Por: Leonísia Moura*, de Fortaleza, CE
*Militante do MAIS Ceará e mestranda em Ciências Jurídicas pela UFPB
A novela A Força do Querer, exibida no horário nobre da Rede Globo, explora a história de Fabiana Escobar, a Bibi Perigosa, ex-mulher de um dos maiores traficantes da Rocinha, no Rio de Janeiro, quando era conhecida como “a baronesa do pó”. Nessa semana, Bibi Perigosa, interpretada por Juliana Paes, foi presa em flagrante acusada de associação ao tráfico ilícito de drogas. O trâmite de sua prisão surpreendeu pelo modo completamente atípico em que se deu. Em menos de 24 horas, a audiência de custódia de Bibi foi realizada, o juiz a indagou quanto a possíveis excessos praticados pela polícia e o membro do Ministério Público manifestou-se pelo relaxamento de sua prisão.
Apesar de o episódio reproduzir corretamente a legislação brasileira, o dia a dia do Sistema de Justiça Criminal é bem diferente, principalmente no que concerne às prisões em flagrantes relativas a tráfico de drogas. É o que demonstra o levantamento de dados realizado pelo Núcleo de Assistência ao Preso Provisório e às Vítimas de Violência (Nuapp) da Defensoria do Estado do Ceará, ironicamente também publicado essa semana.
Segundo os dados do Nuapp, mais da metade das mulheres encarceradas na comarcada de Fortaleza responde por crimes relacionados ao tráfico, muitas estão presas há mais de seis meses sem sequer terem recebido sentença em celas que extrapolam mais de 100% sua capacidade total. Mais chocante ainda são as quantidades de entorpecentes que se encontravam em posse das rés quando da prisão em flagrante: “22% das mulheres estavam portando até 10 gramas de entorpecentes; 35% portavam a quantidade entre 11 e 100 gramas; 20% portavam entre 101g até 1kg. Apenas 15% foram apreendidas com até 10 quilos de drogas e 6% das mulheres estavam com acima de 10 quilos de drogas no momento da prisão”. Dado o elevado número de aprisionadas por porte ínfimo de substâncias ilícitas, é possível inferir que muitas delas eram apenas usuárias, não devendo, portanto, serem apenadas com restrição de liberdade segundo a Lei de Drogas (Lei 11.343/2006).
A partir desses números pode-se inferir ainda que, mesmo as envolvidas com o tráfico, ocupam posições subalternas no comércio ilegal de drogas, trocando pequenas quantidades por pequenas monta em dinheiro.
Diferentemente de Bibi, casada com um dos chefões do tráfico de drogas, inserida na lógica da ostentação e rainha do camarote dos bailes funks do morro, a maioria das mulheres encarceradas por crimes relacionados ao tráfico corresponde às parcelas mais sofridas do povo. São mulheres negras da classe trabalhadora, oriundas das periferias das grandes cidades, com pouca escolaridade e escassas oportunidades de emprego formal.
Frequentemente as principais ou únicas responsáveis pelo sustento da família, são mulheres historicamente oprimidas na divisão social e sexual do trabalho, trabalhando dentro e fora de casa nas posições mais precarizadas e insalubres, recebendo salários menores em comparação aos homens de sua classe e às mulheres de classe média e alta. Na organização do comércio ilegal de drogas, o delegado Orlando Zaccone as denomina de sacoleiras das drogas, possuindo o mesmo status de vendedores ambulantes, estando mais expostas à repressão policial justamente por não oferecem resistência.
A “guerra às drogas” constitui, portanto, guerra à população preta e pobre, a qual será considerada traficante mesmo portando quantidades irrisórias de substâncias ilícitas, como 10 gramas. Situações em que pessoas brancas de classe média são facilmente reconhecidas como usuárias e, assim, não encarceradas.
Considere-se ainda as demais violações de direitos cometidas sob essa justificativa: abordagens policiais violentas, revistas em residências de comunidades pobres sem mandados e mesmo homicídios de jovens negros periféricos, que têm sua morte legitimada ao serem vinculados ao tráfico pela grande mídia e pela polícia. A guerra às drogas constitui o retrato de um Estado genocida e violador de direitos humanos básicos. Ao falar da prisão do ex-marido, o barão do pó, é a Bibi perigosa da vida real que nos dá uma aula da política de encarceramento em entrevista à jornalista Leda Nagle: “eu conheço ele, apesar de ele ter me traído […] eu conheço ele desde criança, eu sei o lado bom que ele tem e eu lamento de não ter sido aproveitado isso logo no início que ele errou. Ele poderia ter sido punido, mas não com a mão tão pesada. Preferiram perder 70%, 60% das coisas boas que ele tinha e aproveitar as coisas ruins. Essas coisas ruins aumentaram”.
O encarceramento em massa de mulheres negras e pobres, em sua maioria sem antecedentes criminais e ainda a espera de julgamento, pouco ou nada influi no andamento dos negócios e nas receitas das grandes organizações criminosas ligadas ao tráfico. No entanto, marca a vida dessas mulheres e de sua família de maneira irreparável. Criminaliza, estigmatiza, segrega e exclui.
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Foto: Reprodução TV Globo
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