Amar em catalão
Publicado em: 3 de outubro de 2017
Por Raquel Varela, Colunista do Esquerda Online, de Lisboa, Portugal.
As imagens da brutalidade de Rajoy sobre a Catalunha correram o mundo mas elas não são, creio, as que melhor ilustram o momento. A sua repetição oculta algo, mais profundo e interessante para a humanidade. Para os cínicos (e chatos) que acham que o mundo está condenado ao fracasso a Catalunha foi um choque de realidade. Há um grupo de historiadores no mundo que dedicou a vida a estudar revoluções – são poucos, apesar do século XX ser o século mais revolucionário da história da humanidade. Um dos esforços que levamos a cabo é demonstrar que a violência raramente é um acto revolucionário, pelo contrário ela é quase sempre um impulso contra-revolucionário. Em São Petersburgo morreram 10 pessoas e em Moscovo, cito de memória, pouco mais de 100 no dia da revolução. Quando esta foi invadida por 14 exércitos estrangeiros morreram milhares, quem tem poder e o vê ameaçado recorre de imediato à violência para o conservar. Em Portugal, na revolução dos cravos, a violência veio da extrema-direita, na sede da PIDE, na Madeira, em Braga. No Egipto, recentemente na Primavera Árabe a população dirigiu-se para a sede da polícia, símbolo da ditadura, queimou-a e a seguir foi defender em comités auto organizados os supermercados dos criminosos que aproveitam os momentos de crise de Estado para roubar bens. O que quer isto dizer? Que, em situações de crise de Estado há um impulso de uma fatia grande da população para se substituir ao Estado – médicos vão para os hospitais geri-los, coordenar; trabalhadores mantêm as fábricas em laboração, populares organizam-se contra roubos e saques; professores e pais colocam as escolas a funcionar – em geral não porque o queiram fazer mas porque perante a crise Estado não têm alternativa.
Estou convencida – e nisso tenho colocado as minhas hipotéses de estudo – que é acima de tudo um impulso de sobrevivência. É inegável que o nascimento de um poder paralelo ao Estado é espontâneo – isso já outros antes de mim demonstraram. Acrescento apenas isto, ele não é um movimento ideológico, mas profundamente material, ele nasce, o poder auto organizado, associativo, popular, como queiram chamar, para repor serviços básicos que o Estado não consegue assegurar ou que se prevê que não consiga garantir – o Estado que no seu caminho vai em direcção à crise e reforça a repressão, transformando-se apenas num “bando de homens armados”- como nas imagens – descora o provimento das necessidades básicas, transportes, saúde, alimentação, segurança – é aí que nasce também o embrião do impulso colectivo.
Porém – estou quase a chegar à Catalunha -, quando a população se coloca em marcha para se substituir ao Estado ganha uma confiança gigante em si própria, percebem que são capazes de cooperar e que cooperando produzem mais e melhor, erguem uma sociedade muito mais eficiente, digna e justa, mais afectos, reais. Porque caem as barreiras da competição diária por emprego, tempo, dinheiro, e ergue-se uma criatividade impar – isto é assim em todos, sem qualquer excepção, estudos de revoluções e em qualquer parte do mundo. Na Catalunha não há – ainda – uma revolução, desde logo porque o Estado catalão não está em crise – o Espanhol está. Mas na Espanha não há um poder paralelo ao Estado, na Catalunha há uma mobilização. Que foi, perdoem-me assinalar isto sem desvalorizar a brutalidade da carga policial, muito mais importante e talvez por isso menos divulgada.
Era aqui que queria chegar: nestes meses centenas de milhar de pessoas reuniram-se nos seus bairros, locais de trabalho, transportes, portos, ferrovias, sindicatos, associações culturais, hospitais, centros de comunicações, media, creches, conheceram com quem se vão casar, fizeram novos amigos, tomaram o pequeno almoço com vizinhos que nem conheciam, estiverem juntos como – certamente no caso das gerações mais novas, – nunca tinham estado.
Essa experiência, de que a força colectiva supera a violência, que a construção supera a destruição, é insubstituível. Se descermos ao estudo empírico posso adivinhar, por paralelo com outras situações históricas, que a Catalunha nestes dias não deve ter sido muito distinta de outras situações de organização colectiva – milhares adormecidos, gente simples que ninguém dava nada por eles em termos políticos, ganhou um vigor e iniciativa surpreendentes. A política deixa de ser tema de especialistas, e passa a ser a vida diária de muitos.
E os cínicos perderam o dia, a menos que só consigam ver o que lhes mostram – a polícia a bater em eleitores.
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