Por: Valerio Arcary, colunista do Esquerda Online
Três breves comentários sobre o último artigo de Alejandro Iturbe:
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Iturbe conseguiu desenvolver uma argumentação prisioneira de uma contradição lógica. Segundo Iturbe o imperialismo estaria em posição defensiva, mas, paradoxalmente, a recolonização do mundo avançou. Em suas palavras: “ainda mais importante: desde a derrota do projeto Bush no Iraque e no Afeganistão (e na própria Venezuela em 2002), o imperialismo enfrenta uma correlação de forças desfavorável com o movimento de massas no mundo (…) Essa categoria de “países independentes” está em extinção (se é que já não se extinguiu). Vários processos se combinam para isso: por um lado, o processo de recolonização levado adiante pelo imperialismo há décadas”.
Se não encontramos mais governos independentes, a única conclusão possível é que a dominação imperialista no sistema internacional de Estados estaria mais sólida. Todavia, se está menos instável, o imperialismo não estaria em posição mais desfavorável. Mas como para Iturbe, por outros critérios, nem sequer a China, a Rússia ou Cuba têm governos, relativamente, independentes, e a Venezuela, então, nem pensar, o problema se mantém intacto. O problema resulta do fato de que Iturbe tem dificuldade em admitir que a análise da relação social de forças entre as classes, ou seja, entre revolução e contrarrevolução à escala internacional, e a relação política de forças entre Estados são dois níveis diferentes de análise. Embora se articulem, estão em patamares de abstração distintos, e entre eles existem muitas mediações.
Acontece que um mínimo de coerência é incontornável. Se a ordem imperialista, depois da guerra do Afeganistão e da guerra do Iraque, está na defensiva, então a sua dominação ficou mais instável. Logo a existência de governos, relativamente, independentes deveria ser não somente possível, mas até mais provável. Estou de acordo com a conclusão que Bush fracassou em seus planos para o Afeganistão e Iraque. Essa é, aliás, uma das premissas que explicam o fortalecimento, relativo, de Moscou e Beijing.
Mas a conclusão inescapável da análise é que “ou é uma, ou é outra”. As duas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Não há “super dialética” que salve esta análise. Evidentemente, a realidade tem mais mediações. Na verdade, o que caracteriza a etapa histórica desde a restauração capitalista, um intervalo que já completou quase trinta anos, é que não aconteceu desde 1989/91 mais nenhuma revolução social anticapitalista. Somente revoluções políticas se precipitaram. E a onda de revoluções democráticas no mundo de língua árabe foi derrotada.
A etapa tem sido, até agora, globalmente, defensiva. Mas isso não impediu que, como expressão da onda revolucionária na América do Sul, aberta em 2000 e encerrada em 2005, tenha surgido em Caracas, um governo, relativamente, independente. Só que como resultado da evolução desfavorável da situação no continente, especialmente, depois do golpe institucional no Brasil, agora a ofensiva imperialista quer se livrar de Maduro.
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Iturbe me acusa de campismo. Campismo deve ser compreendido como uma crítica séria entre marxistas. Porque o campismo sacrifica a independência política de classe pela adesão seguidista de um campo político burguês. Em suas palavras: “o problema é que o esquema “campo progressivo versus campo reacionário” que Valerio e o MAIS adotaram os coloca em um beco sem saída”. Acontece que se o marxismo considera que se os campos de classe são o principal antagonismo das sociedades contemporâneas, nunca o marxismo afirmou que são os únicos. Existem situações em que luta de classes se manifesta e concretiza na luta entre nação oprimida e imperialismo, ou entre ditadura e democracia, por exemplo. Essa, aliás, é um dos centros de nossas diferenças.
Defendi que se trata de um conflito entre um governo, relativamente, independente e o projeto de recolonização encabeçado pelo MUD, a oposição burguesa, que é a direção incontestável das mobilizações de rua. Em artigo anterior afirmei somente que a ofensiva da maioria da burguesia venezuelana, com o apoio agressivo de Trump, que já ameaçou o possível envio de tropas, era reacionária. Afirmei que se abriu uma conjuntura em que a tática do MUD de confrontos crescentes nas ruas era precipitar uma divisão das Forças Armadas. Argumentei que esse giro era golpista. Que a tática correta ”Nem Maduro, nem MUD” tinha um prazo de validade. Do que se deveria concluir que, diante da iminência de perigo de um golpe, a palavra de ordem “Fora Maduro” era errada. Porque não existiam condições objetivas para que Maduro fosse deslocado pela esquerda. Logo, a oposição de esquerda não deveria fazer unidade de ação com a oposição de direita. Deveria fazer unidade de ação contra a ameaça de golpe da oposição de direita. A analogia com o Brasil em 2016 era evidente. Portanto, para serem coerentes, Iturbe e o PSTU deveriam se autocriticar porque sua posição diante do impeachment de Dilma foi abstenção.
Acontece que para Iturbe se trata de uma luta pela revolução democrática contra uma ditadura. Compreendo a escolha política, embora discorde. Mas não entendo a crítica de método. Porque a crítica teórica de campismo, neste contexto, não faz sentido. Na formulação de Iturbe existem, também, dois campos policlassistas. Ou não existem? E, aliás, ele defende o campo em que está a maioria da burguesia. Iturbe se viu obrigado, inclusive, a ter que admitir que a declaração explícita de Trump sob uma possível intervenção militar merecia ser, seriamente, considerada. E se viesse a se concretizar mudaria tudo, e obrigaria a unidade ação não mais com o MUD, mas com Maduro. Agregou que era uma pressão para exigir uma rendição de Maduro através da convocação antecipada de eleições, o que é, também, parte da realidade. Sobre essa dualidade, ameaça de guerra para arrancar uma rendição não temos diferença na análise. Temos diferença em como caracterizar o que são os golpes nesta etapa da luta de luta de classes.
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Não fosse tudo isso uma “enormidade” suficiente, Iturbe resolveu voltar ao tema de que não houve mudança desfavorável na relação social de forças entre as classes no Brasil. Em suas palavras: “a Venezuela hoje não tem nada a ver com o que aconteceu no Brasil no ano passado. Não vamos reiterar aqui os debates que fizemos contra a tese do golpe que o PT inventou (e que “comprou” grande parte da esquerda brasileira). Apenas diremos que no Brasil havia um regime democrático-burguês e que, depois da destituição de Dilma e da posse de Temer, esse regime continua intacto”. .Portanto, não aconteceu um golpe institucional, porque não houve mudança de regime. Iturbe recusa aceitar que na atual etapa os golpes pró-imperialistas não precisam ser feitos com tanques nas ruas para impor ditaduras, porque, infelizmente, não há perigo de revolução social.
Mas isso não autoriza concluir que golpes não aconteceram no Paraguai e no Brasil para derrubar governos. O governo Temer não é igual o governo Dilma Rousseff. Simplificar a análise com a fórmula semianarquista de que todos os governos burgueses são, igualmente, reacionários não é digno de marxistas. Marxistas calibram as análises, estudam as mudanças nas relações sociais de força, enxergam as diferenças entre as deferentes frações da classe dominante, distinguem distintos projetos burgueses. A terrível ofensiva de Temer está aí devastando a vida de dezenas de milhões. Choque fiscal, reforma trabalhista que destrói direitos inscritos na CLT por décadas, ameaça de reforma da Previdência com introdução da idade mínima, planos de dezenas de privatizações, etc.
Este escapismo político deixa Iturbe com as mãos limpas para se poupar de uma explicação de quais seriam as consequências de uma vitória “democrática” na Venezuela. Evidentemente, no contexto atual, não teria outro desenlace senão um governo do MUD que seria, comparativamente, muito pior do que o governo Temer. E não fosse isso ainda o bastante, Iturbe nos presenteia com a ideia extravagante de que a Venezuela sob o governo Maduro merece ser comparada com a ditadura militar argentina sob Videla/Bignone. Se esta não é uma analogia histórica incrível não sei o que esperar da imaginação de Iturbe.
Por último, Iturbe denuncia, corretamente, o método dos amálgamas nos primeiros parágrafos de seu artigo anterior. Amálgama é o método de atribuir aos outros posições que não são as suas. Não se pode distorcer o que os outros pensam. Não se pode exagerar o que os outros dizem, porque exagerar é o mesmo que falsificar. Foi uma especialidade do estalinismo: aqueles que faziam críticas ao regime ou à política de Moscou eram associados ao imperialismo, etc. Trata-se de misturar “alhos e bugalhos”. Trata-se de uma desonestidade intelectual para “ganhar” mais facilmente uma discussão. Trata-se de uma técnica polêmica de manipulação.
Acontece que, paradoxalmente, Iturbe recorre ao método dos amálgamas nos últimos parágrafos deste artigo: “Ao definir sua localização no ‘campo político-militar’ do governo Maduro e do regime chavista, Valerio Arcary e o MAIS tornam-se cúmplices desta repressão e do golpe em curso. Fazem o mesmo que as correntes que defendem o regime de Assad na Síria. Um papel muito triste para um dirigente e uma organização cujos membros eram, até recentemente, militantes revolucionários”
Nesta frase temos dois problemas. Primeiro, Iturbe volta a denunciar que o MAIS seria responsável, por cumplicidade, da repressão do governo Maduro. Inclusive a repressão contra as organizações proletárias e populares. Isto é um amálgama. Vou evitar adjetivar este tipo de amálgama. Simplesmente esclarecer, se não ficou claro, que não apoiamos, politicamente, o governo Maduro. Fomos a favor da unidade ação contra a ameaça de golpe. Não apoiamos a repressão. Concluir que apoiamos a repressão porque consideramos reacionárias as mobilizações do MUD para derrubar Maduro é uma conclusão falsa, e só serve para envenenar nossas relações. Podemos nos poupar destes excessos retóricos.
Segundo, descobrimos que fomos revolucionários enquanto concordávamos com Iturbe, a LIT/CI e o PSTU. O dia que deixamos de concordar, deixamos de ser. Essa maneira de julgar os outros diz mais sobre Iturbe do que sobre nós.
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