Por Marcello Musto, Professor de teoria sociológica na Universidade de York, Toronto, Canadá. Publicado originalmente no site Sin Permiso.
Tradução: Rodrigo Claudio
Para visitar Vallagrande, o lugar onde Ernesto Che Guevara passou as últimas semanas da sua vida, é preciso fazer uma viagem muito longa. Primeiro temos que chegar em Santa Cruz, a cidade mais povoada da Bolívia e ali tomar um dos velhos e maltratados ônibus que percorrem uma sinuosa estrada montanhosa que se encontra em péssimo estado.
Entretanto, nestes dias, Vallagrande está cheio de militantes( especialmente jovens) que vêm de muitas cidades do país, assim como dos mais diversos países, pelo motivo do quinquagésimo aniversário da morte do revolucionário latino-americano.
Muitos se aproximam do hospital Nuestro Señor de Malta , em cuja lavanderia foi fotografado e exibido ao público pela última vez o corpo do Che, já sem vida, mas com os olhos ainda abertos. Aqui, como em outras províncias da Bolívia, trabalham grupos de médicos cubanos que atendem na Bolívia graças a um projeto solidário concebido por Fidel Castro depois da eleição de Evo Morales que tem como objetivo a criação de centros de saúde para melhorar os índices de assistência e atenção na região.
A poucos quilômetros do centro da cidade se encontra a fossa comum – recentemente convertida em um museu – onde, na noite entre o dia 10 e 11 de outubro de 1967, depois de terem amputado as suas mãos, foi enterrado em segredo junto com seis guerrilheiros de sua coluna. O lugar é distante cerca de 150 metros da pequena pista de avião e do quartel militar onde os rangers bolivianos , orientados por agentes da CIA, levaram a cabo as operações de rastreamento para capturar Guevara. Seus restos somente aparecem depois de 30 anos, graças a investigações de uma equipe cubano-argentina. Hoje se conservam em um mausoléu em Santa Clara, a cidade onde, em dezembro de 1958, o Che dirigiu a batalha decisiva que marcou o final do regime de Fulgencio Batista e o triunfo da revolução em Cuba.
Além de visitar esses dois lugares, quem estes dias chegam às ruas de Vallgrande tem participado de apresentações de livros, debates, exposições fotográficas e uma manifestação final, com a presença de uma ampla delegação cubana – incluindo a família de Che Guevara (o programa do evento pode ser consultado no site).
Demora três horas de viagem de Vallgrande até La Higuera. Somente se pode chegar de Jeep porque o caminho que se conduz a esse pequeno povoado de apenas cinquenta casas, situado a mais de 2000 metros acima do nível do mar, não está afastado e é cheio de curvas. É um lugar isolado, ainda longe do mundo de hoje.
No caminho se cruza com alguns camponeses. Eles cruzam a estrada acidentada , caminhando lentamente, tristes, com suas ferramentas de trabalho atrás deles. Não parece que tem mudado muito desde que o Che atravessou estes vales, com a intenção de derrotar a ditadura militar do general René Barrientos.
Guevara elegeu a Bolívia não porque foi guiado, como às vezes é atribuído a ele injustamente, a idéia de reproduzir mecanicamente as estratégias políticos e militares aplicadas em Cuba. Estava convencido, entretanto, da necessidade de desenvolver um processo revolucionário que afetasse todo o cone sul. Um projeto supranacional que desde a Bolívia fosse capaz de estender-se ao Perú e a Argentina, para evitar que os Estados Unidos interviessem e pudessem aniquilar um foco único, e portanto mais débil, de resistência local. No centro do continente e rodeado por cinco países, Bolívia parecia o local mais adequado onde começar a formação de um grupo de quadros a quem confiar, depois de treinados, a tarefa de organizar as diferentes frentes de luta em toda a América latina.
O Che fundou o Exército de Libertação da Bolívia com somente 45 guerrilheiros. Na introdução ao diário da Bolívia, Fidel Castro escreveu: “Impressiona profundamente a proeza realizada por este punhado de revolucionários. A solitária luta contra a natureza hostil em que desenvolviam sua ação constitui uma insuperável página de heroísmo. Nunca na história um número tão reduzido de homens empreendeu uma tarefa tão gigantesca.”
A morte atingiu muitos deles inesperadamente, 11 meses depois do início da guerrilha. No 8 de outubro de 1967, de fato, o Che, surpreendido em Yuro junto com outros 16 companheiros, foi ferido na perna esquerda e capturado depois de três horas de combate. Transportado a vizinha La Higuera, foi assassinado no dia seguinte, por ordem de Barrientos.
Depois da execução, o exército boliviano se apoderou da mochila de Che e de todos os documentos que havia dentro. Os dois cadernos com os diários da Bolívia puderam chegar rapidamente a Cuba. Pelo contrário, outro grupo de textos curtos apareceu muito mais tarde e se publicou em 1998 com o título Antes de Morrer: apontamentos e notas de leitura. Nestas páginas, Guevara copiou as passagens mais importantes de suas leituras e resumiu alguns dos estudos que estava fazendo, apesar das difíceis condições em que se encontrava. Essas notas foram escritas nos raros momentos de descanso e constituem uma prova a mais de sua extraordinária determinação. Assim, critica a falta de profundidade de análise do sociólogo Charles Wrigth Mills cujo Os Marxistas Che leu e resumiu: o definiu como “um claro exemplo da intelectualidade liberal de esquerda norte-americana”. Gyorgy Lukács, ao contrário, foi muito útil, já que o ajudou a entender a “complexidade da filosofia hegeliana”. Como guia para seus estudos de filosofia, Che utilizou o manual editado pelo cientista soviético Miguel Dynnik e o antiduring de Engels, do qual apreciou mais do que qualquer coisa “seus pensamentos inconclusos sobre a dialética”. Dedicava várias partes a História da Revolução Russa de Leon Trotsky, as vezes criticava, mas que, em sua opinião, era uma “fonte de importância essencial” sobre o nascimento do poder soviético. Por último, Guevara também se dedicou ao estudos dos autores locais e, ao comentar um livro intitulado Sobre o problema Nacional e Colonial da Bolívia assinala que defendia “uma tese interessante”, já que considerava esse país “como um estado multinacional”.
Completam esta página de notas um roteiro de um projeto de estudos dos diferentes modos de produção , desde os pré-capitalistas até o socialismo. Nele se afirma que ” Marx tinha razão” em relação a pauperização do proletariado, mas também que “não previu o fenômeno imperialista. Atualmente os trabalhadores dos países imperialistas são sócios minoritários do sistema.”
Além do estudo teórico, em suas últimas notas o Che copiou três poemas do escritor nicaraguense Rúben Dario. Nos versos finais dos últimos deles, Litania do Nosso Senhor Don Quixote, se descreve um personagem que, em muitos aspectos, é como ele: ” Cavaleiro errante entre os cavaleiros, (…) nobre peregrino entre os peregrinos, que santificaste todos os caminhos, com o passo de admiração pelo seu heroísmo, contra as certezas, contra as consciências, e contra as leis e contra as ciências, contra a mentira , contra a verdade. (…) Que força que você inspira e faz sonhar, coroada com um áureo capacete de ilusão, que ninguém ainda conseguiu vencer, ao longe, toda a fantasia e a lança em riste, coração inteiro.”
Isso é o que pensam dele todos os jovens que chegaram essa semana a La Higuera, para recordar ao Che e para deixar novas pegadas na longa e difícil rota que ele empreendeu.
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