Por: Pedro Rosa, de Porto Alegre, RS
Dia 26 de agosto, às 0h, pelo horário de Brasília, e 3h, pelo horário local, o furacão Harvey atingiu o solo em Rockport, no Texas. Com ventos de até 215 km/h e expectativa de mais de um metro de precipitação em algumas áreas, foi o primeiro furacão de grande escala a atingir os Estados Unidos em sua máxima intensidade desde 2005. Causou devastação, derrubando edifícios e alagando ruas, em uma área habitada por mais de seis milhões de pessoas. Por se tratar de um evento em curso, as autoridades ainda não divulgaram uma taxa de mortalidade oficial. No entanto, ao que tudo indica, o número final quando as águas baixarem estará além do que se deveria esperar, até mesmo de uma catástrofe nesta escala.
Os motivos para isso não estão primariamente em algum fator natural de letalidade específico ao furacão Harvey ou do Texas, embora a tempestade tenha uma intensidade sem precedentes (causada, em parte, pelo aquecimento global) e o terreno pantanoso da área afetada a torne especialmente propícia para alagar. Também não estão na incompetência e despreparo dos órgãos governamentais para lidarem com o desastre, como na temporada de 2005; doze anos após o furacão Katrina, não faltava aos especialistas estadunidenses experiência para formular e implementar um plano técnico que minimizasse a perda de vida, caso desejassem. Desta vez, a gravidade do desastre é humana e proposital.
Dois dias antes da catástrofe, no dia 24 de agosto, a agência de Patrulha da Fronteira dos Estados Unidos declarou que “[os] postos de inspeção não vão ser fechados a não ser que haja risco à segurança do público itinerante e dos nossos agentes”. Estes postos, localizados nas principais rodovias do Texas e de outros estados fronteiriços, servem para impedir a locomoção de imigrantes ilegais vindos da América Latina dentro dos Estados Unidos. A ação deliberada desse órgão de buscar pessoas em situação irregular para deportar, mesmo diante de um cenário de evacuação, demonstra a desumanidade da visão social reacionária que cresce no país; mais vale o cumprimento da lei, a manutenção da ordem, e a ‘pureza’ da nacionalidade estadunidense do que a vida dos imigrantes que, não podendo evacuar, permanecem na zona de perigo.
Somado a isso, uma reportagem da BBC mostra mais uma fração da tragédia humanitária: pessoas que não puderam deixar suas casas por serem muito pobres. Nas palavras de Judie McRae, uma moradora entrevistada: “Tive alguns problemas pra sair da cidade, meio sem dinheiro e tal, então tive que vir para casa e, sabe, dar um jeito. Somos todos de classe trabalhadora.” Por não ter como pagar alojamento ou suprimentos para a evacuação – ainda mais com a manipulação de preços em curso, em que comércios vendem fardos de água por quase 100 dólares – ela teve de resistir no caminho do furacão. Outros não puderam fugir pois não tinham seguro ou transporte para seus barcos, que dependiam para moradia e renda.
Rockport é uma cidade primariamente pescadora. Sua renda per capita é de cerca de 27 mil dólares por ano, abaixo da metade da média nacional de 58 mil; aproximadamente 20% da população vive abaixo da linha da pobreza dos 12 mil dólares anuais. Regiões como essa, negligenciadas e isoladas pelo neoliberalismo, votaram predominantemente no populismo de direita de Donald Trump. São sinais gritantes da desigualdade colossal dos Estados Unidos; enquanto cresce a riqueza de empresários e banqueiros do Vale do Silício e de Wall Street, regiões como o Sul extrativista, o Meio-Oeste agrário e o Rust Belt da desindustrialização tornam-se cada vez mais pauperizadas.
Embora o crescimento da pobreza seja concentrado nestas regiões, a precarização das condições do trabalhador estadunidense não tem necessariamente este contorno geográfico. Um estudo recente mostra que 71% dos americanos estão endividados e 78% dependem diretamente da sua renda mensal, não tendo economias suficientes para sustentá-los caso não recebam.
Isso significa que qualquer despesa inesperada – como a perda do emprego, um gasto com cuidados médicos, ou os prejuízos associados a um desastre natural como o furacão Harvey – é o suficiente para levar estas pessoas à falência, e, frequentemente, também à coleta das suas posses pelos bancos credores da dívida. O único caminho para muitos é recorrer a amigos ou à família – mas muitos outros não têm onde ir, acabando em situações semelhantes a Judie. E, muitas vezes, não têm a mesma sorte dela, que foi à rua pela manhã para encontrar as casas de seus vizinhos destruídas pelo vento e apenas a sua própria de pé.
É fato inegável que, não bastando sua existência em si, a própria ameaça da miséria – seja pela deportação, seja pela insolvência em solo estadunidense – causou e ainda causará fatalidades durante a tempestade. É inegável também que esta pauperização – que implica não apenas a falta das condições básicas de existência, mas o fechamento de quaisquer meios de obtê-las – tem sua causa principal no capitalismo.
Semelhante à maneira como um ser humano precisa de um teto sobre sua cabeça para sobreviver a uma tempestade, o capitalismo precisa de uma massa de trabalhadores empobrecidos ou desempregados para sobreviver quando a classe trabalhadora em geral começa a questionar a sua ordem. Mas, no capitalismo tardio, a decadência do lucro que os patrões conseguem extrair do trabalho – causada pelos gastos maiores necessários com a infraestrutura produtiva e com a presença no mercado – resulta em condições de exploração e precarização do trabalhador que têm precedente apenas na fase inicial do século XX, antes das lutas sindicais e da legislação trabalhista.
Os resultados disso se dão na negligência e indiferença expressados pela ordem social e seus dirigentes quanto às vidas no caminho do furacão Harvey – e, para além disso, às vidas de quem não pôde imigrar em situação regular, às vidas de quem não tem um plano de saúde, às vidas de quem não pode pagar para viver. O capitalismo reifica, coisifica as relações, tentando se eximir da responsabilidade que tem; seus apologistas justificam o aumento de preço de itens básicos durante a tempestade se apoiando nas abstratas ‘leis’ do mercado, as mesmas usadas para demonstrar a ‘inviabilidade’ de socorrer financeiramente as vítimas do furacão que não tinham seguro sobre suas moradias.
É também ‘inviável’ manter a lei da saúde semipública dos Estados Unidos, de acordo com os asseclas de Donald Trump. As situações se assemelham: enquanto se espera que os trabalhadores labutem cada vez mais para cumprir seu dever como integrantes da sociedade, também se espera que sejam indivíduos atomizados, independentes e que encontrem o próprio caminho quando têm que sobreviver.
Comentários