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MOVIMENTO

Da greve da Scania à Ocupação Povo Sem Medo

Carolina Freitas, de São Paulo, SP
Mídia Ninja

A Ocupação Povo Sem Medo do MTST, em São Bernardo no Campo, que iniciou há um mês e nesta segunda-feira (02) pode ter seu fim decretado pelo Judiciário paulista, é possivelmente uma das maiores ocupações urbanas atuais do país. Estima-se que dez mil famílias estejam acampadas no terreno próximo à Scania, metalúrgica que foi palco do período mais importante na história do movimento operário brasileiro.

Em maio de 1978, cerca de três mil trabalhadores desta fábrica cruzaram os braços exigindo aumento salarial. A greve rapidamente se alastrou para outras fábricas da região e de São Paulo, conformando o grande ascenso do que ficou conhecido como o “novo sindicalismo brasileiro”. Enfrentando a lei de greve do regime ditatorial, o movimento de trabalhadores iniciado em São Paulo e no ABC deu lugar a uma nova concepção de organização do operariado, oposta à estrutura sindical inaugurada nos anos 40: classista, autônoma, combativa frente aos patrões e às burocracias pelegas, e construída pela base.

Ao novo sindicalismo, iniciado entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80, foi fundamental a ideia, naquele momento histórico, de que a classe, para existir e agir enquanto tal, deveria estar organizada em todos os âmbitos e espaços da vida. O movimento operário neste período se enraizou nas bases, com as Comissões de Fábrica, mas também no chão dos bairros populares, onde havia forte concentração de trabalhadores industriais.

Este encontro espacial de classe, entre a fábrica e o bairro, culmina nas principais mobilizações de trabalhadores de caráter popular, com a eclosão dos movimentos de saúde, por saneamento, transporte, educação, habitação e o sempre lembrado Movimento Custo de Vida. Estes movimentos, inspirados e inspiradores dos métodos operários da luta no período, ajudaram na organização de variados setores do proletariado brasileiro para as estratégias de recusa radical perante os patrões e os dirigentes da ditadura, que naquele momento planejavam uma transição lenta e controlada do regime.

De lá até os dias de hoje, mudanças drásticas ocorreram nas fábricas e nas cidades. Houve uma transformação significativa na localização urbana das áreas industriais e uma fragmentação brutal dos locais de vida e reprodução do proletariado, dissipado pela região metropolitana.

No ABC, e principalmente na Via Anchieta, grandes parques industriais foram vendidos por uma exigência de remodelação da produção: os amplos terrenos, desenhados originalmente para comportar a maquinaria pesada e um grande contingente de trabalhadores, passaram a não ser mais necessários ao circuito de produção e circulação do mercado automotivo e de autopeças. O desenho urbano das antigas grandes propriedades fabris serviu ao crescimento do investimento imobiliário, em grande medida destinado à construção de empreendimentos residenciais para a classe média e para trabalhadores com nível salarial superior. Grandes condomínios substituíram grandes indústrias.

Sob outro aspecto, houve uma perda econômica significativa para o proletariado desde a geração dos peões do ABC dos anos 80. O pós transição democrática, os anos 90 e seus processos de privatização, desregulamentação, terceirização, situou a classe numa condição defensiva, de perda de direitos.

A fragmentação dos processos de produção industrial, o grande aumento no setor de comércio e serviços, a informalização do trabalho e a rotatividade, que caracterizam um processo geral de precarização, ocorreu de forma relacionada com as transformações do espaço urbano.

É certo que a classe trabalhadora mora mais precariamente porque passou a trabalhar para um lado e morar para o outro, mas também porque nesse meio tempo os salários foram arrochados, enquanto os alugueis, tarifas de transporte e mercadorias para a reprodução da vida tiveram um encarecimento brutal. Unidos no tempo, mas fragmentando a vida dos trabalhadores no espaço, os níveis de exploração econômica e de espoliação urbana só aumentaram e ganharam novas qualidades.

Ao mesmo tempo em que os condomínios de médio e alto padrão no ABC foram sendo construídos, especialmente a partir dos anos 2000, o número de sem-tetos da região metropolitana também cresceu. São Bernardo do Campo, cidade onde se localiza a ocupação Povo Sem Medo, é a que concentra o maior número de pessoas vivendo em situações habitacionais muito precárias: são 90 mil famílias que não podem pagar aluguel e, parte significativa delas, compõe os 20% da população da grande São Paulo que está desempregada em meio à crise econômica.

O cenário ocorre em outras periferias e regiões da metrópole e se amplia justamente porque a classe trabalhadora está sendo dilapidada não apenas no âmbito produtivo, mas no que se refere a todas as suas condições para se reproduzir e viver.

Apesar da fragmentação da classe operária e do enfraquecimento de sua estrutura sindical, o MTST e o proletariado jovem se levantam contra o novo modelo de vida imposto por essas formas novas de acumulação de capital. Em junho de 2013, passaram a demonstrar com mais força o potencial de enfrentamento ao modelo de cidade-mercadoria que simboliza também essas novas formas de acumulação.

Se a classe não mora mais nas mesmas habitações, nos mesmos bairros, e não trabalha mais nas mesmas grandes fábricas, por outro lado, se aperta cada vez mais nos mesmos ônibus, vive em comum as mesmas situações de violência e paga, em conjunto, muito mais caro para ter acesso a direitos. As novas condições de socialização das mazelas urbanas dá as lutas sociais novos sentidos, cria novos caminhos para os horizontes estratégicos de superação do regime democrático-capitalista por que lutaram aqueles trabalhadores da Scania e que hoje se encontra apodrecido.

Os 60 mil metros quadrados do terreno da incorporadora MZM, proprietária que ataca na justiça a ocupação do MTST, está há quarenta anos sem destinação e contrai uma dívida de meio milhão de reais em impostos ao município. A terra urbana ociosa, que aguarda ser incorporada no mercado imobiliário, fere todos os dispositivos legais do Estatuto da Cidade e da Constituição Federal que obrigam a destinação social das propriedades vazias.

As ocupações de fábricas, espaços públicos, escolas e propriedades privadas são métodos tradicionais da classe trabalhadora. Suas formas foram se moldando às suas novas condições de classe, às novas condições das cidades. Defender com força e centralidade o direito das famílias sem teto a existir com dignidade em São Bernardo do Campo é também retomar o fio da história de um povo que não teve medo de mudar o Brasil naquele mesmo lugar, há quarenta anos.

Toda solidariedade à Ocupação Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo! NÃO AO DESPEJO!