Gramsci (que trabalharia com conceitos como “equilíbrio estático” e “equilíbrio catastrófico”). Nessa leitura, seria precisamente esse “equilíbrio” entre os campos beligerantes que projetaria o Estado acima da sociedade, dada a impossibilidade das classes sociais de levar adiante o exasperado conflito.
De um modo geral, a arguta interpretação de Marx acerca do bonapartismo francês se tornaria modelar para as futuras elaborações sobre o tipo bonapartista de regime político. Muitos de seus aspectos arrolados por Marx em relação ao caso clássico francês, sobretudo no que diz respeito à relação entre perda do poder político direito por parte da burguesia e desenvolvimento capitalista, se mostrariam presentes nas futuras interpretações de conhecidos intelectuais orgânicos do proletariado (com destaque para Engels, Trotsky e Gramsci) sobre as mais variadas aparições do fenômeno bonapartista nos séculos XIX e XX.
1O 18 brumário de Luís Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978.
2MARX, K. La guerra civil em Francia. Moscou: Editorial Progreso, 1980., p. 61-62. Tradução nossa. Grifos nossos.
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