Por MAS – Movimento Alternativa Socialista de Portugal
No passado dia 24 de Setembro, tiveram lugar as eleições legislativas na Alemanha. Estas levaram a votos a governação da coligação entre Merkel e Schulz, CDU/CSU e SPD.
A economia alemã deverá ser hoje uma das mais estáveis e mais dominantes, quer na Europa, quer no mundo. O continuado crescimento económico alemão, geralmente, acima do crescimento da Zona Euro, registou, em 2016, o valor de 1,9%. A constante diminuição da dívida pública, desde 2010, quando registou 81%, alcançou, em 2016, os 68%. O reduzido desemprego alcança hoje os mínimos históricos de 3,9%. As contas públicas registaram um superavit de 0,8% do PIB, em 2016, e a balança corrente mantém-se extremamente superavitária.
Ainda assim, estes parecem não ter sido fatores suficientes para imunizar a Alemanha e o Governo Merkel (coligação CDU/SPD) das tendências gerais que se fazem sentir a nível internacional.
Por outro lado, também é verdade que a “prosperidade alemã” não tem significado uma diminuição da pobreza. Segundo estudos do próprio governo, a desigualdade social e a pobreza têm vindo a atingir valores nunca antes registados. Em 2015, a taxa de pobreza atingiu 15,7%1 da população, cerca de 13 milhões de pessoas.
“Os alemães ricos estão cada vez mais ricos e os pobres, se não estão cada vez mais pobres, estão, pelo menos, mais numerosos”2. Ou seja, parece existir uma erosão das classes médias. Mais concretamente, o número de milionários cresceu de 12.424, em 2009, para 16.495 (0,02% da população), em 2016. Ao mesmo tempo, atualmente, 20% da população alemã está ameaçada pela pobreza.
A verdade é que os trabalhadores alemães viram os seus salários estagnados durante décadas, pelo menos, entre 1993 e 2008, como forma de os empresários alemães conquistarem melhores níveis de competitividade internacional. A verdade é que dos novos postos de trabalhos que são criados, uma considerável parte caracteriza-se pela precariedade e baixos salários, ou seja, um alto nível de exploração da força de trabalho.
O que se retira daqui é que o crescimento e prosperidades alemães são atingidos através de um novo patamar de exploração da força de trabalho, tendo por bases a política neoliberal de desregulação do mercado de trabalho, destruição de direitos, privatização de setores públicos fundamentais e rebaixamento de salários, contribuindo para um aumento da pobreza e desigualdade social.
Estas são as bases materiais que explicam as tendências políticas alemãs. Veja-se que as políticas que têm sido seguidas e os seus efeitos têm definido um comportamento geral, em diferentes países, a nível internacional. Daí que as tendências políticas sejam semelhantes.
Os resultados eleitorais: 3 grandes comportamentos
Também na Alemanha se verificaram três grandes comportamentos: (i) erosão do “centrão” e elementos de polarização social; (ii) falta de alternativa à esquerda; e (iii) considerável crescimento da extrema-direita. Estas são tendências que se têm verificado, em maior ou menor grau, nos restantes países europeus, e não só. Mas vamos por partes.
A profunda erosão do “centrão”, quer dos tradicionais conservadores, neoliberais (CDU/CSU), quer dos tradicionais partidos social-democratas (SPD), é explicada pelo facto de serem os responsáveis políticos diretos pela crise em que mergulharam o mundo.
Como se não bastasse, depois de nos terem enterrado até à garganta, estes partidos têm assumindo a prioridade de salvar o sistema financeiro em detrimento das condições de trabalho e de vida das populações.
Tanto o SPD como a CDU/CSU, quer em governos alternados, quer em governos de coligação entre si, são os responsáveis directos pela aplicação continuada da agenda neoliberal de desregulação e destruição dos direitos e rendimentos laborais, desde o início do século. Os trabalhadores alemães não têm ficado de fora deste plano.
São os piores resultados tanto para a CDU/CSU como para o SPD, desde 1945. Em conjunto, estes dois partidos, que formam o “centrão”, deixaram de representar 67,2% dos votos, em 2013, para passarem a representar 53,5%. Perderam mais de 4,5 milhões de votos, correspondendo a uma perda de 105 deputados, 65 da CDU/CSU e 40 do SPD.
Quem não viu já este filme ocorrer na Grécia, em Espanha, em França ou até mesmo em Portugal? Uma profunda decomposição dos tradicionais conservadores e, sobretudo, dos tradicionais social-democratas e alguns elementos de polarização social.
Juntos, aqueles dois partidos e os seus líderes, Merkel e Schulz, para além de responsáveis diretos pela política interna alemã de contração de direitos laborais e salários, são a cara do desgaste do projeto europeu. Estas duas forças políticas conseguiram amenizar os efeitos da crise, nomeadamente, através das astronómicas injeções do BCE, mas vai ficando evidente que a Europa coze em lume brando, sem que haja uma alternativa à vista. Aquilo que estas duas forças políticas têm para nos oferecer é mais do mesmo, mais desta UE, mais deste Euro, mais resgates ao sistema financeiro e mais austeridade.
Mais do mesmo é precisamente aquilo que, tendencialmente, os povos europeus não querem. A posição de domínio que a Alemanha tem ocupado, para além de ir massacrando todos os restantes Estados e os seus povos, tornando-os mais dependentes, não serve sequer para resolver a crise dentro da própria Alemanha.
A “grande decisão” de Merkel sobre os refugiados é uma farsa!
Há quem refira que a perda da CDU/CSU se deve, em grande medida, à “forma correta” como Merkel se “disponibilizou” para receber refugiados, nomeadamente, na Alemanha.
Em primeiro lugar, esta é uma afirmação completamente falsa. Merkel não se disponibilizou para receber refugiados. Merkel, perante a crise humanitária que tinha entre mãos, e ao ver-se confrontada com uma difícil negociação com os restantes países europeus, foi forçada a dar alguns passos para amenizar as consequências de tal catástrofe. Lembremo-nos que os cadáveres chegavam às centenas à costa europeia. Catástrofe essa que, diga-se de passagem, é a consequência direta das sucessivas intervenções e ingerências dos principais países europeus no Norte de África e Médio Oriente.
O que Merkel fez foi empurrar a crise humanitária para debaixo do tapete, ao mesmo tempo que ia tomando medidas que não manchassem ainda mais a “face solidária” da UE e da Alemanha, como seu Estado predominante.
“Disponibilizou-se a receber” 1 milhão de refugiados na Alemanha, ao mesmo tempo que fechou e reforçou as fronteiras externas da UE, através do programa Frontex. Os refugiados não deixaram de morrer aos milhares no Mar Mediterrâneo e todos aqueles que conseguiram chegar com vida às fronteiras europeias, têm sido imediatamente recambiados para a Turquia. A Alemanha “disponibilizou-se a receber 1 milhão de refugiados” mas existem cerca de 4 milhões na Turquia, Líbano e Jordânia em condições desumanas.
Isto sem esquecer que 1 milhão de refugiados na Alemanha corresponde a 1,2% da sua população, um número irrisório. Sabendo que Portugal é o 4º país que mais refugiados recebeu e que apenas cá chegaram cerca de 1.000 pessoas, mais irrisórios ainda são os números de refugiados que foram recebidos por todos os países da UE.
A questão é que os governos dos principais países europeus não assumem que a crise de refugiados é consequência e responsabilidade da sua própria ação no Norte de África e Médio Oriente, portanto vão criando a compreensão de que a crise de refugiados nos é completamente alheia e que o acolhimento de refugiados não passa de um ato benevolente e voluntário da velha solidariedade europeia. A par disto vão sendo ventiladas conceções de que a Europa é para os “europeus”, não tendo condições para acolher os que aqui se veem aqui refugiar, ainda para mais vindos de países árabes. É ainda feita uma relação direta entre as pessoas que procuram asilo na Europa, o terrorismo e a insegurança. Quem não se recorda da estória de um milhar de árabes que atacaram, roubaram e violaram dezenas de mulheres, em Colónia, na Alemanha, na passagem de ano de 2015 para 2016? Uma estória que se veio a confirmar completamente falsa.
Política de Merkel e Schulz é causa direta do crescimento da extrema-direita
Merkel é a responsável direta pelo crescimento da extrema-direita que conseguiu alcançar quase 6 milhões de votos, 12,6% da votação e, pela primaria vez, desde 1945, 94 deputados no Bundestag. A extrema-direita ocupa agora o lugar de terceira maior força política na Alemanha e vai beber ao descontentamento com a política da CDU/CSU, do SPD, até a setores tradicionalmente à esquerda do SPD e a setores normalmente abstencionistas.
Se não vejamos, junte-se a política da CDU/CSU e SPD, cujas consequências são (i) uma crise internacional da qual a Alemanha, apesar de se localizar no topo da cadeia alimentar, não está imune, (ii) uma instabilidade económica e financeira alongada no tempo, (iii) uma ameaça permanente sobre as expectativas das classes trabalhadoras e das classes médias e (iv) uma retórica de ameaça ao modo de vida ocidental associada aos refugiados. De seguida, (v) misturamos a este combinado uma força política de extrema-direita disposta a cavalgar a insatisfação latente, sobretudo entre as classes médias empobrecidas e, consequentemente, entre as classes mais baixas da sociedade, através de todo e qualquer tipo de preconceitos existentes.
É deste tipo de mistela que sai um Trump nos EUA, uma Le Pen em França e um crescimento exponencial da extrema-direita no Reino unido, Holanda, Áustria e, agora, Alemanha.
À esquerda, Die Linke marca passo! Extrema-direita aproveita para ocupa posições
Se a política de Merkel e Schulz são a causa direta do crescimento da extrema-direita, também à esquerda se devem assacar parte das responsabilidades. O Die Linke aumentou apenas cerca de 500 mil votos, passando de 8,6%, em 2013, para os presentes 9,2%.
Não consegue aumentar a sua influência política, deixa de ser a principal oposição ao futuro governo, não consegue capitalizar nenhum do descontentamento entre os setores sociais que vão engrossando as camadas mais pobres, não consegue, sequer, capitalizar o descontentamento entre o eleitorado do SPD, não consegue dar uma resposta à situação dos refugiados, nem uma resposta aos problemas internos da UE. O Die Linke não se coloca como uma força política anti-sistema e este espaço parece ter sido ocupado pela extrema-direita.
O Die Linke chegou mesmo a perder influência a Leste do país, seus bastiões tradicionais, locais marcados pela forte desindustrialização e empobrecimento, onde, precisamente, a extrema-direita consegue crescer muito.
A verdade é que a aplicação dos programas neoliberais não tem tido uma resposta alternativa à esquerda. O Syriza atraiçoou a confiança que lhe foi concedida, o Podemos não está empenhado em romper com a lógica meramente eleitoralista, marcando a sua política pela dubiedade sobre questões fundamentais, como a Catalunha, e o BE apoia um Governo PS.
Que futuro?
Para já e face à enorme perda de votos, o SPD distanciou-se da possibilidade de renovar a coligação com Merkel, o que poderá ser revertido caso a gestão do sistema capitalista alemão esteja em causa.
Por sua vez, Merkel já afirmou que apenas afasta a possibilidade de se apoiar na extrema-direita para conseguir formar governo, estando disposta a dialogar com todos os outros setores, podendo formar governo com os liberais do FDP e os Verdes, como forma de manter e dar continuidade ao plano que tem já seguido.
Por fim, é evidente que é necessário um programa à esquerda, de combate frontal aos planos de austeridade, apoiado nas lutas dos setores que se vão mobilizando, um programa anti-elites, anti-capitalista, que denuncie que a Europa dos bancos é contrária à Europa dos povos, de combate aos setores mais conservadores e reacionários da sociedade, profundamente marcado pela determinação em reconquistar direitos laborais e melhores condições de vida de quem trabalha.
Caso contrário, a crise das elites que nos têm governado só pode desembocar num crescimento do racismo e nacionalismo da extrema-direita.
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