29/10/2017 | Pablo Castaño
Publicado originalmente no site Viento Sur e Contexto y accion
Tradução: Suely Corvacho
`Encontramo-nos com Lluc Salellas (Girona, 1984) em um bar ao lado da sede nacional da CUP, em Barcelona. O local discreto tornou-se notícia em 20 de setembro, quando a polícia nacional encapuzada tentou entrar sem autorização judicial para confiscar os cartazes da campanha do referendo de 1 de outubro. Uma concentração de 2000 pessoas a impediu, em um episódio de desobediência civil que se repetiu por toda a Catalunha no dia do referendo, quando dezenas de milhares de pessoas protegeram os colégios eleitorais das intervenções dos Mossos, da Polícia e da Guarda Civil. Conversamos com Lluc Salellas sobre a CUP, que alguns anos atrás era uma aliança de candidaturas municipais desconhecida do público e hoje é um dosprotagonistas do movimento de independência catalão.
A Candidatura da Unidade Popular (CUP) nasceu como um conjunto de candidaturas municipais e você mesmo é conselheiro em Girona. Qual balanço você faz da atuação da CUP nos municípios?
Tínhamos muito claro que a construção da casa tinha que começar por baixo, não pelo telhado. Acreditávamos também que o espaço onde nos sentíamos mais confortáveis e onde pensávamos ser mais fácil construir a unidade popular eram os municípios. Isso ocorreu há muitos anos e acredito que, desde aquele momento, a CUP conseguiu mudar substancialmente a cultura política nos municípios. Introduziu conceitos de participação cidadã, de gestão pública, de enfrentamento dos papéis tradicionais de gestão pública municipal, que brilhavam por sua ausência, porque todos os partidos que havia naquele momento faziam parte do Regime de 78. Os herdeiros do PSUC e da Esquerda Republicana participavam da mesma cultura política que a direita, com quem se alternavam no poder, mas dentro do mesmo campo. O que a CUP fez foi romper este campo de consenso, de cultura e de ação política.
As candidaturas municipais que vieram depois, como Barcelona em Comum e Agora Madri, tomam a CUP como exemplo?
Sem dúvida. Quando estas candidaturas nascem – em alguns casos, a CUP esteve dentro dessas candidaturas, como em Badalona, em Cerdanyola, em Sabadell -, de alguma forma, eles tomam como referência o que introduzimos: conceitos como a não perpetuidade no poder, o assembleismo… Acredito que eles adotam algumas dessas ideias. Na práxis política, vimos que outras ideias não foram tomadas tão a sério. Algumas candidaturas, como a Iniciativa ou a Esquerda unida, foram uma mistura do 15M e de formas de uma cultura política anterior.
Você insiste muito no perigo da institucionalização. Uma vez que você entrou no Parlamento, até que ponto você conseguiu evitá-la?
É difícil, o foco da ação política do resto dos partidos está na parte institucional, você é uma força relativamente pequena… É difícil romper com isso. Às vezes você fica sobrecarregado por essa dinâmica, como por exemplo no debate sobre os orçamentos. Queríamos levar o debate às ruas e não conseguimos. A CUP tem força, mas não é o PSUC do anti-franquismo, a organização que controla a rua totalmente. Nós não conseguimos nem era nosso objetivo. O que queríamos – e isso conseguimos – é que nossa dinâmica não fosse só institucional e, portanto, nos dedicamos bastante para organizar muitos atos de rua, muitos “feedback” de assembléias abertas, de jornadas, de congressos… E então temos muito claro que uma parte de nossos recursos – tanto organizativos como financeiro – tem que ir à organização popular e à luta na rua. A velha frase de um pé no parlamento e um pé na rua … Isso acredito que conseguimos. Nunca deixamos a rua. Priorizamos muitas vezes a luta na rua à luta institucional. Esta é a dialética na qual nos movemos. É por isso que, no Parlamento, os deputados só podem estar uma legislatura, as pessoas liberadas dentro da organização têm no máximo quatro anos… Não queremos nos tornar uma organização em que há pessoas que vivem unicamente do partido.
Muitas pessoas não acreditavam que o processo de independência chegasse ao ponto atual, especialmente porque não parecia que o Partit Demòcrata Català (PDCat) fosse tão longe. Até que ponto o papel de vocês na mobilização social foi importante para impelir o processo?
Era impossível que o PDCat chegasse ao ponto que atingiu agora sem a mobilização social que ocorreu: essa mobilização social desafiou suas bases políticas e seus eleitores. A CUP sempre teve uma dupla estratégia, que é, por um lado, participar das manifestações em que estão todas as pessoas independentistas, quer sejam de esquerda ou não, porque entendemos que a independência é um movimento de ruptura que alteraria as forças e serviria para desequilibrar o regime… Isso permitiria que a esquerda tivesse mais facilidade para introduzir novos conceitos, novas dinâmicas …
E, por outro lado, tentamos fazer nossas próprias campanhas, que nos sirvam para dizer que não é apenas uma questão de independência e de tensão dos atores independentistas, mas de posições mais desobedientes e disruptivas. Creio que tem sido importante a capacidade de somar e, ao mesmo tempo, ter um espaço próprio para interpelar o movimento independentista. Esta foi a chave para conseguir chegar ao momento em que estamos.
Uma das coisas que mais assusta alguns meios de comunicação é ver como a Assembléia Nacional Catalã (ANC) e o Òmnium adotaram formas de ação mais radicais, de desobediência civil.
Claro, foi o que ocorreu em 1 de outubro. A ANC e Òmnium veem que este é o único caminho e nós também, que trazemos pessoas que vêm desta cultura. Portanto, quando se tem de defender um colégio, não é a primeira vez, pois já se enfrentou a polícia e sabe o que é este tipo de movimento. Essa nossa experiência foi muito importante em 1 de outubro.
Um dos slogans mais conhecidos da esquerda independentista é “Independência, socialismo, feminismo”. Até que ponto a independência é um fim ou um meio para avançar em direção a uma sociedade socialista e feminista?
A independência é um meio para a maioria da CUP e para as pessoas que participam do projeto de unidade popular em torno da CUP. Mas para muitas pessoas também é um fim, há pessoas que acreditam que a Catalunha ou os países catalães têm o direito de ser um Estado, um projeto político soberano, esse é um fim. Mas é um fim que por si só não funciona. Na esquerda independentista, todos compartilham que é também um meio para chegar mais longe e, certamente o que nos une é que a independência, pois é um estágio imprescindível para chegar ao socialismo e ao feminismo. Porque não vemos a possibilidade de atingir esses objetivos dentro deste Estado espanhol, dada a correlação de forças e pela forma como este Estado foi constituído na História.
Por exemplo, na ação de tirar dinheiro dos bancos, havia contradições no PDCat, não em nós. Vemos que é um movimento efetivo para que as contradições ocorram nas elites políticas catalãs tradicionais. Portanto, a independência é um meio para chegar mais longe, mas ao mesmo tempo é um fim.
Você escreveu um livro intitulado O franquismo que não anda (2015), onde você analisa o que resta do franquismo no Estado atual. Em que medida a atitude que o Estado está tendo neste conflito é consequência de como o Estado foi construído a partir de 1978?
Para entender como estamos hoje, é imprescindível analisar como o franquismo terminou e com que bases o regime de 78 se construiu. Ok! haverá uma democracia liberal formal, mas há alguns tótens nos quais não se pode tocar, que são basicamente a unidade da Espanha e os quarenta anos de franquismo que não podem ser questionados realmente. Isto é demonstrado pelas valas, a política da memória histórica que tem sido nefasta. O mesmo ocorre com a unidade da Espanha. Isso nos leva a uma cultura política de não questionamento. Como essa é a base do Estado, estes temas não podem ser discutidos no debate político normal. Reconhecemos, em Podemos e na Izquierda Unida, a capacidade de defender o direito de autodeterminação dos povos do Estado… É muito legítimo, mas seu projeto continua a ser a unidade da Espanha…
As elites policiais, jurídicas e, eu diria também, o Partido Popular nunca teve que pedir perdão, nunca houve uma coletiva de imprensa dessas pessoas pedindo perdão pelo franquismo. E essas pessoas, que têm agora 60, 70, 80 anos, o que ensinaram a seus filhos? Que se pode fazer tudo isso e que nada lhes acontecerá. Portanto, o que está acontecendo agora é normal se você olhar a história…
Dentro do movimento independentista continua existindo um discurso que lembra muito o que ERC e CiU tinham alguns anos atrás: “Espanha nos rouba”, “pagamos mais impostos”. Até que ponto sua idéia de aliar o independentismo à luta pela justiça social contagiou o movimento?
É certo. Negar isso, seria mentir. Esse posicionamento existe, mas também é verdade que se você olhar as leis que Junts pel Sim votaram, no último ano e meio no Parlamento, são leis relacionadas às questões de habitação, de saúde, questões sociais… Não é o mesmo que a direita está votando na Espanha. Creio que aqui Òmnium e ANC – especialmente Òmnium – fizeram um trabalho muito importante em torno da coesão social, da ideia de justiça social. Òmnium realizou uma campanha chamada Lluites Compartides, que colocou a luta pela autodeterminação no mesmo nível que a luta nos bairros para ter um centro de saúde ou uma escola ou um transporte público. É verdade que este fio condutor não atinge ainda a 100% ou 80% do movimento independentista, mas vem ganhando posições ao longo do tempo. Esta luta pela hegemonia dentro do movimento independentista tem de ocorrer e, evidentemente, não está ganha ainda, mas temos avançado nos últimos anos.
No resto do Estado, é difícil entender o independentismo de esquerda pelo argumento do financiamento. Muitas pessoas pensam: “Se a Catalunha se tornar independente, deixará de contribuir para receita comum e, com isso, os serviços públicos das Comunidades Autônomas mais pobres serão prejudicados”. Como você explica a alguém da Andaluzia ou da Extremadura o independentismo de esquerda?
Há duas coisas. Por um lado, sempre dissemos que nosso projeto independentista servia para quebrar o regime e que isso implicaria iniciar um processo constituinte e mudanças dentro do Estado, onde as classes populares da Extremadura, Andaluzia, Ilhas Canárias, etc., se estão bem organizadas e lutam por seus direitos, teriam opções de mudar esse sistema e, portanto, favorecer também seus interesses. Este é um argumento. E dois, sempre dissemos que a independência não tem de significar que, de um dia para outro, se mudaria o fato de darmos dinheiro, por ser uma região mais rica, às regiões mais pobres. Somos um projeto internacionalista e, portanto, acreditamos que deve haver igualdade e justiça social em todo o mundo. E, portanto, se temos privilégios temos que renunciar a alguns privilégios para dar aos que mais necessitam.
Mas não faz sentido manter um sistema permanente de ajuda que não leve a uma mudança estrutural, senão seria um sistema próximo à caridade católica. Trata-se de fazer mudanças estruturais para que um dia Andaluzia com sua distribuição de trabalho e de riqueza possa também manter esses serviços públicos sem necessidade de outros atores que lhe ajudem. Isso, creio eu, é o mais revolucionário que existe.
Alguns anos atrás, o então presidente da Generalitat, Artur Mas, teve que chegar ao Parlamento de helicóptero para evitar uma manifestação do 15M. Hoje, os conselheiros do PDCat são aclamados na rua, embora as políticas de austeridade sejam mantidas. Imaginemos que a independência não venha, que retorne a uma situação semelhante à anterior, que a antiga Convergência consiga um rosto lavado e, por outro lado, o PP é reforçado pela exaltação do nacionalismo espanhol no resto do Estado…
Este é o pior dos cenários possíveis. É um cenário que possível, mas acho que não é muito provável. Se retornarmos ao status quo anterior, isso significa que a direita catalã entra em uma dinâmica de pacto com o Estado, mudamos completamente de cenário e esse rosto lavado, que você comenta, desaparece. Se estão em um cenário de pacto, tudo o que haviam defendido porque estão em um cenário de ruptura acaba, eles perdem. Estamos diante de conselheiros e presidentes [do Govern e do Parlamento] que estão sob ameaça de prisão agora mesmo. E, nesse cenário, acredito que o ponto de acordo e de consenso é, em primeiro lugar, o da democracia, defender nossas instituições contra a repressão.
Isso não quer dizer que não somos críticos de suas políticas sociais. Por exemplo, neste verão, com o tema do turismo, houve importantes encontros. E nos municípios, há um debate bestial sobre questões sociais nas quais continuamos a colocar obstáculos. E nos lugares onde governamos eles nos colocaram obstáculos. Isso significa que desapareceu o que é uma luta de classes, uma luta ideológica. Mas é verdade que os temas da democracia e da repressão são priorizados.
O governo anunciou que aplicará o 155 e Junts pel Sí e a CUP anunciaram que vão declarar a independência. O que você espera conseguir com a DUI e qual é a estratégia a partir dessa declaração?
Desde o primeiro dia, dissemos que houve um referendo que o Estado tentou impedir e que não o impediu por causa da resistência das pessoas. Os resultados são vinculantes, que é o que as leis dizem.
A Sindicatura Eleitoral[1] não funcionou e as condições de um processo eleitoral normal não foram garantidas. As duas leis foram anuladas pelo TC. Mesmo assim, considera o resultado legítimo e vinculante?
Sim. Porque é verdade que não houve condições normais, mas nas condições excepcionais que houve, as pessoas votaram, houve um censo… Funcionou. O “sim” à independência em 1 de outubro representa uma porcentagem maior do censo [catalão] do que representa o “sim” ao Brexit [no que diz respeito ao censo britânico] … E, portanto, se o Brexit é legítimo, consideramos que 1-O também o é. Então entendemos que isso nos leva a proclamar a República o mais rápido possível e a idéia de proclamar a República é dizer: “Nós nos consideramos um ator soberano”. A partir daqui, entendemos que a mediação entre nós e o Estado espanhol, que tem que existir, deve ser uma mediação internacional. E tem que haver um controle do território, tentando desenvolver as próprias políticas públicas nos setores estratégicos (impostos, saúde, educação). Isso deve ser exigido do Governo, mas, ao mesmo tempo, sabemos que, no contexto em que estamos, as pessoas serão um elemento essencial para garanti-lo.
A partir daí, será necessário ver como o Estado reage. Se vamos a um cenário – como parece – de mais repressão, ficaremos com as pessoas, lutaremose colocaremos a dignidade à frente de tudo. Este é um jogo no qual, há um mês atrás, ninguém pensou que estaríamos e, portanto, não sabemos onde estaremos daqui a um mês. Entendemos que estamos em um processo de empoderamento popular, um processo constituinte, um processo de demolição do regime que existia. Vamos pressionar para que essa mediação internacional reconheça a República e, a partir daí, veremos se a conseguimos; caso contrário, veremos onde vamos parar.
Vários porta-vozes da UE disseram que se a Catalunha se tornasse independente, deixaria a União Européia imediatamente. Isso é um problema para vocês?
O único problema é que houve uma legitimidade tão bestial com respeito à União Européia pelo poder e pela grande maioria da mídia, que as pessoas têm o sentimento de pertencer a essa comunidade de mercados, então isso gera sentimentos de incerteza e de insegurança. Não é um problema no campo econômico, porque creio que a todos os atores europeus interessa que continue o comércio e, portanto, não vai desaparecer, a economia continuaria funcionando…
Estamos contra esta União Europeia e, por conseguinte, nos parece interessante que possa aparecer um debate sobre se devemos ou não estar dentro da UE. De fato, um dos elementos interessantes desses últimos dias é que muitas pessoas que se sentiam muito próximas da União Européia estão vendo o que é a União Européia (devido à falta de resposta da UE diante da repressão de 1 de outubro). O mesmo já havia passado com os refugiados. Está ocorrendo um importante questionamento sobre o que significa a União Européia e isso nos coloca, mais uma vez, em uma interessante conjuntura para questionar o poder estabelecido.
Lluc Salellas. Membro do Secretariado Nacional da CUP e do Conselho em Girona.
27/10/2017
http://ctxt.es/es/20171025/Pol
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