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TEORIA

Como nasceu O Capital de Marx

Por Marcello Musto, Publicado no Blog Sin permiso no dia 08/09/2017

Tradução: Rodrigo Claudio

A obra que, talvez mais que nenhuma outra, contribuiu para mudar o mundo nos últimos 150 anos, teve uma gestação longa e muito difícil. Marx começou a escrever O Capital somente muitos anos depois de começar seus estudos de economia política. Se já desde 1844 havia criticado a propriedade privada e o trabalho alienado da sociedade capitalista, foi somente depois do pânico financeiro de 1857 – que começou nos Estados Unidos e logo se estendeu à Europa-, quando se sentiu obrigado a deixar de lado sua incessante investigação e começou a redigir o que chamava sua “Economia”.

A crise , os Grundrisse e a pobreza

Com o início da crise, Marx previu o nascimento de uma nova fase de convulsões sociais e considerou que o mais urgente era proporcionar ao proletariado a crítica do modo de produção capitalista, um requisito prévio para superá-lo. Assim nasceram os Grundrisse, oito grossos cadernos em que, entre outras coisas, examinou as formações econômicas pré-capitalistas e descreveu algumas características da sociedade comunista, enfatizando a importância da liberdade e o desenvolvimento dos indivíduos. O movimento revolucionário que acredita que surgiria como consequência da crise foi apenas uma ilusão, e Marx  não publicou seus manuscritos , consciente de que estava longe do domínio total dos temas que enfrentava. A única parte publicada, depois de uma profunda reelaboração do “Capítulo sobre o dinheiro” foi a contribuição à crítica da economia política, um texto distribuído em 1859 e que foi revisado por um só pessoa: Engels.

O projeto de Marx era dividir sua obra em seis livros. Seriam eles : o trabalho assalariado, a propriedade da terra, o trabalho assalariado, o estado, o comércio exterior e o mercado mundial. Entretanto, quando em 1862, como resultado da guerra de secessão norte-americana, o New York Tribune despediu seus colaboradores europeus, Marx- que havia trabalhado para o jornal norte-americano durante mais de uma década- e sua família voltaram a viver em condições de terrível pobreza, as mesmas que haviam padecido durante os primeiros anos de seus exílio em Londres. Somente tinha a ajuda de Engels, a quem escrevia: “Todos os dias minha esposa me diz que preferiria morrer com as crianças e, na verdade, não posso culpá-la dadas as humilhações que estamos padecendo, realmente indescritível. “Sua condição era tão desesperada que, nas semanas mais difíceis, faltava comida para as filhas e papel para escrever. Também buscou emprego em um escritório das ferrovias inglesas. O trabalho, no entanto, o foi negado devido a sua péssima letra. Portanto, devido a grande indigência, a obra de Marx esteve sujeita a grandes atrasos.

A explicação da mais-valia e o carbúnculo(Antraz)

Entretanto, neste período, em um longo manuscrito intitulado Teorias da Mais-valia, levou a cabo uma profunda crítica da maneira em que todos os grandes economistas haviam tratado erroneamente a mais-valia como lucro ou renda. Para Marx, entretanto, era a forma específica pela qual se manifesta a exploração no capitalismo. Os trabalhadores passam parte de sua jornada trabalhando para o capitalista de forma gratuita. Este último busca de todas as formas possíveis gerar mais-valia por meio de trabalho excedente: “Não basta que o trabalhador produza em geral, deve produzir mais-valia”, ou seja, auto-valorização do capital. O roubo de inclusive uns poucos minutos da comida ou do descanso de cada trabalhador significa transferir uma enorme quantidade de riqueza para os bolsos dos patrões. O desenvolvimento intelectual, o cumprimento das funções sociais, e os dias festivos são para o capital “puras e simples frustrações”.  “Apres moi le déluge” ou “o problema não é meu” era também para Marx – ainda que ao tratar a questão ecológica ( que abordou como poucos autores de sua época) – o lema dos capitalistas , ainda que puderem , hipocritamente, se opor a legislação sobre as fábricas em nome da “liberdade plena do trabalho”. A redução da jornada de trabalho, junto com o aumento do valor da força de trabalho, foi, portanto, o primeiro terreno em que tinha lugar a luta de classes.

Em 1862, Marx elegeu o título de seu livro : “O Capital. Acreditava que podia começar imediatamente a redigir-lo de uma forma definitiva, mas as já graves vicissitudes financeiras se somaram a um muito grave problema de saúde. De fato, o que sua esposa Jenny descreveu como “a terrível doença, contra a qual Marx teria que lutar muitos anos de sua vida. Sofria de carbúnculo ou Antraz, uma horrível infecção que se manifesta no início em várias partes do corpo com uma série de abcessos cutâneos e uma extensa furunculose. Devido a uma pápula profunda, seguida pela aparição de uma rede de vesículas ulcerantes, Marx foi operado e “sua vida permaneceu durante muito tempo em perigo”. Sua família estava mais que nunca a beira do abismo.

O Moro ( este era seu apelido), entretanto, se recuperou e, até dezembro de 1865, se dedicou a escrever o que se converteria em sua autêntica obra magna. Ademais, desde o outono de 1864, assistiu assiduamente as reuniões da Associação Internacional dos trabalhadores( I internacional), para a quem havia escrito durante oito anos os principais documentos políticos. Estudar durante o dia na biblioteca, para se colocar em contato aos novos descobrimentos, e seguir trabalhando em seus manuscrito da noite até a manhã: esta foi a rotina a que se submeteu Marx até o esgotamento de todas as suas energias e o esgotamento do seu corpo.

Um todo artístico

Ainda que havia reduzido seu projeto inicial de seis livros a três volumes sobre O Capital, Marx não quis abandonar seu propósito de publicá-los todos juntos. De fato, escreveu a Engels: “Não posso decidir do que prescindir antes de que tudo esteja frente a mim, sejam quais sejam os defeitos que possam ter, este é o valor de meus livros: todos formam um todo artístico, alcançável somente graças a meu sistema de não entregá-lo para a impressão antes de tê-los todos diante de mim”. O dilema de Marx – “corrigir uma parte do manuscrito e entregá-lo ao editor ou terminar de escrever tudo primeiro”- foi resolvido pelos acontecimentos. Marx sofreu outro ataque bestial de carbúnculo, o mais violento de todos, e sua vida esteve em perigo. A Engels lhe contou que havia “perdido a pele”; os médicos lhe disseram que as causas de sua recaída eram o excesso de trabalho e as contínuas vigílias noturnas: “a enfermidade vem da cabeça”. Como resultado destes acontecimentos, Marx decidiu concentrar se unicamente no único livro um, o relacionado com o “Processo de Produção do Capital”.

Entretanto, os furúnculos continuaram atormentando-lo , e durante semanas. Marx nem sequer podia sentar-se. Inclusive tentou se operar sozinho. Procurou uma navalha muito afiada e disse a Engels que havia tentado tirar aquela maldita coisa. Desta vez, a culminação de sua obra não se viu postergada devido a “teoria” senão por “razões físicas e burguesas”.

Quando, em abril de 1867, o manuscrito foi finalmente terminado, Marx pediu a seu amigo de Manchester, que o havia ajudado durante vinte anos, que lhe enviasse dinheiro para poder recuperar “a roupa e o relógio que se encontravam na casa de penhor”. Marx havia sobrevivido com o mínimo indispensável  e sem esses objetos não podia viajar à Alemanha , onde lhe esperavam para entregar o manuscrito a gráfica para impressão.

A correção do borrador durou todo o verão e Engels observou que a exposição da forma do valor era demasiado abstrata e “se ressentia da  perseguição dos furúnculos”, Marx respondeu, “espero que a burguesia lembre dos meus furúnculos até o dia de sua morte”.

O Capital foi posto a venda no dia 11 de setembro de 1867. Um século e meio depois de sua publicação, figura entre os livros mais traduzidos, vendidos e discutidos na história da humanidade. Para aqueles que querem entender o que realmente é o capitalismo, e porque os trabalhadores devem lutar por uma “forma superior de sociedade cujo princípio fundamental seja o desenvolvimento pleno e livre de cada indivíduo”, O Capital é hoje mais que nunca uma leitura imprescindível.